Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A produção social da loucura híbrida no documentário ‘I Think We’re Alone Now’, por Wilson Ferreira

A cultura pop, centrada no culto das celebridades, gerou a matéria-prima psíquica necessária para a criação das cismogêneses que envenenam as sociedades.

A produção social da loucura híbrida no documentário ‘I Think We’re Alone Now’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Não é por menos que a guerra híbrida tornou-se a tática de intervenção política mais bem-sucedida do século XXI, impulsionando “revoluções coloridas” por todo o planeta. A cultura pop, centrada no culto das celebridades, gerou a matéria-prima psíquica necessária para a criação das cismogêneses que envenenam as sociedades. O documentário “I Think We’re Alone Now” (2008) retrata dois fãs da cantora pop adolescente dos anos 1980, Tiffany, que passaram a acreditar que estavam envolvidos em um relacionamento intenso e pessoal com a celebridade. Fãs limítrofes prisioneiros na cilada imaginária do “duplo vínculo” (Gregory Bateson), condição esquizo criada por relações familiares danificadas e ampliada pela relação paradoxal dos espectadores com as mídias que diluem as fronteiras entre relação exclusiva/anonimato, intimidade/massificação, público/privado. Oferecendo a vulnerabilidade necessária para sociedades-alvo serem corroídas por dentro.

Como este Cinegnose vem insistindo, Guerra Híbrida trata-se fundamentalmente em criar conflitos por procuração nos países-alvo. Ao invés de enviar exércitos ou mesmo estimular guerras irregulares armando guerrilhas, procura-se explorar as vulnerabilidades políticas, econômicas e psicológicas de uma sociedade.

Por exemplo, auxiliado por pesquisas sócio-psicológicas que constroem um quadro de funcionamento de uma sociedade, para a partir das suas vulnerabilidades, prever com precisão que “botões apertar” para produzir a cismogênese necessária para gerar polarização politica e social que provocará a corrosão da possibilidade de construção de qualquer consenso público ou jurídico – lawfare.

Nos últimos anos acompanhamos o modus operandi da construção da cismogênese: estratégias de comunicação alt-right (a “direita alternativa”) que estão na base da produção das polarizações nas mais diversas “revoluções coloridas” pelo planeta.

“Cismogênese” e “duplo vínculo” (double bind) são conceitos do antropólogo e psiquiatra Gregory Bateson, líder da Escola de Palo Alto, Califórnia. Conceitos interligados porque resultantes de interações acumulativas entre indivíduos. Que nas mãos dos ideólogos da guerra híbrida transformam-se em ferramentas para criar resultados exponenciais nas interações cindidas na sociedade como um todo.

Porém, é necessária a matéria-prima psíquica, a fagulha para a ignição da cismogênese coletiva.

Um vislumbre dessa matéria-prima psíquica está no documentário I Think We’re Alone Now (2008), dirigido por Sean Donelly que acompanha dois fãs (quase stalkers) da cantora pop adolescente dos anos 1980 Tiffany – fãs que começaram a acreditar que estavam envolvidos num relacionamento intenso e pessoal com a celebridade. O documentário acompanha essa dupla de fãs 30 anos depois. Mesmo depois de Tiffany ser bem pouco lembrada (atualmente aparece em produções B do canal ScyFy e alguns shows esporádicos no circuito de nostalgia dos anos 80), ainda mantêm a obsessão e o tom messiânico pela celebridade datada.

Tiffany Darwish estava entre um grupo de artistas adolescentes que apareceram no final dos anos 1980, vendendo música pop higienizada com um leve toque de desejo e rebeldia adolescente. Ela lançou sua carreira tocando em shoppings suburbanos e seu maior sucesso foi “I Think We’re Alone Now”, de 1987. Depois de dois álbuns multi-platina, sua carreira mergulhou de nariz, não mais se recuperando.

O documentário de baixíssimo orçamento (ao ponto das legendas e créditos finais serem apresentados em placas de papelão) transforma essa limitação em uma linguagem documental mais imparcial, câmeras objetivas, deixando os protagonistas falarem livremente, com pouca interferência da edição. 

A dupla de fãs tardios, de meia idade, de Tiffany são mais do que frequentadores nostálgicos dos circuitos de culto dos anos 80. São pessoas problemáticas, na fronteira entre a sociopatia e a sociabilidade, que nutrem ideias delirantes sobre relacionamentos imaginários com a cantora. Personagens limítrofes, decorrentes de questões problemáticas familiares e pessoais.

