Gabiru de Floresta – A irreverência da Lezeira do Piauí em pessoa, por Eduardo Pontin

Lavrador do sertão do Piauí é retrato fiel do mestre cantador de Lezeira

Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (III)

Gabiru de Floresta – A irreverência da Lezeira do Piauí em pessoa

Por Eduardo Pontin

Fotos Francisca Sousa

Seu Gabiru de Floresta é cantador fino de Lezeira, manifestação cultural originária do sertão do Piauí. Festeiro experimentado, mantém viva a dança da Lezeira no pequeno município de Floresta do Piauí, de pouco mais de 2.500 habitantes. A Lezeira foi até fins dos anos 1990 uma das principais diversões do centro-sul do Piauí, época em que passou a concorrer com o rádio, discos, televisão e outras distrações. E se a Lezeira ainda hoje é cultivada em Floresta, esse fato muito se deve a Gabiru (Manoel Francisco de Lima, 5/6/1946).

Uma das características marcantes da Lezeira é que todos os seus participantes dançam e cantam, sem parar. O Mestre cantador entoa quadra de versos ancestrais enquanto todos os participantes respondem em coro.

Certa vez, Gabiru foi convidado a cantar Lezeira em terra alheia, onde os cantadores se apartavam dos dançadores, ficando parados, apenas entoando versos ao microfone. Quando chegou a vez de Gabiru, o florestense preferiu executar o seu papel ao modo tradicional. Pigarreou fortemente, limpou sua garganta e, de mãos dadas com as damas ao seu lado, fez a grande roda de Lezeira girar em sentido anti-horário, iniciando-a.

Sustentou a roda no gogó, que aliás, é um dos mais característicos no universo dos cantadores de Lezeira. A maior parte das quadrinhas da Lezeira têm a irreverência como marca. E Seu Gabiru é a irreverência da Lezeira em pessoa. Quem já presenciou uma Lezeira com Seu Gabiru como enfrentante sabe que há versos tão acanalhados quanto ele:

Minina, tu é tão linda

Tem a boca de melancia

Um beijim da tua boca

Me sustenta quinze dia

Dizem que quem é nascido em Floresta do Piauí é diferenciado. O Padre alemão Geraldo Gereon, que desde 1969 luta concretamente pelas famílias da região de Simplício Mendes, certa vez disse que se estivesse realizando uma missa em São Paulo e na plateia houvesse um florestense, ele saberia distinguir, tamanho o comportamento distinto desse povo. E Gabiru representa muito bem os nascidos em Floresta do Piauí, povo alegre, simples, trabalhador, que não perde uma oportunidade de dar risada. Esses fatos estão retratados na dissertação “Festividade Tradicional de Floresta do Piauí: a irreverência das lezeiras entre 1990 à 2000”, da historiadora florestente Iva Mércia da Silva.

Tudo pra Gabiru está bem, mesmo quando tudo vai mal. Faz piada de tudo, sem perder o respeito com ninguém. Gabiru goza de grande respeito perante a comunidade. Seu Gabiru é uma espécie de Cardeal da Lezeira. Homem simples, suas festas de aniversário movimentam toda a cidade. Mata-se boi, cabras e galinhas. O prefeito da cidade comparece, juntamente com vereadores, o médico que atende na UBS Zé de Toim e boa parte da população local.

E todas as festas em sua casa terminam com uma enorme roda de Lezeira comandada por ele, com a participação de seus filhos, netos e conterrâneos. Afinal, Floresta do Piauí é um dos redutos mais fortes de Lezeira do estado. Terra onde ainda hoje vivem cantadores veteranos afamados na região, como Expedito de Margarida e Dona Joaquina, 94, Dona Bilunga, 87, Chiquim Ferreira, 86, Helena Ferreira e Ana de Neco, 83, entre outros.

Nessas ocasiões, Gabiru não deixa de cantar quadras cheias de fuleiragem como:

As teinha dessa casa

Corre água sem chuvê

Si eu morasse nessa casa

Eu engordava sem cumê

ou

 Só queria vê meu bem

Trinta dia em cada mês

Cada semana seis dia

Cada domingo uma vez

A vitalidade com que Gabiru enfrenta uma roda de Lezeira durante horas é a mesma pujança com que encara a vida de lavrador. Mal o sol desponta e Gabiru literalmente pega o caminho da roça, percorrendo cerca de 1 km a pé para chegar ao seu pedaço de terra. Roça da qual, aliás, alimenta sua família, do alto de seus 76 anos.

Na roça, Gabiru faz de tudo, desde plantar e cultivar milho, feijão, macaxeira, melancia, até dar de comer aos bichos. É raro ver o Mestre cantador sem o seu inseparável chapéu de couro. Na hora do almoço, com sol escaldante, desce para a cidade, novamente de pés, para comer o feijão de Dona Teresa. Após o almoço, faz seu merecido e sagrado descanso na área em frente à sua casa, deitado em sua rede. Depois do sol diminuir um pouco o seu castigo, por volta das 15h00 Gabiru retorna a roça, de onde regressa definitivamente a cidade às 18h00, já com tudo escuro, andando ao fim de todos os dias 4 km a pé apenas no percurso para o seu trabalho.

Esse é o retrato perfeito do Cantador de Lezeira do Piauí: um homem que não conhece outra vida a não ser o trabalho de roça, o qual ama desempenhar, dominando todas as suas etapas de produção. Homem que não tem tempo ruim, qualquer hora é hora, haja sol (muito sol) ou chuva (pouca chuva).

Este mesmo homem não troca essa vida por nenhuma outra, come com fartura alimentos orgânicos plantados pelas suas próprias mãos e cura suas doenças com garrafadas de raspas de pau feitas por ele mesmo.

Quem trabalha na roça desconhece sábado e domingo, muito menos feriado. Todo dia é dia, afinal a terra precisa de cuidados diariamente, assim como os bichos do pequeno criatório também precisam se alimentar. O pequeno agricultor desconhece os feriados pátrios. Feriado para ele só mesmo Dia Santo, únicas ocasiões que deixa de trabalhar, como dita o costume antigo.

E mesmo após um dia intenso de labuta, Seu Gabiru ainda encontra forças para, de noite, brincar a Lezeira. Brinquedo irônico em seu próprio nome, quando trabalhadores e trabalhadoras rurais, depois de um longo dia de trabalho, dançam sem cessar por durante horas noite adentro. Há rodas de Lezeira que chegam a durar uma hora sem parar, com todos dançando e cantando, parando somente quando a leseira no corpo de fato os consome.

Mas todos terminam satisfeitos, afinal brincam a Lezeira e se riem com as quadras irreverentes que Gabiru sabe tão bem decantar:

Nunca vi fulô tão branca

Cuma fulô da cabaça

Você qué, eu também quero

Vamô fazê por pirraça

e

Quem quisé moça bunita

Cace no mei da semana

Do sabo pro domingo

Toda raposa é bacana

Seu Gabiru foi agraciado com o diploma de imortal na Academia Florestente de Cultura Popular, fundada em 2021 com o objetivo de valorizar os mestres em saberes e fazeres do município de Floresta do Piauí, incluindo-a no mapa cultural do Brasil sob o lema: “Tesouro Cultural no Coração do Sertão”.

Mestre Gabiru dispensa formalidades, desprezando a hipocrisia das grandes cidades, prefere o calor humano dos seus, que o entendem e o querem bem:

Você diz que me qué bem

Bem você num me qué, não

Quem qué bem chega pra perto

Dá um adeus e arrocha a mão

Às vezes o verso é tão risão que Gabiru acaba encerrando as rodas de Lezeira com uma enorme gargalhada. Aliás, a risada de Gabiru é sua marca registrada e representa muito bem a antiga Carnaibinha fundada por João Torres, hoje Floresta do Piauí, localizada no centro-sul do sertão.

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Eduardo Pontin

3 Comentários

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  1. !!! PARABÉNS!!! DELICIOSA LEITURA DE LINDA HISTÓRIA!!! REGISTRO IMPORTANTÍSSIMO DE NOSSA CULTURA!!! (Eu não conhecia a LEZEIRA! Gostei muito de saber! Agradeço muito!).

  2. Não tenho talento e arte para comentar tanta beleza dita e escrita por este jovem caçador e revelador de Gabirus no interior do sertão piauiense. Parabéns, pelo belo trabalho! E que você possa ser reconhecido e justamente recompensado pelo brilhantísmo de sua obra. Um abraço e toda minha admiração

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