Dos movimentos ininterruptos, por Maíra Vasconcelos
Sem flores e músicas o mundo desabaria no pouco que resta. A inquestionável importância das etéreas presenças. Entre as persistentes camadas de poeira, entre móveis hiperestáticos das casas emprestadas, entre os duros formatos e ângulos obtusos das salas de estar, nos armários pelos quais nos visitamos e despedimos. Condenados ao tudo fixo, angariar a estadia de hóspedes fugitivos, se flores e músicas morrem e renascem acima de nossos corpos.
Tais predileções dão-me bom dia, assim detenho absoluto silêncio até o chegar da tarde – a essa hora o sol já se abateu sobre quem puder. É cuidadoso se preparar ao meio-dia, os ponteiros ao centro indicam o sol alinhado a desabar. Cairá. Ninguém escapa, nem ao nada nem ao vazio – viver arriscadamente é uma arte quase morta, mas desejosa. Um crime por dia para justificar a vida. Beijemo-nos, e mais. Se controladamente não se cria nada, minha palavra não chegaria até a sala – e destrinchar toda a casa é o mínimo afazer.
Quem tocará o próximo piano?, uma pergunta importante e sem lógica. O piano deve ficar na sala, não o vendam, por favor. Não posso ser menos musical, menos floral, não posso ter mais nenhum móvel em mim, as casas se desfazem e espero pelos hóspedes vacilantes, apenas. E aos olhares com pedidos abstêmios, digo: respondo apenas às minhas gavetas cheias de escritos – uma palavra pulou de lá, às sete horas e trinta e um minutos. Às vezes, apenas deixo que se espatifem.
Adoro a música que cada casa aprende a cantar – seu quarto fala como clássicas ou jazz? Façamos soar a suíte de Debussy, essas três partes musicais que podem descer ou subir escadas. Vou descer um degrau para me alegrar mentir e brincar, amanhã. Ah. Ser menina é um prato predileto e maldito. Também escrever é como subir e descer escadas, indiscriminadamente. Como flores precisam respirar a terra para voltar, e o músico entender a morte nos aplausos para ter a composição. Como também o escritor precisa destreza para suportar ouvir o mundo.
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