A Selic e a maldição de Sísifo, por Luís Nassif

Nas lendas e na economia contemporânea, o mito de Sísifo equivale ao suicídio da democracia

Mostra o rei Sísifo empurrando uma pedra montanha acima

Mais uma vez repete-se a maldição de Sísifo.

Depois de tentar enganar até a morte, o rei Sísifo foi condenado por Zeus a uma eternidade de trabalho fútil: ele teria que empurrar uma pedra enorme até o topo de uma montanha, mas sempre que estava prestes a chegar ao topo, a pedra rolava de volta para o início, obrigando-o a recomeçar. 

A maldição de Sísifo volta a se abater sobre o país.

Depois do Brasil enganar a morte dos juros altos e conseguir crescer acima das expectativas pessimistas do mercado, as indústrias chegam ao limite da capacidade instalada.

É aí que se dá o salto para o crescimento – ou a pedra caindo para o início da montanha. Nesse momento, as empresas têm que decidir se investem ou não na ampliação da sua produção. É a maneira de adequar a oferta à demanda. É o aumento da capacidade produtiva das empresas que provoca a nova etapa do desenvolvimento.

Aí vem o Banco Central e interpreta esse crescimento como desestabilizador dos preços e aumenta a Selic. O empresário com caixa vai optar entre investir em seu negócio, correr riscos para obter uma taxa de retorno de país civilizado, ou aplicar em títulos públicos, sem risco, e conseguindo uma taxa real de até dois dígitos. É evidente que vai ficar com as aplicações financeiras.

O empresário sem caixa vai analisar as taxas de juros do mercado e constatar que jamais seu negócio conseguirá retorno suficiente para bancar o financiamento.

Assim, a oferta não acompanha o aumento da demanda. E o que ocorre quando isso acontece? As empresas aumentam os preços.

Nas lendas e na economia contemporânea, o mito de Sísifo equivale ao suicídio da democracia – como atestou a vitória de Donald Trump e o avanço da ultradireita por todo o mundo ocidental.

Historicamente, todas as decisões relevantes de política econômica visam atender às demandas dos poderosos. Foi assim com a política monetária e sua última vertente – a agonizante metas inflacionárias. Toda a lógica consiste em proteger o dinheiro do investidor em qualquer circunstância, e fazê-lo crescer especialmente nas crises. 

A economia está em crise? Tome juros que o mercado acalma. A economia está em crescimento? Tome juros para não provocar inflação.

Foram vinte anos de estagnação, com o breve interregno do pós-crise de 2008, quando um boom do mercado de commodities permitiu à economia sair do engessamento.

E agora? O modelo morreu. Arrastá-lo até 2026 significará cravar uma cruz no túmulo de um país que já se pretendeu grande.

Obviamente, mudanças de rumo dessa ordem não podem ser tomadas de afogadilho. A vulnerabilidade do governo, nas mãos do Centrão, da Faria Lima e do golpismo militar, é um fato concreto. Por isso mesmo, entende-se a cautela do Ministro Fernando Haddad. Mas há que se estudar estratégias alternativas. O governo como um todo está na situação de água no nariz, evitando qualquer movimento para a água não subir mais. Vai morrer afogado.

O saque do orçamento

Em vez dos impostos serem aplicados em estradas, universidades, estão virando essencialmente enriquecimento da Faria Lima, diz o economista Ladislau Dowbor. A dívida pública drena 8% dos impostos. Se acrescenta juros para pessoas físicas – de quase 51% ao ano, contra 4% na Europa e 4,6% na China – e de pessoas jurídicas – 21% contra 2,5% na Europa – explica-se a profunda desindustrialização brasileira. Dowbor conta que em Paris havia um anúncio de crédito imobiliário a 0,95% ao ano.

Com o custo do dinheiro nesses níveis, a desindustrialização foi consequência óbvia. E os únicos setores que cresceram – mineração e agronegócio – são isentos de tributação.

