Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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A ameaça de um governo neofascista e a (pouca) experiência com a qual se escreve, por Maíra Vasconcelos

Mas um governo de extrema direita pode instalar-se amanhã, “de um dia para o outro”, e talvez alguns encontros permaneçam quase iguais

A ameaça de um governo neofascista e a (pouca) experiência com a qual se escreve

por Maíra Vasconcelos

Buenos Aires, outubro de 2023. E o importante é que as palavras aqui estão todas completamente fora do que diz respeito à informação. Então considero, por minha conta e risco, como quase certo o resultado das próximas eleições, e escrevo sobre isso. Sobre a presença do negacionismo: sim, foram 30.000. Escrevo a angústia por um pleito histórico. Enfim, palavras escritas servem como retrato de um tempo. Tempo em que um governo tão inóspito, violento e imprevisível poderá, talvez, assumir o país. Este meu país e minha cidade por adoção. E o uso do pronome possessivo inclui, minimamente, o convívio estreito com sua cultura, que está além da discografia de Ástor Piazzolla, da poesia de Cecilia Pavón ou das novelas de Ricardo Piglia. Mas está no simples fato de ir à padaria comprar duas medialunas para o café.

Quando este é um país que, frequentemente, ainda o descubro. Talvez, porque tenham certo gosto por viver de rompante em rompante. Um país que briga pelo o que seja. Um país que ainda o desconheço quando tomo café no mesmo bar da Avenida de Mayo, ou quando uma senhora apoiada em um andador me aborda na rua para dizer que as cores de minha blusa violeta significam mudança, transformação e proteção, sem que ela perceba o absurdo de estar sozinha, na Avenida Belgrano, um pouco impossibilitada de caminhar, mas como se estivesse passeando. Como várias outras idosas e idosos atravessam as avenidas mais movimentadas da cidade, de ritmo vertiginoso, caminhando com essa ousadia dos que lutam pelo simples desejo de afrontar algo, a idade, o próprio corpo, o barulho da cidade. Com essa necessidade de se reerguer porque o orgulho vem primeiro. Uma cidade tão orgulhosa e, ao mesmo tempo, ciente da contradição por expor suas decadências e, sobre elas, elaborar alguma teoria que, certamente, não poderá ser facilmente resolvida. Porque no divã do analista essa relação pode durar uma vida. Quando a vida é justamente feita para se estar neste lugar da busca permanente por si mesmo. Isso que pede elaborar uma fala sobre. E tudo o que ainda falta falar sobre este país. E sempre faltará. E isso é apenas outro modo cultural, disponível para alguns, e, apenas de alguns. Pois um governo de ultradireita pode interromper ou não a ida ao analista, por exemplo. Mas o analista não aumenta o valor da sessão de acordo com a inflação que mastiga o nosso poder de compra. E, às vezes, a única coisa que você quer é dizer um anda a la mierda. Que seja dito caminhando, quase como se dirigido a ninguém, à própria vida e à cidade inteira. E por mais caricatural que essa cena possa parecer, ela é um fato.

Uma cidade que, incansável, expõe suas expressões artísticas, como se a construção urbana fosse uma aptidão prazerosa. Menos importa o corpo trabalhador das artes que implora por desgastar-se em servidão ao outro, à vista do outro. E lemos, assistimos, aplaudimos os teatros independentes, os cinemas de rua, a nova literatura, as orquestras de tango novo. Mas um governo de extrema direita pode instalar-se amanhã, “de um dia para o outro”, e talvez alguns encontros permaneçam quase iguais, para alguns, sempre apenas para alguns, como se o ódio neofascista na voz de um presidente pudesse ser abafado diante da correria do cotidiano. Talvez. E porque a palavra “talvez”, quiçá, seja muito adequada para este momento do país.

Assim, amanhã, talvez assuma um governo que tem levado jornalistas a refletirem sobre os discursos de ódio. E, em meio a tudo isso, entendo que algumas das razões que me fizeram mudar de país apenas se mostram com o tempo. Porque algo parece sempre ficar guardado para ser visto com o caminhar em Buenos Aires. Mais fácil, talvez, seja dizer as razões pelas quais posso, mais uma vez, decidir permanecer nesta cidade. Que apenas a conheci por meus irmãos. Mas nenhum deles aqui ficou, eu, sim. Aliás, considerando aquele tipo de fantasia com a qual convivemos permanentemente, suponho que estava em mim o desejo de aqui reencontrá-los, de alguma maneira. Quando sei que por trás de toda busca está sempre o amor. Nessa busca constante por nós mesmos, “tu não te moves de ti”, como o título de um livro de Hilda Hilst. E ninguém muda de país como se mudasse de roupa. Mas é possível que as coisas mudem muito rapidamente em um país, e na Argentina é assim. A questão é que faz “pouco tempo” que vivo aqui. Então essas palavras são nada mais do que um retrato da in-experiência com a qual se escreve, apesar de que a experiência é o que nos leva à narração.

Maíra Vasconcelos, jornalista e poeta, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina e escreve sobre política argentina no Jornal GGN.

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