Desmatamento, trabalho escravo e incentivo da ditadura: o que está por trás dos megapecuaristas do Brasil
Por Marina Rossi, da Repórter Brasil
O advogado de um dos maiores pecuaristas brasileiros não hesitou ao saber da investigação: “Qual o menor número de cabeças de gado do ranking?”, perguntou em uma chamada de vídeo. “Vou declarar que temos 100 a menos que o último colocado para ficar fora da lista”.
Não foi possível dar uma resposta precisa ao advogado. O tamanho do rebanho dos fazendeiros brasileiros é considerado sigiloso pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e pelo Ministério da Agricultura. E, quando questionados, alguns dos gigantes da pecuária não respondem. Apesar da falta de transparência, a Repórter Brasil rompeu a discrição da elite do agronegócio e descobriu quem são, onde atuam e quais os problemas de empresários que estão entre os maiores produtores de gado do Brasil.
O levantamento inédito revela que, dos dez megapecuaristas brasileiros, nove têm ao menos uma fazenda de gado na Amazônia Legal e seis deles criam todo seu rebanho no bioma. Juntos, os dez nomes, famílias ou grupos empresariais somam R$ 640 milhões em multas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e colecionam praticamente a área da cidade de São Paulo inteira de embargos por desmatamento ilegal (1.400 km²). Autuações por trabalho escravo aumentam a lista de infrações de cinco destes fazendeiros. Veja aqui a relação completa.
“A ciência mostra que a pecuária é o maior vetor de desmatamento na Amazônia”, diz Richard Smith, coordenador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) no Mato Grosso. A relação entre desmatamento, pecuária e aquecimento global é direta: a Amazônia abriga quase a metade (43%) do rebanho do país, apresenta as maiores taxas de desmatamento e concentra as cidades que lideram emissões de CO2 – o principal gás do efeito estufa. Para piorar, os bovinos liberam também o metano, outro gás relacionado ao aquecimento global.
Além de violações trabalhistas e ambientais, esses magnatas compartilham excentricidades que ajudam a entender como chegaram até aqui. A maior parte é herdeira de terras compradas com incentivo da ditadura militar; embora influentes, alguns são praticamente anônimos; há investigados por corrupção e muitos fazem parte de famílias bilionárias. A fazenda de um deles tem o tamanho de Portugal, com escola e viaduto particulares.
Na lista estão os grupos Agro SB e Bom Futuro, as famílias Vilela de Queiroz e Quagliato, as empresas Agropecuária Rodrigues da Cunha, Rio da Areia, Jacarezinho e Roncador, o empresário Claudiomar Vicente Kehrnvald e a Fazenda Nova Piratininga – apenas esta não tem infração ambiental ou trabalhista.
O levantamento da Repórter Brasil foi elaborado a partir de diversas bases de dados: tamanho das propriedades segundo o CAR (Cadastro Ambiental Rural) e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), documentos de transporte animal, número estimado de cabeças de gado e entrevistas com consultores do setor. Depois, estes nomes foram cruzados com multas ambientais, áreas embargadas pelo Ibama, ICMbio e órgãos estaduais e autos de infração trabalhista do Ministério do Trabalho.
Se esses magnatas colaboraram para o aumento de 22% do PIB da pecuária entre 2020 e 2021 – em plena pandemia –, no passado recente alguns deles ficaram famosos pela crueldade com que tratavam seus funcionários. Destes dez nomes, cinco foram autuados pelo Ministério do Trabalho por terem submetido, no total, 163 trabalhadores a condições análogas à escravidão entre 2000 e 2012.
Ainda que os flagrantes de trabalho escravo desses barões da pecuária tenham ocorrido até 2012, a criação de bovinos continua sendo o setor econômico com o maior número de vítimas. De 1995 a 2021, foram 17,2 mil trabalhadores resgatados de trabalho escravo contemporâneo de fazendas de gado, ou 30% do total, segundo dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Repórter Brasil e Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Assassinatos e agrotóxicos
O município de São Félix do Xingu, no coração do Pará, tem uma população bovina de metrópole. Suas 2,4 milhões de cabeças equivalem aos habitantes de Belo Horizonte (MG), configurando o maior rebanho do país. Enquanto o número de brasileiros subiu 0,75% de 2020 para 2021, o de bovinos cresceu quatro vezes mais rápido no mesmo período, batendo o recorde de 224,6 milhões de cabeças, segundo o IBGE. No ano passado, o Brasil passou a ter mais bois do que gente.