Juntando custo da dívida, spreads bancários e uma evasão fiscal estimada em 6% do PIB, lucros e dividendos sem pagar imposto, chega-se a um volume monumental de pelo menos 25% do PIB drenado pelo sistema financeiro. E, aí, diz Dowbor, diz-se que tudo isso é porque estamos protegendo o povo da inflação. E toca cortar o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e a Previdência.

Os dogmas da dívida

O primeiro engodo é dizer que a Selic tem que subir por conta do risco fiscal – medido pelo aumento da relação dívida/PIB. É um contrassenso. O maior peso na dívida pública são os juros pagos. Se aumentam os juros, se a taxa real é maior do que a expectativa de crescimento do PIB, há um aumento óbvio da relação dívida/PIB. Então, como pretender que o veneno é a cura?

O economista Demian Fiocca analisou dois períodos distintos em relação às contas públicas. 

O primeiro, de 2002 a 2013, no qual conseguiu-se um superávit médio de 3% ao ano. O segundo, de 2014 a 2021, no qual houve um déficit médio de 2,2% do PIB. No entanto, a Selic foi mais baixa no segundo período, mostrando não existir correlação entre déficit público e a Selic.

O fator que pesou é que o primeiro período foi de atividade econômica aquecida, pressionando a inflação, e o segundo, devido à queda da atividade econômica, de inflação baixa. Logo, a Selic é influenciada pela inflação, não pelo risco fiscal.

Aí se entra em um segundo ponto. A Selic não é um preço de mercado, decorrente da compra e venda de títulos públicos. Trata-se de um preço definido pelo Banco Central e com resultados mínimos em relação ao controle da inflação. Em outros países, para atingir as metas de inflação fixadas, a taxa real de juros gira em torno de 1%. No Brasil, atualmente está em 6% acima da inflação esperada e, para atingir a meta de 3% de inflação, fala-se em elevar substancialmente a Selic.

Trata-se de um saque histórico contra o orçamento público. Nos últimos 50 anos, a taxa de juros real média dos Estados Unidos foi 1,3%; a da Inglaterra foi 1%; a taxa de juros real da zona do Euro que começa em 99 então 25 anos foi menos de 0,3%; a taxa de juros real do Japão foi 0,66%. 

No ano passado, o Banco Central subiu a taxa real de juros para 7% e a economia continuou crescendo. Então, fica óbvio que o modelo de metas inflacionárias tem baixíssima eficiência. Em grande medida porque o Brasil tem uma dívida indexada em juros. Então, quando aumenta os juros, o BC injeta mais dinheiro na economia, aumentando estupidamente a concentração de renda, porque cortando em política pública, no orçamento, para poder garantir a remuneração do detentor de títulos.

O segundo ponto é supor que a Selic é uma taxa formada pelo mercado, negociada entre quem empresta e quem toma emprestado. É uma taxa fixada administrativamente pelo Banco Central. 

Ora, se a questão é reduzir a liquidez, há outras ferramentas que foram abandonadas pelo Banco Central. Pode-se aumentar os depósitos compulsórios (a parcela dos depósitos à vista que os bancos depositam no Banco Central). Pode-se reduzir o prazo dos financiamentos, exigir uma parcela maior de entrada. 

Demian lembra que em 1995, o então presidente do BC Pérsio Arida, colocou um compulsório sobre as operações de crédito dos bancos – uma inovação. O que mostra que o tema não é uma questão de opção ideológica, mas de buscar resultados práticos. 

A sugestão de Demian é o Conselho Monetário Nacional elevar o teto de inflação para 4% – em lugar dos 3% atuais.  Segundo ele, o teto de 3% foi fixado de orelhada pelo Banco Central, sem estudos técnicos embasando a decisão.  Depois, baixar a Selic. Com isto, reduz o risco fiscal. E vai controlando a liquidez com instrumentos convencionais, como o compulsório.

Obviamente, se fosse um país racional, mesmo com todas as restrições de ordem política, o governo teria montado um grupo de estudos para pensar na política monetária pós metas inflacionárias.