Seus depoimentos espontâneos revelam um conceito fundamental de Gregory Bateson que está na base do gatilho da cismogênese na guerra híbrida: o duplo vínculo. Aqui, no caso, na relação com a mídia em geral, e com a celebridade Tiffany em particular.

O Documentário

Conhecemos Jeff Turner, um homem de 50 e poucos anos de Santa Cruz, Califórnia. “Tiffany e eu nos conhecemos a maior parte da vida dela e estamos apaixonados um pelo outro”, ele nos diz. “Oh, nós nos beijamos… sem língua.” 

Logo ele está nos mostra sua coleção de lembranças da Tiffany, bastante típicas de muitos amantes da música, no entanto, a dele também inclui cópias de uma ordem de restrição que a cantora entrou na Justiça contra ele. Além de recortes de notícias de sua prisão depois que ele tentou dar a ela uma espada de samurai e crisântemos (segundo ele, seria um antigo ritual japonês), e cartas ele a enviou, todas devolvidas ao remetente.

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Depois conhecemos Kelly McCormick, que se identifica como mulher, mas viveu como homem até o ensino médio e se diz intersexual, tendo nascido com ambos os sexos. 

Se Turner parece pateta e estranho, Kelly é desesperada e intensa. Ela diz que Tiffany apareceu para ela quando ficou em coma por semanas após um grave acidente de bicicleta em 1987 e afirmou ter passado horas ao telefone com ela. “Eu a amo até a medula óssea”, diz ela. Segundo ele, a primeira coisa que ouviu após sair do coma foi a música “I Think We’re Alone Now”.

Ficamos sabendo que Turner sofre de Síndrome de Asperger, o distúrbio neurológico que afeta a interação social, muitas vezes manifestado na incapacidade de reconhecer pistas sociais e limites pessoais. Turner fala sobre sofrer bullying quando criança, como seu pai militar morreu na guerra do Vietnã quando ele era menino e como seu padrasto (militar que era amigo do seu pai) é um “fascista”. 

Essa descrição humana de Turner é contrastada com a moderadora de um grupo de bate-papo da Tiffany, dizendo que ele é uma ameaça à segurança, além das próprias declarações de Turner sobre a cantora, que muitas vezes são depreciativas, críticas e possessivas.

McCormick relata os efeitos desastrosos do divórcio de seus pais, onde sua mãe a tratou como uma filha e seu pai a forçou a se comportar como um menino. Ela diz que era extremamente popular no ensino médio, mas era uma vida miserável como homem. Ela agora toma bloqueadores de testosterona e considera a transição completa para uma mulher. Se a obsessão de Turner pode ser explicada como um efeito de seu Asperger, a de McCormick parece mais delirante. “Meu destino é estar com Tiffany,” ela diz em um ponto, claramente perturbada.

Turner diz que onda mora é repleto de pessoas “esquisitas e bizarras” e que “atrai o fascismo dos outros e dele próprio”. Suas confusões entre realidade e fantasia são explícitas quando fala dos seguranças de Tiffany, achando que eles o cercam quando se aproxima da cantora porque Tiffany quer “protegê-lo”.

Turner frequenta uma igreja neopentecostal e diz para o pastor da congregação que Tiffany é a pessoa que mais se aproxima de Cristo: “Deus está nela!”, afirma diante do pastor.

Paranoico, Turner investe grande parte da sua renda (proveniente da pensão do Estado por invalidez) em equipamentos de radiônica e livros de física experimental para a construção de um dispositivo que consiste num console de controle e um capacete de ciclismo conectado a elétrodos e fios. Segundo ele, para principalmente se conectar espiritualmente com Tiffany. Mas também para bloquear “sinais radiônicos” com os quais o “sistema” e o “governo” manipulam os indivíduos.

O clímax do documentário acontece quando Turner e McCormick se encontram em Las Vegas para assistirem juntos a um show da Tiffany. Apesar de suas ordens de restrição anteriores contra ele, Tiffany agora permite que Turner participe de suas funções promocionais, embora você possa ver a cautela da cantora quando ele se inclina para beijá-la. Turner ofende McCormick repetidamente, chamando-a de “ele” e tenta aumentar sua obsessão Tiffany com suas próprias estórias. 

Enquanto Turner toma seu lugar na frente do show, McCormick parece extasiado, especialmente depois de conhecer Tiffany em um encontro depois. É como se ela tivesse feito uma peregrinação religiosa e saído com a bênção divina de que ela tão claramente precisa. 

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