Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Grande mídia cria realidade paralela econômica, por Wilson Ferreira

Torções nos números e malabarismos semióticos estão fazendo surgir insólitas realidades paralelas

Grande mídia cria realidade paralela econômica

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Inflação, desemprego e fome estão diariamente nas manchetes da grande mídia. Mas isso não significa que, finalmente, a crise econômica está repercutindo no jornalismo corporativo. É possível ocultar a realidade, mesmo mostrando aquilo que se deseja ocultar. Torções nos números e malabarismos semióticos estão fazendo surgir insólitas realidades paralelas: no mundo macroeconômico, em média tudo está bem; e no cotidiano microeconômico acompanhamos “flagelados” de alguma catástrofe natural bem longe da economia: pandemia, guerras, clima etc. “Flagelados” à espera da privatização da miséria: o voluntariado de ONGs e entidades assistenciais que completam o fechamento operacional se um sistema que faz a Economia perder seu próprio objeto. 

Em algum lugar esse humilde blogueiro leu a melhor descrição sobre natureza da estatística: você tem um pé em uma bacia de água escaldante e o outro pé em outra bacia, desta vez com água congelante. Estatisticamente, na média, você está passando bem.

Essa é a melhor imagem para descrever o malabarismo retórico-estatístico que o jornalismo corporativo vem praticando nesses últimos meses para tentar dar pernas a uma suposta retomada econômica pós-pandemia. Com ênfase à retomada de “números anteriores à pandemia”, como se isso quisesse representar grande coisa para o “jornalismo corporativo”. 

Faço essa conceituação genérica de jornalismo por que o jornalismo especializado, econômico, desapareceu das páginas e telas há algum tempo – na medida em que as variáveis econômicas deixaram de ser políticas monetárias, política de câmbio, contas externas, spread bancário, política industrial etc., para serem substituídas por variáveis climáticas, sanitárias, guerras, meteorológicas, eleitorais etc.

Para quê, então, economistas? Basta entrevistar qualquer chefe de alguma corretora de títulos e valores mobiliários para saber se o mercado está “calmo” ou “tenso” com as variáveis aleatórias listadas acima. 

 É nesse exercício de malabarismo diário (afinal, todo o esforço da guerra híbrida que levou ao golpe de 2016 não pode ir por terra – os fundamentos neoliberais devem ser mantidos a todo custo) que a grande mídia acabou criando uma insólita realidade paralela que lembra a imagem dos pés estatisticamente confortáveis descritos acima.

Para quê jornalismo econômico?

  Para começar, acompanhe, caro leitor, os dois grupos de manchetes abaixo:

(a) “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida” (O Globo); “CNC projeta aumento na expectativa de vendas do comércio para 2022” (CNN Brasil); “Crescimento do setor de serviços no Brasil atinge maior nível em 15 anos” (R7); “Setor de serviços supera perdas da pandemia e cresce 10,9% em 2021” (R7); “Produção industrial volta a crescer em dezembro e fecha 2021 com expansão de 3,9%” (G1); “Mercado formal registra crescimento de 2,7 milhões de empregos” (IG).

(b) “Inflação se alastra e atinge 78% dos preços, e famílias ficam sem saída” (Uol); “Fome cresce e, pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não tem garantia de comida na mesa” (O Globo); “Taxa de desemprego do Brasil deve ficar entre as maiores do mundo em 2022” (O Globo); “Inflação recorde no país foi impactada pela alta nos preços dos combustíveis” (G1).

No grupo (a) temos a realidade paralela dos números macroeconômicos – números em escala regional e nacional a partir de pesquisas classistas ou de autarquias e institutos. E no grupo (b), a realidade cotidiana da microeconomia, descrevendo como a sobrevivência do dia a dia está cada vez mais difícil.

Números relativos e absolutos

 As interpretações dos números que encontramos no grupo (a) nos faz lembrar o “conforto estatístico” do infeliz personagem descrito acima, entre o escaldo e o congelamento. Um exemplo desse “conforto médio”, cujo modus operandi é habilmente confundir números relativos com absolutos, está na matéria da primeira manchete do grupo (a): “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida”

Se olharmos o gráfico abaixo, gerado na matéria a partir de dados do IBGE, percebemos o malabarismo relativo vs. absoluto que a matéria faz: na verdade, em termos absolutos, a variação percentual cai pelo terceiro mês seguido (2,3% jan; 1,3% fev; 1,0% mar). Frente à variação negativa de dezembro de 2021 (-2,6%), os números de 2022 são positivos. Em termos relativos há “crescimento” (na verdade, variações positivas). Ou seja, em termos relativos, em março diminuiu pela segunda vez a variação de crescimento. A manchete deveria ser o inverso!

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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  1. Meu escritório de advocacia faturou em 2021 apenas 1/5 do que faturava em 2015. A minha realidade real não é diferente de muitos dos meus colegas de profissão. Conheço um jovem advogado formado pela PUC São Paulo que fechou o escritório e virou motorista de UBER. Essa é uma mudança dramática, de profissional liberal ele virou escravo do algoritmo. De intelectual que gozava prerrogativas profissionais que garantiam sua autonomia ele se transformou em apêndice biológico sem direitos de um patrão que está em todos os lugares o tempo todo mas que paradoxalmente não está realmente em lugar nenhum. Quando me relatou a mudança ele estava deprimido. Não sei como ele está hoje.

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