É nesta cidade à beira do rio Xingu que a AgroSB, antes conhecida como Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, dona de um dos maiores rebanhos do país, tem uma de suas fazendas. É a campeã de desmatamento deste levantamento: a empresa já recebeu no total R$ 372,4 milhões em multas ambientais segundo o Ibama, mais do que o orçamento da Prefeitura de São Félix do Xingu para 2022 (R$ 230 milhões).
A AgroSB faz parte do grupo Opportunity, comandado por Daniel Dantas, banqueiro que ganhou o noticiário em 2008 quando foi preso (e solto) duas vezes em menos de cinco dias pela Polícia Federal no âmbito da Operação Satiagraha (que investigou desvios de verbas públicas e crimes financeiros).
Além da multa por desmatamento, a AgroSB também esteve envolvida em problemas trabalhistas e criminais. Em 2012, auditores fiscais encontraram, em uma fazenda com 200 km de extensão, quatro trabalhadores em condições análogas à de escravos. No ano seguinte, um agricultor foi assassinado em outra propriedade da empresa, o que motivou a abertura de um inquérito criminal e outro trabalhista.
Quatro anos depois, dois trabalhadores rurais que viviam com 150 famílias na ocupação de uma outra fazenda do grupo, em Piçarra (PA), foram assassinados. Uma das vítimas já havia denunciado a presença de pistoleiros no local, segundo a CPT. O crime está sendo investigado até hoje pela Polícia Civil do Pará.
Por meio de nota, a AgroSB diz que nunca foi autuada por trabalho escravo, citando um processo na Justiça do Trabalho em que o juiz a teria inocentado de submeter “seus empregados a condições degradantes”. O processo judicial, no entanto, não invalida a infração administrativa feita pelo Ministério do Trabalho.
A empresa disse ainda que o funcionário foi morto por conta de um briga com um colega de trabalho e que desconhece o assassinato dos dois sem-terra. Com relação às multas ambientais, ela diz que é “reconhecida por seu comprometimento zero com desmatamento (sic)”. O grupo diz não ter “responsabilidade nos desmatamentos ocorridos em suas propriedades”, pois metade dos casos teria ocorrido em propriedades “invadidas por terceiros”. “Centenas de milhões de reais em multas ambientais já foram canceladas pelo Ibama e poder Judiciário”, afirma a nota. Leia a resposta na íntegra.
Outro grande pecuarista que atua também no sudeste do Pará e igualmente tem envolvimento em conflito por terras é o fazendeiro Claudiomar Vicente Kehrnvald, ou Mazinho, como é conhecido na região. O pecuarista, que já foi dono de frigoríficos e madeireiras, acumula quase R$ 20 milhões em multas ambientais. Além disso, é investigado pelo Ministério Público Estadual do Pará e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) por conta de um episódio de pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade vizinha, em que adultos e crianças sofreram com os sintomas da intoxicação. A suspeita da promotoria é que o pecuarista teria realizado a ação, em 2021, para expulsar as famílias do local.
A área onde esses assentados vivem foi palco da maior chacina rural desde Eldorado dos Carajás. Em 2017, policiais civis e militares mataram dez trabalhadores sem-terra que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco (PA). Na época, Kehrnvald arrendava parte da propriedade e estava tentando comprá-la. Ele chegou a ser ouvido no inquérito policial, que foi concluído em 2021 sem apontar os mandantes. Procurado, o fazendeiro não se manifestou.
Latifundiários e herdeiros
Outra característica comum aos megapecuaristas brasileiros é serem herdeiros de terras. Muitas dessas famílias são do Sudeste e Sul do país e adquiriram áreas na Amazônia com incentivos da ditadura militar, criando grandes latifúndios.
“Esse sonho de ocupar a Amazônia com a agropecuária vem desde o Brasil Império”, conta Nathalia Capellini, historiadora e pesquisadora em ditadura militar na Amazônia no Instituto Superior de Genebra.
A primeira tentativa de ocupação ocorreu no Estado Novo (1937-1945), quando Getúlio Vargas lançou a “Marcha para o Oeste”. Mas foi só na ditadura militar (1964-1985) que o Estado investiu recursos em políticas de ocupação, diz a historiadora. “O governo levou grandes empresários para passear de barco pela região e dizer que eles teriam todas as vantagens caso aceitassem investir ali”, conta.
É neste contexto que muitos agricultores e fazendeiros, como Pelerson Soares Penido, fundador do grupo Roncador, chegaram à Amazônia. Originário de Minas Gerais, Penido fundou uma fazenda em Querência (MT) que hoje tem quase 100 mil hectares e é administrada pelo neto, Pelerson Penido Dalla Vecchia.