Leia também:

21 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Os holandeses nunca saíram daqui. Eles que criaram as bolsas (e as bolhas), e institucionalizaram os juros; e deixaram sua ideologia de lucro fácil enraizada, num povo que já não era muito dado ao trabalho duro (daí a devoção ao escravismo, desde as primeiras levas de índios para o Recôncavo e São Paulo de Piratininga). É complicado!

  2. Nassif, com todo respeito.

    A metáfora não é adequada.

    Ao menos, nas escolhas don protagonista.

    Sísifo ousou, e perdeu.

    Zeus se impôs.

    Esse país fez, como sempre, a escolha pelo seu castigo, sem sequer ter ousado algum prêmio.

    O crescimento inesperado é quase inercial…quase um espasmo pós pandemia.

    No entanto, cientes da sua condição subalterna, Lula e seu governo de frouxos colocaram o rabinho (juros) entre as pernas e retornam ao cantinho da reflexão.

    Aí, aí, aí, que má criação é essa Lula? Querendo expandir emprego, renda e o PIB!

    Volta já para o quartinho de empregada, saiba seu lugar.

  3. Desde o começo do plano real que o sistema financeiro assumiu o controle do BACEN e passou a ditar a política de juros extratosféricas vigente até os dias atuais. Com a aprovação da autonomia do BACEN, as coisas se complicaram mais, pois eles acrescentarma mais uma meta prioritária, que é impedir o desenvolvimento da economia, pois a a permanência da economia na pasmaceira, significa mais poderes para os detentores do capital improdutivo. Enquanto os btrasileiros não se derem conta, que vivemos há mais de 30 anos numa USUROCRACIA, nós vamos ficar discutindo o sexo dos anjos políticos que abundam nesse imenso país. O Brasil tem um imenso podetencial de desenvolvimento, mas sob controle dos parasitas financeiros, vamos ficar a ver o navio da economia no cais da pasmaceira. Não é à toa, que eles usam a expressão âmcora fiscal, pois a âncora na navegação, serve para travar as embarcações.

    1. Ótimo comentário; A percepção do Plano Real é ótima, pois os juros foram a estratosférios 45% naquela época; começou dali, inclusive da popularização
      do Cartão de Crédito (antes o uso comum era do Cheque pré-datado) na economia;
      que veio a ser, os cartões, armadilha para pegar o consumidor no contra-pé
      de dívidas. Ato totalmente criminoso, caso de policia, deveria estar todos
      presos da Faria Lima para dentro.

  4. Fora um pouco do tema, mas com alguma semelhança. Quem lembra da época que defendiam a importação sem proteção para produtos nacionais. A lenda era que somente eficientes deveriam sobreviver, afinal era a regra da economia de mercado vista pelos estadunidenses. Agora que eles tacam sobretaxas em tudo que é produtos que ameaçam sua produção (100% sobre carros eletricos) não vejo nenhuma contestação dos sábios econômicos. Defendem os interesses estrangeiros e quanto as nossas prioridades ficam pianinho. um bando de colonizados e labe botas.

  5. Eu espero e imagino que tais estudos alternativos existam e sejma implementados. Provavelmente será preciso ter maioria no BC, para não cortarem as novas propostas pela raiz.
    Uma evidência disto é o próprio Galípolo ter dito que discorda da participação do BC na definição da meta de inflação. Isto permitiria a elevação da meta como citado pelo Nassif.
    Quanto aos efeitos da Selic nas decisões de investimento, acho que não são tão fortes, já que o BNDES e bancos consorciados concentram quase todo crédito deste tipo.
    Também imagino que o governo não vai brigar com a inflação de preços administrados até o final deste ano, inflação mais alta acaba resultando e juro real menor. A meta vai ser estourada, Galípolo vai ajoelhar no milho com uma cartinha escrita pelo Campos Neto e no ano que vem a normalização dos administrados coloca a inflação na meta de 3% até que CMN possa definir uma meta racional para a realidade atual brasileira, o BC jogue no lixo a pesquisa FOCUS e passe a usar novas ferramentas de política monetária, como sugerido no artigo.

