
Crônica publicada na Folha de S.Paulo em 19 de dezembro de 1999
Quem vê, agora, Pelé sendo coroado “o atleta do século” em toda pesquisa que se faça, não consegue avaliar o que ele, e principalmente a final da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, representou para a geração do meu pai e a minha.
A do meu pai amargava o máximo da fracassomania, a derrota para o Uruguai, no Maracanã, por 2 a 1, na final da Copa do Mundo de 50 -ano em que nasci. Não se perdeu por medo da derrota. O medo era da vitória mesmo.
De minha parte, com oito anos, recém-formado na primeira comunhão, confesso que apelei. Prometi para São Francisco de Salles e Nossa Senhora que, se o Brasil ganhasse a Copa, colocaria grão de milho no sapato e lamberia, uma a uma, as 15 ou 16 escadas da igreja de São Benedito. Cumpri! Quando minha mãe soube, lavou minha língua com álcool, sem nenhuma consideração por minha fé que, afinal, garantira a conquista da Copa.
Um herói por jogo
Naquela Copa, a seleção foi se concentrar em Poços de Caldas, convidada pelo meu pai, que era diretor de futebol da Caldense. Algumas décadas antes ele contratara Dondinho, pai de Pelé, emérito cabeceador, para ser o centroavante da Caldense.
No período em que a Seleção Brasileira ficou concentrada em Poços de Caldas, Pelé pouco apareceu. Eram 44 jogadores, número suficiente para formar quatro times de futebol.
Na Copa, a cada partida se consagrava um herói. Na primeira, contra a Áustria, foi Nilton Santos, que tomou a bola do ponta, quase na linha de fundo brasileira, e foi até a área adversária para fazer o gol.
Contra o País de Gales, Pelé, com um gol magistral, e Gilmar, com suas defesas voadoras. Contra a Rússia, Garrincha e Vavá, o primeiro com duas entradas até a linha de fundo centrando a bola para a invasão fulminante de Vavá.
Olha, já vi muito centroavante depois dele, da fina arte de Coutinho, Reinaldo e Careca à impetuosidade de César e Silva, mas nenhum tinha a elegância e a determinação de Vavá para finalizar na área.
Maior show de futebol
Na última partida, contra a Suécia, que eram os anfitriões, todos os vizinhos foram ouvir a transmissão de rádio no alpendre da casa de dona Nonda. O locutor era Pedro Luiz -o maior da história- e o comentarista, Edson Leite. Como era a primeira Copa dos primos todos, ainda não tínhamos sido atingidos pela doença da fracassomania. Mas os velhos estavam apreensivos.
Quando a Suécia fez o primeiro gol, a síndrome do Maracanã baixou sobre todos. Foi quando Didi pegou a bola, na rede do nosso gol, colocou-a sob o braço e foi caminhando lenta, porém decididamente, até o meio do campo. Nós imaginávamos cada passo por meio da locução segura de Pedro Luiz, o homem que descrevia todos os detalhes sem nenhuma pirotecnia.
A cada passo Didi se virava para o lado, fazia um sinal para um companheiro, um alento para o outro, pedia calma para um terceiro. E, com a segurança dos verdadeiros comandantes, pôs a bola no meio do campo e deu a saída para o maior show de futebol que o mundo presenciou neste século, mais ainda que a final contra a Itália, em 1970, no México, quando ganhamos o tri.
Sob sua batuta, Pelé explodiu, com dois gols clássicos. Garrincha parou o estádio com uma série de dribles que paralisaram o pobre lateral-esquerdo que o marcava. Zito, Djalma Santos, Bellini, Nilton Santos, um a um foram saindo dos corpos dos pobres mortais que os abrigavam e encontrando seu lugar no Olimpo dos heróis brasileiros do século. Tudo sob o comando de Didi.
Só algum tempo depois pude assistir a cena completa, da caminhada de Didi, nas imagens do Canal 100, se não me engano.
Exercício de dignidade
Olha, o significado daqueles 50 e poucos passos de Didi em direção ao meio do campo ainda está por ser devidamente analisado pelos historiadores.
Para o Brasil deste século, sua caminhada foi tão relevante quanto uma ofensiva de Osório, uma guinada de barco do almirante Barroso na Guerra do Paraguai.
Sem aquela cena, não teria vingado a mobilização do presidente Juscelino Kubitschek, para superar o sentimento de inferioridade do país.
Apesar do ufanismo que nos injetavam nas escolas primárias, o peso do fracasso moldava toda a sociedade brasileira. Em cada partida contra uruguaios e argentinos ficávamos aguardando o momento em que o jogador brasileiro iria “amarelar” e ser derrotado pela menor técnica, e maior vontade, dos vizinhos.
