Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
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Uma virada da ano – e de século – pelos olhos de um garoto trabalhador, por Gilberto Maringoni

Quase ninguém mais lê o maranhense Humberto de Campos (1886-1934) hoje em dia, salvo alguns estudiosos de História e Literatura.

Uma virada da ano – e de século – pelos olhos de um garoto trabalhador

por Gilberto Maringoni

Neste 31 de dezembro, posto uma crônica inusitada de 91 anos atrás, que comenta outra passagem de ano.

Quase ninguém mais lê o maranhense Humberto de Campos (1886-1934) hoje em dia, salvo alguns estudiosos de História e Literatura. A seu tempo, Campos foi um dos mais populares e comentados cronistas brasileiros. Não deixou uma narrativa de maior fôlego, para além de fragmentos em jornais e revistas. São produções que, reunidas em livro de tempos em tempos, fizeram ótima receita para várias editoras, até os anos 1980. As obras somam quase quarenta volumes de uma produção acelerada, realizada sempre de olho nas contas a pagar.

Quase instantâneos de época, são trabalhos que descrevem o cotidiano frenético dos tempos da República Velha, no Rio de Janeiro. Caso raro de literato de origem pobre naqueles idos, morreu precocemente, aos 48 anos.

A crônica aqui reproduzida saiu na revista O Cruzeiro, na primeira semana de 1931. Rica em detalhes e observações, mostra como uma criança que trabalha em regime de superexploração numa grande casa comercial viu a passagem do século XIX para o XX.

COMO EU PENETREI NO SÉCULO XX

Humberto de Campos (1886-1934)

(Revista O Cruzeiro, ano III, número 9, 3 de janeiro de 1931)

NEM A TODA GENTE É PERMITIDA A VENTURA de passar de um século para outro. Calino [de Éfeso, poeta épico grego do século VII a.C.] diria que isso acontece porque o fenômeno só se registra de cem em cem anos. As pessoas que hoje têm mais de seis lustros [trinta anos] lembrar-se-ão, porém, como festejaram a entrada do século XX e se despediram do XIX?

É o meu depoimento que aqui fica nesta primeira semana de 1931, para que se saiba que nem todos os mortais assinalaram aquela transição com divertimentos e festas. Costuma-se dizer que o que nos acontece no primeiro dia do ano acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicada talvez a minha paixão do trabalho e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a primeira hora do século XX e a última do XIX, trabalhando, como se elas não fossem na existência de um homem, diferente das outras.

DESEMBARCADO EM SÃO LUÍS aos 13 anos [vindo de Miritiba, hoje Humberto de Campos, a 150 km da capital] e entregue desde logo, por abandono da casa de um tio a que fora consignado, aos caprichos dos ventos do Destino, eu já era, nessa idade, um emancipado. Sem parentes, sem amigos, sem conhecidos que por mim se interessassem, procurava eu próprio meus empregos e sofria as consequências quando os abandonava. Antes de completar 14 anos, tinha sido, já ali, distribuidor de tipos (…) e tipógrafo (…). Exercia essa profissão quando obtive, a 2 de agosto de 1900, o lugar de caixeiro no balcão da Casa Transmontana, estabelecimento de bebidas e comestíveis de Dias de Mattos & Cia., à rua da Paz, canto da Travessa do Theatro.

O meu contato com os jornais punha-me ao corrente já do interesse, quase do nervosismo, com que se examinava no mundo a passagem do século.

(…)

O mês de dezembro de 1900 decorreu, (…) na esfera em que eu passara a exercer a minha atividade, festivo e animado. Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia se apagar, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara.

(…)

DESDE NOVEMBRO, O DEPÓSITO DA MERCEARIA se abarrotava de barris e de caixas recebidos diretamente da Europa, ou do Sul. Eram ameixas, fiambres, azeitonas, mortadelas, tâmaras, figos, queijos holandeses, conservas francesas e do Porto e vinhos da mesma origem. As minhas mãos, calejadas na lavagem de garrafas no tanque da casa, tinham se tornado roxas e engelhadas ao contato do Collares e do Bordeaux. E tudo isso ia sair nos últimos dias do ano, para a alegria dos homens abastados.

Na véspera do Natal, o movimento das vendas fora considerável. O estabelecimento enchera-se de fregueses, que saíam carregados de embrulhos, ou que deixavam suas notas de sortimento. Formiga diligente e pobre, eu me sentia contente e feliz, servindo as cigarras. Carregadores partiam com caixões e cestas, em que iam pacotes e garrafas. Do andar superior, onde residia o sr. José Dias de Mattos, chefe da firma, desciam fiambres louros, e tostados, com sua gargalheira de papel recortado, ornando o osso que fora a perna do porco. E assim, fomos até a meia noite, quando se fechou a casa, para recomeçar no dia seguinte, às 5h30 da manhã.

O DIA 31 DE DEZEMBRO foi, mais ou menos, como a véspera de Natal. Tendo também um bar em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Transmontana ficava às vezes com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno de mesas redondas. E naquela noite de fim de século não foi aberta exceção: ficamos a servi-los até as dez horas, quando os mais retardados se retiraram.

Através das sólidas portas coloniais inteiriças e reforçadas de chapas de ferro, como a dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com seu áspero ruído de ferragens, ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo.

Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos compartimentos da velha casa de comércio, o sr. Dias de Mattos torceu seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos e ordenou:

– Vamos dar balanço nas mercadorias… Comecemos pelas bebidas.

E tomando um caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas.

SEM UM PROTESTO OU UM MOVIMENTO DE MÁ VONTADE, atiramo-nos, os quatro caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortalezas de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de conhaque ou de vermute eram contadas e anunciadas em voz alta.

– Trinta e seis garrafas de conhaque Macieira!

– Trinta e seis de Macieira…, confirmava o patrão escrevendo.

Vinte e duas de Collares no. 1!

– Vinte e duas de Collares no. 1, repetia o sr. Dias de Mattos.

(…)

De repente, reboa ao longe, o apito de uma fábrica de tecidos. Um foguete estronda. Outras fábricas acompanham a primeira. Trepado em uma escada, eu conto, nesse momento, em uma prateleira alta, que fica sobre uma porta, algumas filas de latas de azeite de oliveira:

– Uma, duas, três… quatorze… vinte… trinta… trinta e oito.

O BUZINAR DAS FÁBRICAS, O ESTRONDAR DOS FOGUETES, a gritaria que vem das ruas, o Hino Nacional atacado ao piano em uma casa próxima, interrompem minha conta, detendo-me o dedo sobre o gargalo de uma das latas. Aquele momento é excepcional na História da Humanidade. A Civilização vira uma página lida, sem saber que emoções lhe reserva a outra que vai ler… De pé, na escada, tudo isso me passa pelo pensamento. Ao fim, porém, de um minuto, continuo a conta:

– Trinta e nove, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois…

E é ainda com a buzina de algumas fábricas retalhando o céu, com o estilete sonoro, que anuncio, do alto da escada, para o patrão:

– Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes!

E ele, com a mesma fleuma, sem levantar a cabeça do papel em que escreve:

– Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes…

E assim que, humilde caixeiro do século XIX, penetrei o século XX!

Gilberto Maringoni

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

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