Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Um dia de boxe, por Maíra Vasconcelos

Eu posso entrar e esmurrar a cara dela. E como é bom dizer isso agora. E diante de alguém que acha que vai ganhar é melhor ainda

Um dia de boxe

por Maíra Vasconcelos

Tinha passado a fase de dar seguidos socos no ar. E apenas no ar, durante semanas. Ficar uma hora na frente do espelho para aprender a me posicionar. Devidamente erguida e com a guarda alta. Guarda alta, guarda alta, gritam na sua orelha. Caminhar e olhar o reflexo. Dar um golpe e olhar o reflexo. Caminhar de lado pra frente e pra trás. Mais uma vez, outra vez. Jab, Direto, Jab, Direto. Cinquenta vezes na frente do espelho. Rápido. Mais cinquenta vezes Muitos anos repetindo essas sequências. Logo, seriam muitos Jabs e Cruzados treinando no ring..No espelho também. Rápido. Mais rápido. Não podem ver as suas mãos. Quando derem por si, já tomaram. Tem que entrar sem medo. De olho aberto. Não pisque. E você aprende a entrar no outro de olho aberto. De repente, depois de tantos anos, uma lutinha. Aquela mina achava que a luta estava ganha. É isso. Mas eu sabia que todos aqueles anos de treino não seriam em vão. Mesmo que eu perdesse. E um dia você enfrenta alguém que tem certeza que vai ganhar. Então você sabe que ela vai perder. E o boxe ensina. É o boxe que ensina. Eu estava sempre mais na defensiva. Cada um tem um estilo. Ou falo assim para justificar minha frouxidão. Depois que tomei a primeira, acabou. Não entrou mais nenhum golpe. E aí foi só administrar o gás. Porque ela na minha frente se desfazia. Ia morrendo na respiração. Eu olhava tudo com frieza atrás da luva. E me movimentava, sem parar. Você não pode parar, gritam isso também na sua orelha. Isso é sempre pior para o adversário, a velocidade. Ela vai perder. Eu sabia. Deveria ter avançado e acabado com aquilo logo. Ela não aguenta mais. Eu posso entrar e esmurrar a cara dela. E como é bom dizer isso agora. E diante de alguém que acha que vai ganhar é melhor ainda. No silêncio de segundos frios seu olho vê o perdedor. Nessa hora, o olho deve brilhar. Tenho certeza. Mas meu olho não brilhou. Não dei aquele soco para acabar com tudo. Não o fiz. Não o fiz e meu treinador sabia dessa falta de competitividade. Aquela presença que eu não tinha. Isso que aquele belo treinador também sentia falta. Ele queria me ver no pódio. E assim deixei ela se dissolver na minha frente aos poucos. Eu via cada respiro custar a vida dela. Se fosse hoje, eu entraria com três golpes. Um Jab, um Direto e na sequência um Cruzado. Se fosse hoje, eu deixaria mais claro quem é que tinha mais condição de luta. Ela merecia isso. E mais ainda merecia meu treinador. Porque ele confiava muito em mim. Ele queria me ver vencer. Quanta admiração aquele cara tinha por mim. Um treinador pode marcar a sua vida. Ele queria que eu soubesse de mim mesma. Ele apostava tanto em mim que armou essa luta. Em parte, foi ele que ganhou. Junto com o meu gás. Ele falava, vai lutar, vai sim. Depois vou trazer um gordo aqui pra você encher ele de pancada, o cara quer emagrecer e fica de corpo mole. Esse dia, como eu ri. Teve aquela vez que acertei um Jab em cheio no seu nariz. Ou talvez foi um de Direita. Já não me lembro, exatamente. Aquilo foi incrível. Realmente eu vi a sua cara virar. Mesmo com toda a honestidade e força exata que ele imprimia. Eu vi seu desequilíbrio na minha frente. Você viu o que você fez. Foi você que fez isso. E foi lá assoar o nariz.

Tantos anos de treino, guardo momentos felizes. Mas minha vida de boxeadora é um perrengue. Às vezes, chego pra treinar no final do dia e não posso fazer mais nada. Estou destruída. Trabalhei o dia inteiro. Mas o corpo vai e faz. O corpo disciplinado tem essa coisa mecânica. Vai lá e funciona. São os anos de treino. Você não consegue mecanizar um corpo a socar rápido e ser ágil e se movimentar se você não treinar. Repetir e repetir. Insistir. Cada golpe. Então agora boa parte do treino é só chegar e fazer. Pulo corda para me distrair. Agora, a única coisa que me serve é a luta. É o sparring. É fazer luvinha. Você chega nessa etapa e já sabe. Ou decide terminar ou vai pra luta.

São muitos anos. Treino, faço tudo certinho e obedeço o professor. Porque o que quero mesmo é fazer luva com alguém. Colocar o protetor. Sentir isso que a luta te dá. Ficar perto do meio-fio. Todo boxeador conhece a adrenalina do meio-fio. Olhar o meio-fio de lado. É isso, saber olhar o abismo. De olho aberto. Entrar e saber sair. Nada mais parecido ao ato de escrever. Isso de não saber como a sua cara vai terminar. Torito, Torito. Aposto que o Torito de Cortázar aprovaria tudo isso. Outro dia, depois de me ver treinar, um cara me chamou pra lutar uma exibição. É amador, mas é luta, é ring. É ter uma mina na sua frente que quer te esmurrar. Fiquei olhando dois segundos com cara de onça acuada, falei que iria pensar. A gente não pode recuar.

Outro dia, um cara foi embora antes de terminar o treino. Ele não sabia nada de boxe. Sequer posicionar o corpo. Deveria estar na frente do espelho aprendendo a caminhar e socar. Não estava porque era homem. Torito, Torito. O que você acharia disso. Cada soco dele era um desespero pra mim. Eu queria treinar. Pega aqui, estou virando o corpo pra você acertar, boludo. Yo me protejo. O cara suava em bicas. Un desastre el chavón. Não podia respirar mais. Era um treininho desses comuns. Coisa básica. Você entra com três, quatro sequências, depois o outro faz a mesma coisa. Mas nada. Ele não saía do lugar de perdedor. Eu pensava, se quero, acho que daria uns bons socos nesse aí. Mas a gente ria. O que mais poderia me interessar numa quarta-feira à noite treinando boxe. Rir com meu colega. A gente se diverte. Todo boxeador se diverte com essa história de saber dar uns socos. Torito embolava meio mundo. Mas Torito durou tão pouco, chegou só aos 29, pego pela tuberculose. Que incrível a narração de Cortázar, dos seus últimos dias cheios de glória no hospital. Parece que Torito queria sempre sacudir a cara de alguém. E sabe que também o que quero é isso. Me sentir ganhadora. Que patético foi aquilo. O que importa é ganhar. Subir em cima do meio-fio. Levantar as mãos. Mas nunca lutei pra valer. Parece que estou lutando boxe agora porque narro uma crônica como boxeadora. Por isso parece que já lutei. Ou que irei lutar um campeonato amanhã. Porque acredito falar como uma boxeadora. Torito, Torito, o que pensarias de tudo isso. Estarias ou não convencido, me pergunto.

*Torito, na voz de Julio Cortázar https://www.youtube.com/watch?v=eciEH_4c7Ho

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