Quando Didi pegou a bola, levantou a cabeça e caminhou com a segurança de um príncipe etíope, cada pisada na grama ia esmagando séculos de conformismo, de complexo de inferioridade e de medo do sucesso. Nunca o sentimento de ser brasileiro foi exercido com tanta dignidade.
Para mim, foi a cena brasileira do século.
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Já não se fazem mais Didis como antigamente. O falecido Mario Sergio contava uma história simpática sobre o nosso (apropriação indébita) Waldir Pereira que dirigia, acho que o Fluminense, na época. Durante o treino no campo, Didi parado no círculo central o comandava. O Mario, moleque ainda, para testar, sempre que pegava a bola chutava para o seu treinador dando uma rosca diferente. Fez isso várias vezes. Em todas elas, Didi, com pequenos toques amortecia a pelota a seus pés. Depois de algum tempo, ele virou para o Mario e perguntou: “Você não vai desistir, não?”
Encaminhei este texto para amigos e para o grupo de WhatsApp do DCM.
O grande jornalista Leandro Fortes resumiu sua crônica com uma palavra que tenho a honra de repetir:
SENSACIONAL.
Lindo texto.
No programa Posse de Bola, da TV UOL, quando o José Trajano, veterano comentarista de futebol de 75 anos, fala alguma coisa do Didi, ele fica em pé e diz: “Pra falar do Didi a gente deve ficar em pé, sentado é desrespeitoso.”
Não vi Didi jogar,na copa de 1970,tinha nove anos e,Didi era técnico da seleção do Peru mas, aquela figura altiva,serena,digna, privativa dos grandes líderes, sempre me impressionou.Salve Didi!
Caro Nassif. Entre 50 e 58 ainda houve a humilhante Copa de 54, em que nossa seleção venceu apenas um jogo, se a memória não me falha. No máximo 2. Empatou outro e foi derrotada fragorosamente pela Hungria de Puskas por 4 x 2, com direito ainda a um final com pancadaria e ameaças. Em 58 Didi foi eleito o melhor jogador pela mídia internacional e foi aclamado como “Rei”. Ainda no jogo contra a França, na semifinal, Didi, conforme suas memórias publicados em O Cruzeiro, decidiu que precisava passar a bola pelo meio das pernas do comandante dos gauleses, o também mítico Kopa. E assim fez, E ao final da caminhada épica contra a Suécia, botando a bola no meio do campo, ele decretou: “Vamos acabar com estes gringos”. E assim aconteceu. Para mim, Didi segue sendo o melhor jogador de todos os tempos. Pelé foi o mais completo, jogava ateemo-nos de goleiro. Maradona o mais ousado. Messi o mais habilidoso. Mas Didi foi o maior.
Clap! Clap! Clap! “Sem aquela cena, não teria vingado a mobilização do presidente Juscelino Kubitschek, para superar o sentimento de inferioridade do país.” PERFEITO! E é por isso que ainda sinto os agentes coloniais por trás de todo agachamento da Seleção Canarinho: É PROIBIDO SE SER FELIZ; bem sucedido.
Caro Nassif, tenho a mesma admiração por Didi que você. O Príncipe Etíope de Rancho, como o saudava Nelson Rodrigues acabou secundarizado pela imprensa brasileira por conta das exuberantes exibições de Pelé e de Garrincha, mas ele foi escolhido pela Fifa o maior jogador da Copa de 1958 e os europeus passaram a chamá-lo Mr. Football. Tenho um filme documentário de longa metragem sobre a conquista do Brasil na Suécia. Não sei se você conhece – 1958 O ano em que o mundo descobriu o Brasil. Terei prazer em lhe enviar o link, caso você não o tenha assistido. Aproveito para um pequeno reparo: o primeiro gol de Vavá contra os russos foi um genial passe de Didi, que com movimentos de corpo desorientou os zagueiros e deixou Vavá de frente para Lev Yachin. Abraço. Saúde. ps – produzi também uma série de cinco episódios a partir do material filmado para o longa. Estive em Poços de Caldas e em Araxá.
Contao-se que Didi veio da área ao centro do campo, bola sob o braço, dizendo: _ Calma gente. O Botafogo esteve na Suécia há alguns meses e ganhou de goleada em todos os jogos.
Lindo testemunho. Isto me parece História com H. Parabéns Nassif. Com 65 anos é a primeira vez que leio um comentário mais lúcido, sem a panacéia sobre Pelé.