  6. O governo não está fazendo a sua parte, está gastando mais do que arrecada. As estatais já estão voltando para o buraco. Já vimos esse filme, esse mesmo governo que já governou anteriormente e afundou o país. Vc precisa comentar isso!

  7. Não existe saída com o neoliberalismo. Não existe saída do neoliberalismo. O dilema brasileiro não é diferente do dilema enfrentado em todos os países que adotam esse sistema econômico que esvazia a política, concentra renda e aumenta a quantidade de pessoas pobres que não podem nem mesmo contar com uma rede de segurança estatal robusta e eficiente. O neoliberalismo é uma doença que só pode desembocar em fascismo (Trump, Meloni, Milei, etc) e em guerra. Eu já desisti de combater tudo isso, melhor aplaudir os misseis nucleares quando eles começarem a voar porque assim os miseráveis morrem primeiro e os ricos se tornam miseráveis num planeta devastado e morrem depois de fome ou de doença da radiação.
    E eu devo acrescentar que seria magnífico ver tudo aquilo que os ricos consideram valioso, palácios, mansões, carros caros, jatos privados, joias, ouro e obras de arte evaporação num fash ou transformadas em poeira contaminada viajando numa imensa nuvem para longe de cidades como Washington, Paris, Berlim, Londres, etc.

  8. Precisa de uma regulamentação para evitar a manipulação na bolsa. Corretoras parecem combinar entre si o preço das ações e até onde o indice sobe ou desce.
    Deveria acabar com o uso de robôs, estabelecendo um valor fixo, de uns 10 reais no mínimo, por cada ordem de compra ou venda enviada. Investidores sérios não serão prejudicados, como hoje são. As corretoras utilizam robôs e ficam enviando ordens de 100 em 100 na direção que querem levar as ações. Além disso, deveria restringir mais ainda a venda de ativos a descoberto. Algumas corretoras utilizam as ações dos clientes, vendem e alugam quando sai alguma notícia desfavorável ao governo, para influenciar negativamente a opinião pública contra o governo.

    1. Abrir conta em corretora; é exatamente gerar um bot no sistema;
      E dependendo de qual corretora que você abrirá sua conta; todas suas
      tranções estará conectada a outras corretoras (coligadas); e você vai ser um
      bot deles.

      A única maneira de não ser bot é abrir conta em um banco estatal
      e que você possa confiar; que não tenha corretora; ou de um banco
      estrangeiro (que você possa confiar) fora isso é virar bot.

  9. Lula deveria reverter uma das piores decisões do governo Dilma sobra a indexação dos rendimentos da poupança à percentual da selic

    Talvez isso fizesse os brasileiros voltarem a investir na poupança, é só uma ideia mas não conheço os meandros, talvez o nassif ajude

  10. Enquanto isso, no castelo, o crédulo ministro tenta convencer o presidente que é mandatório ingerir o remédio receitado pelo médico. Mesmo sabendo que a dose matará o doente.
    Situação similar ao perseguido pelas ditaduras da vida, ao ser levado para um passeio de helicóptero sobre o oceano, resolver se atirar da aeronave a 1000 metros de altura protegido pelo o raciocínio: -Pelo menos assim eu não levo um tiro e sobrevivo mais um pouco. E, sem outra solução criativa, lá vai o menino passarinho!
    Que tal PAGAR toda a dívida interna de uma única vez, na bucha, com papel impresso. A Casa da Moeda ainda não foi privatizada, certo? E se já o foi o custo será menor que o enterro, que já se avizinha, do rei.
    Vai gerar inflação? gente vai passar fome, o rei ficará nú? Isso já acontece hoje!
    Quem sabe, passados tres meses, a “koisa” melhore e o reino volte a produzir fartura para seu povo?

  11. Não entendo por que o Brasil precisa ter uma dívida pública tão grande — aliás, tudo começou em 1823, o endividamento virou dogma. Onde está a lógica desse tributo aos ricos? Devíamos ter uma meta de liquidação dessa ‘âncora monetária’ para, aí sim, podermos investir muito mais em educação, saúde e infraestrutura. Como virar esse jogo? Com muita informação ao povo

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador