Coluna original de 28/12/2004
Meu tipo inesquecível foi um advogado. Com ele aprendi o significado da sua profissão, o devotamento solitário e fervoroso à causa, a solidariedade ao cliente, o culto aos valores essenciais que tornam o advogado instrumento permanente de consagração dos direitos individuais.
Doutor Francisco Rangel Pestana era advogado da “Folha” quando, em 1984, meti-me no meu primeiro processo — uma interpelação de um curso de inglês denunciado na recém-criada seção “Dinheiro Vivo”. Otávio Frias Filho alertou-me, brincando. “Vá falar com o dr Rangel. Se ele for com sua cara, você esta salvo. Se não for, precisamos arrumar outro advogado”.
Subi à sua sala, no décimo andar do prédio da “Folha”. Atrás de pilhas de processos, estava a figura alta e grisalha, mais de setenta anos, olhar severo por cima dos óculos, medindo o interlocutor. “Vocês jornalistas são todos uns irresponsáveis”, começou ele, “parece que não atentam para o significado das palavras”. E indagou o que eu tinha querido dizer com determinada expressão forte a respeito do curso. “Isso mesmo que as palavras significam”, respondi-lhe, algo mordido. “Você tem provas sobre o que está afirmando?”, continuou ele. “Tanto tenho, que escrevi”.
Sua expressão foi mudando. “Posso escapar pela tangente e dar uma explicação que satisfaça o advogado da parte contrária ou posso partir para o pau. O que você prefere?”. Expliquei-lhe que o curso em questão tinha procurado aproximações pouco ortodoxas comigo, e que preferia que ele partisse para o pau. Seu olhar iluminou-se. “Então, vamos para o pau”. E ficamos amigos.
O decreto do Cruzado
Tempos depois, no governo Sarney, envolvi-me num processo maior, movido pelo consultor-geral Saulo Ramos em função de denúncias de alterações na segunda edição do Plano Cruzado –recriando as indústrias da concordata e da liquidação extrajudicial.
Rangel Pestana assumiu a defesa, num momento em que o país mal saía das fraldas do autoritarismo. Foi uma guerra. No meio do processo, fui demitido da “Folha”. E procurei Márcio Thomaz Bastos para assumir minha defesa.
Fui me despedir do dr. Rangel, e agradecer seu empenho. “Você não está satisfeito com meu trabalho?”, indagou preocupado. “Pelo contrário, é que estou saindo do jornal e o senhor é advogado da ‘Folha'”, expliquei-lhe. “Engano seu. A ‘Folha’ me paga, mas meu cliente é você”, respondeu. E me mostrou cópia de uma carta desaforada que havia mandado para Otávio Frias, quando ele lhe ordenou deixar minha causa.
Resolvi abrir o jogo. Disse-lhe que não tinha condições de pagar seus honorários. “Quem falou em honorários?”, redargüiu.
Sua atuação no processo foi heróica. Com problemas de saúde, chegou a sair direto do hospital para comparecer a uma das audiências, e retornar em seguida.
Quando o processo terminou –ele vencedor– já tinha condições de pagar ao menos parte dos seus honorários. Não aceitou. Comprei um jogo de canetas e fui visitá-lo em sua casa. Foi pouco antes de sua morte. Levei lá minhas filhas pequenas. Depois fomos até a Livraria Cultura, que mantinha um encontro todo sábado com jornalistas, poetas e escritores. Lá ele bebeu, divertiu-se a valer, contou histórias da mocidade, sua relação com Roberto Marinho, com a Antárctica.
Pouco depois morreu, deixando em mim lembranças para toda a vida.
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