Florestan Fernandes e os posseiros (1)
por Walnice Nogueira Galvão
Quem pensa que o envolvimento de Florestan Fernandes com a reforma agrária data de sua fase como deputado federal, enganou-se. O envolvimento era antigo e vinha desde que o professor, um intelectual militante como poucos, devotou-se à Campanha da Escola Pública. Muitos outros nomes ilustres, de vários matizes políticos, fizeram turnês de conferências pelo país afora. A campanha opôs-se à famigerada Lei de Diretrizes e Bases da Educação em tramitação no Parlamento, com Carlos Lacerda como seu paladino. A nova lei tratava de privatizar o ensino público, o que mais adiante a ditatura se encarregaria de executar. E a excelência do ensino público veria seu ponto final.
Uma vaga lembrança de certa foto do professor espicaçava minha curiosidade. Via-se nela Florestan falando numa mesa-redonda na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, enquanto militantes da reforma agrária, os chamados Posseiros de Santa Fé do Sul, que ficava ali perto, se postavam de pé atrás da mesa, empunhando bandeiras do movimento.
A lembrança reativou-se quando a Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, foi batizada, servindo como gatilho da memória outra foto dele, em tamanho natural, logo na entrada.
Passei a perguntar a todo mundo quem tinha visto a antiga foto com os posseiros. Indaguei de seus familiares, do pesquisador de imagens Vladimir Saccheta, de gente da Faculdade de Filosofia da USP, do Partido dos Trabalhadores e da mídia. Em vão.
Pouco se sabe que a Faculdade de Filosofia de Rio Preto foi a mais atingida pelo golpe de 1964, contando o maior número de presos entre professores, alunos e funcionários, bem como o maior número de cassados e expulsos, de todo o Brasil. Foi invadida e as prisões efetuadas já no dia 1º de abril. Outras escolas, de vários níveis, seriam mais atingidas pelo AI-5 de 1968, mas imediatamente após o golpe, foi essa. Tanto é que passou incólume pelo AI-5: nada mais havia a expurgar.
Seu corpo docente era constituído por diplomados da Faculdade de Filosofia da USP, a Maria Antonia. O recrutamento levara para Rio Preto o conjunto dos professores do Cursinho do Grêmio, cujos cargos eram ocupados por concurso. Fui aluna do cursinho e posso atestar sua alta qualidade,
E tinham criado uma escola de ponta, com projetos de vanguarda que puseram a cidade no mapa cultural, Entre eles, uma filial do CPC e um teatro chamado GRUTA nos moldes do Arena, que deu assistência e fez visitas ao filhote. O novo grupo apresentou-se em cidades vizinhas. Convocou-se uma competição de poesia em toda a região, intitulada Desova Poética, Instaurou-se a campanha de alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire. Discutiu-se inclusive uma Reforma Universitária que incluía representação paritária de alunos e funcionários, futura reivindicação por toda parte, em 1968. O florescimento político e cultural estava em sintonia com o restante do país, durante o governo Jango,
Foi lá que estreei na carreira como professora. Chegando para tomar posse do cargo, desci do trem e fui direto para a cadeia visitar meus colegas, os que me tinham convidado. Só depois fui-me apresentar à Faculdade, em que daria aula por dois anos, e que não era mais aquela com a qual tinha me comprometido. Uma desolação…
Meio século mais tarde pesquisadores passaram a resgatar do olvido essa saga, produzindo trabalhos que fui procurar quando os outros caminhos se esgotaram,
Vários começaram a surgir, e ainda surgem. De muito proveito foi a dissertação de mestrado de Caroline Maria Florido, defendida na Unicamp em 2013. Seu título dá uma boa ideia do que foi o florescimento e a repressão que o sufocou: Da efervescência cultural ao obscurantismo ditatorial: a história da FFCL de São José do Rio Preto sob o olhar da intervenção de 1964. Em artigo em que a autora resume sua tese, intitulado “A intervenção na FFCL de São José do Rio Preto em 1964”, encontra-se uma alusão a Florestan Fernandes e posseiros de Santa Fé do Sul juntos no mesmo dia na cidade (pp. 16 e 17), na sede da Faculdade de Filosofia. Estava no rumo certo…
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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