Colada ao Parque Indígena do Xingu, onde vivem 16 etnias, a Fazenda Roncador afirma investir em tecnologia para garantir sustentabilidade, tentando deixar para trás uma gestão obsoleta, mas semelhante a dos grandes pecuaristas, que inclui uma caminhada tortuosa de degradação ambiental e trabalhista. Em 2004, 28 camponeses foram resgatados de mão de obra escrava na Roncador, que também já levou R$ 2,8 milhões em multas ambientais entre 1993 e 2008.
Por meio de nota, o grupo afirma que a fazenda Roncador “não guarda mais relação com o cenário encontrado pelo MPT em 2004”. Na época, foi celebrado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) que a empresa diz ter cumprido. A companhia diz ainda que seu modelo de gestão passou por “importantes transformações” e que hoje conta com “código de conduta, canal de denúncias, política socioambiental e uma declaração pública de não desmatamento e não exploração”. Sobre as multas ambientais, a Roncador afirma que apresentou “sua defesa e teve sua regularidade ambiental reconhecida”. Leia a resposta na íntegra.
A marcha rumo à Amazônia também levou a tradicional família de pecuaristas Vilela de Queiroz, de Barretos, no interior de São Paulo, para criar gado na maior floresta tropical do mundo. A primeira fazenda da família, a Guaporé, foi adquirida em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT).
Hoje, as fazendas do grupo fundado em 1957 também estão espalhadas pelo Tocantins, Pará, Rondônia, Goiás e São Paulo. Os negócios cresceram tanto que a família atua na cadeia completa da carne, dona de grandes fazendas de gado e, ao mesmo tempo, de um dos maiores frigoríficos do país. Fernando Galletti de Queiroz, filho do patriarca Edivar Vilela de Queiroz, é CEO do grupo Minerva desde 2007.
A família também tem histórico de mão de obra escrava. Foi na pequena Chupinguaia (RO) que auditores fiscais encontraram em 2008 cinco trabalhadores irregulares em situação degradante: eles tomavam banho e bebiam água no mesmo córrego em que lavavam louças e roupas, inclusive as utilizadas para aplicação de agrotóxicos.
Procurada, a Agropecuária Vilela de Queiroz não respondeu à reportagem.
Outro episódio relacionado a trabalho escravo dos megapecuaristas repercutiu internacionalmente: o flagrante na Fazenda Brasil Verde, no Pará, de propriedade da família Quagliato, onde 85 trabalhadores foram resgatados em 2000. Até hoje, eles convivem com o medo e o trauma. “Me considero livre hoje, mas ‘livre’ que nem animal de cativeiro, que você solta e o bicho tem medo de pisar no mato”, disse um dos trabalhadores em 2017, quase duas décadas após o resgate.
O caso foi julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2016, que pela primeira vez condenou um país por escravizar pessoas – justamente o último do continente americano a abolir a escravidão. Em 2019, o MPF apresentou uma acusação criminal contra João Luiz Quagliato Filho. A Justiça aceitou a denúncia e o tornou réu, juntamente com o então gerente da fazenda. O advogado que defende João Luiz Quagliato no caso afirmou à Repórter Brasil que os argumentos “estão expostos no processo, que inclusive está em fase de instrução”.
Originária de Ourinhos (SP), a família Quagliato é dona de diversas fazendas espalhadas pelo Pará. Além da Brasil Verde, estão as Colorado e Rio Vermelho, onde ao menos três áreas de propriedades do grupo já foram embargadas pelo Ibama, que também aplicou um total de R$ 150 milhões em multas ambientais.
A reportagem não localizou a família Quagliato.
Sobre os demais empresários mencionados neste especial multimídia, o grupo Jacarezinho disse que desconhece o valor de R$ 7,9 milhões em multas ambientais: “Já tivemos conversões de dívidas que foram pagas com serviços ambientais – mapeamento dos rios – junto a entidades, como universidades.” A Agropecuária Rio da Areia afirmou que “não há nenhum real de multa [ambiental] consolidada até o momento”, já que o fato de haver uma autuação não quer dizer que tenha havido infração.
O Grupo Bom Futuro disse que não vai se pronunciar. Claudiomar Vicente Kehrnvald não quis responder às questões enviadas diretamente a ele. A Agropecuária Rodrigues da Cunha, assim como a Nova Piratininga, não foram localizadas. Este espaço está aberto para ser atualizado caso essas empresas queiram se manifestar.
“O setor de criação de bovinos para corte é o que ainda mais tem nomes na ‘lista suja’ do trabalho escravo, competindo com a produção de carvão”, alerta Mauricio Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, referindo-se ao cadastro semestral divulgado pelo governo. “Pode ser um costume para economizar com esse tipo de trabalho, mas também tem o fato de haver poucos fiscais e poucas punições”, lamenta.
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