Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “Psicopata Americano” a psicopatologia foi normalizada no mundo corporativo, por Wilson Ferreira

Porém, a principal piada de toda sátira de “Psicopata Americano” é que ninguém parece notar que há algo errado com ele

Em “Psicopata Americano” a psicopatologia foi normalizada no mundo corporativo

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Vinte e dois anos depois, o filme “Psicopata Americano” (American Psycho, 2000) permanece tão afiado como sempre foi. Tanto o livro quanto o filme passaram por uma odisseia de produção, como uma batata quente pulando de uma mão para outra. Até finalmente virar um filme não só sobre narcisismo e materialismo de um Yuppie dos anos 1980. Mas uma metáfora atemporal sobre a loucura do trabalho no capitalismo flexível de aquisições e fusões: a corrosão do caráter, personalidades manipuladoras, frieza, amoralidade e a compulsão psicótica em literalmente superar a concorrência matando rivais. Com o auxílio de todo arsenal da literatura de autoajuda, manuais sobre sucesso etc. Porém, a principal piada de toda sátira de “Psicopata Americano” é que ninguém parece notar que há algo errado com ele. A psicopatologia foi normalizada pelo mundo do trabalho. 

A imagem do sucesso do Capitalismo sempre foi associada à organização do trabalho taylorista com suas linhas de montagem e o tédio da rotina das especializações profissionais. As imagens de Chaplin sendo sugado pelas engrenagens das máquinas industriais estão até hoje em nossas mentes como representação mais icônica da exploração do operário pela loucura do trabalho alienante.

O psiquiatra francês Christophe Dejours criou o conceito de “loucura do trabalho” – a organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Diferentes níveis de sofrimento, de acordo com o status profissional – Leia DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho, Cortez, 2018.

Aquelas imagens em p&b de Chaplin ficaram para trás, com a chamada produção flexível que atendeu a novas exigências da sociedade de consumo: costumização, produção sob demanda etc. Trabalhos coletivos e formação de equipes por metas temporárias criaram inéditas psicopatologias no novo mundo do trabalho, principalmente a partir da década de 1980.

“Flexibilidade” passou a ser a ideia central desses novos tempos. Porém, com um significado bem diferente do sentido original. “Flexibilidade” designava a capacidade de uma árvore ceder e recuperar-se, voltando a sua forma original. Mas no mundo corporativo, a segunda parte desse conceito original foi esquecida: flexibilizar virou sinônimo de “fragmentar”, “reinventar-se” constantemente, ao sabor das mudanças repentinas das equipes – demissões, fluxogramas e organogramas que sempre parte do zero pelas “revoluções” gerenciais constantes. Ao sabor das aquisições e fusões de empresas na selva da financeirização do capital.

Portanto, flexibilizar virou “adaptação”, exigindo do novo profissional a hipertrofia não mais das habilidades profissionais, mas agora comunicacionais, emocionais, comportamentais para adaptar-se às constantes mudanças das regras invisíveis do jogo. Isso vai criar a nova loucura do trabalho: a corrosão do caráter pelo narcisismo, personalidades manipuladoras, frieza, amoralidade e psicose. Com o auxílio de todo arsenal da literatura de autoajuda, manuais sobre sucesso, ciências cognitivas, neurolinguística etc.

Psicopata Americano (American Psycho, 2000) é um relato em primeira pessoa de dentro da mente de um CEO chamado Patrick Bateman (Christian Bale), sintetizando os males corporativos dos anos 1980, quando surge toda uma cultura pop que vai cimentar esse novo mundo do trabalho flexível – mas principalmente como Bateman é o paroxismo do limite da realização das novas competências exigidas pelo louco mundo do trabalho: falsos sorrisos, charme estudado e o charme, etiqueta e elegância calculadas para conquistar, manipular e, no final, moldar-se a si mesmo de acordo com uma imagem que supostamente ele acha que os outros veem nele. Até a imagem consumir o próprio ego e Bateman esquecer quem ele foi um dia – tão vazio que encontra a forma definitiva para eliminar a concorrência: transformar-se num sociopata e assassino frio.

Tanto o livro quanto o filme foram uma batata quente, passando nas mãos de um para outro. Até tornar-se um best-seller em 1991, foi passado de uma editora para outra. Enquanto o roteiro do filme foi por anos passado de um diretor para outro. No final, foi arrebatado por Oliver Stone (que pretendia estrelar Leonardo DiCaprio) antes de acabar nas mãos da diretora Mary Harron, com o então jovem e surpreendente Christian Bale, interpretando com charme e uma histeria crescente.

Ele nos convida para seu mundo de reservas em restaurantes exclusivos e competições entre CEOs sobre a qualidade gráfica dos cartões de visita. Um mundo no qual a construção narcisista da imagem é mais importante do que a proficiência profissional. Bateman não gosta do trabalho, mas deve se adaptar a ele.  E a psicose é o custo da loucura do trabalho.

O Filme

No documentário A Corporação (2003), o filme fazia uma pergunta simples: se uma corporação fosse uma pessoa, de que tipo ela seria? Em pouco mais de três horas, o documentário conclui: seria um psicopata.

É comum pensar em Patrick Bateman, o narrador e assassino em massa consciente de Psicopata Americano, como representante de certos temas da década de 1980: a ganância de Wall Street, o vazio da cultura de consumo e uma era Reagan onde os valores antiquados escondiam todo o banho de sangue social-darwinista da “contabilidade criativa” das aquisições e fusões no cheiro forte de pinho da colônia Polo. Mas tanto o livro quanto o filme, habilmente adaptados pela diretora Mary Harron e sua co-roteirista Guinevere Turner, não estão pensando nele como um símbolo datado. Mas como, assim como o documentário, mostrar que ele é a essência do moderno capitalismo pós-taylorista: desde um pequeno detalhe da 14a emenda que permitiu que as empresas fossem vistas como indivíduos, Bateman é a própria personificação da psicopatia da corporação moderna.

O que Bateman realmente se preocupa é beleza, ordem e conformidade – ser o consumidor perfeito. Antes de massacrar seus convidados, ele expressa admiração pelo profissionalismo, o último disco do Genesis, “Invisible Touch”, e a sequência de hits número um na estreia de Whitney Houston. 

Ele quer ir aos restaurantes mais exclusivos, e cita comentários da crítica especializada – “um pratinho lúdico mas misterioso”. Ele quer ter os ternos mais bonitos, o melhor apartamento, a fonte e as cores mais refinadas em seus cartões de visita. 

Há uma cena em que um grupo de empresários compara seus cartões de visita, discutindo diagramação, a espessura do papel, o acabamento, o relevo, a gravura e os tipos de letras, como fossem verdadeiros símbolos fálicos. Sua insegurança sexual se manifesta com a inveja pelos cartões de visita dos amigos CEOs. Eles carregam rivalidades sombrias expressas em roupas, escritórios, salários e em conseguir boas mesas em restaurantes importantes.

Derrotado na disputa pelos cartões com melhor produção gráfica, Bateman se vinga num sem-teto, acusando o pobre mendigo de ser o que é por não ter uma “atitude positiva”. Mais tarde matará a machadadas outro CEO por ele conseguir sempre se antecipar e fazer reservas num ambicionado restaurante exclusivo. 

Continue lendo no Cinegnose.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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