Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A civilização se enxerga no abismo no filme “Cold Skin”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Nietzsche nos alertava que quanto mais olharmos para o abismo, mais ele se parecerá conosco. A co-produção Espanha/França “Cold Skin” (2017), do diretor Xavier Gens, vai desenvolver esse insight do filósofo alemão em um mix de Nietzsche (o abismo da não-razão que espelha a razão humana), Charles Darwin (monstros de uma ilha que parecem negar as leis da evolução) e o horror ao estilo de H. P. Lovecraft com elementos do fantástico. Um meteorologista vai trabalhar em uma ilha nos confins da Terra para lá encontrar o operador de um farol em uma guerra particular com criaturas humanoides que parecem negar toda a racionalidade humana representada nas leis evolucionistas. O simbolismo das luzes do farol que tenta iluminar as trevas é o das luzes da razão humana. Mas, como sempre, o homem esquece que essas mesmas luzes também produzem sombras.

Para os gregos antigos a noite era o momento do pensamento filosófico e da revelação intelectual e a coruja, por ser uma ave noturna, o simbolismo da busca pelo saber. “A coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer”, disse o filósofo Hegel numa alusão à esperança de que a Razão ganhe força em momentos de crise e obscurantismo.

A luz (o saber, o conhecimento) é buscada na noite. Essa ambiguidade é esquecida pelo Iluminismo que pretendia lançar a luz diretamente para a escuridão para a Razão se impor sobre as trevas, a ignorância e a superstição.

Porém, Nietzsche teve um rasgo premonitório diante desse otimismo iluminista de preencher o mundo com a luz da Razão: “Aquele que combate monstros deve ter cuidado para ele próprio não se transformar em monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você”, escreveu Nietzsche em “Para Além do Bem e do Mal”. Aqui o monstro não é a não-razão, mas uma forma ambígua ao mesmo tempo racional e irracional, ordem e desordem misturados dentro de um pacto civilizatório.

É com essa frase do filósofo alemão que o diretor Xavier Gens abre o filme Cold Skin (2017): a luta entre luzes e trevas que irá permear toda a narrativa. A luta de dois homens solitários em um farol em uma ilha isolada em algum lugar próximo a Antártida contra monstros que tentam invadi-lo, provocados pela luz que ilumina o mar revolto.

A crítica tem encontrado semelhanças de Cold Skin com o contemporâneo A Forma da Água. Mas ao contrário do filme de Guillermo Del Toro, não se trata aqui de buscar quem na verdade é o monstro. Ao contrário, e como alertava Nietzsche, o filme descreve como os protagonistas também vão se tornando monstros na medida em que descem ao abismo.

O farol que ilumina também cria sombras. Se em A Forma da Água como o suposto monstro cai nas mãos humanas que podem ser ainda mais monstruosas, em Cold Skin razão e não-razão, humanos e monstros convivem numa espécie de pacto autodestrutivo.

 

 

Seria o próprio pacto civilizatório? É o que o filme pretende discutir em um mix de Nietzsche (o abismo da não-razão que espelha a razão humana), Charles Darwin (monstros de uma ilha que parecem negar as leis da evolução) e o horror ao estilo de H. P. Lovecraft com elementos do fantástico.

O Filme

Estamos em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Um homem sem nome (apenas é referenciado como “amigo”) interpretado pelo ator britânico David Oakes está navegando em direção da extremidade da Terra para se afastar de tudo ou fugir de algo do passado. 

A narrativa nos dá poucas informações sobre quem ele era, mas a anotação em seu diário nos dá a chave do drama íntimo do protagonista: “Nunca estamos infinitamente longe daqueles a quem odiamos. Pela mesma razão, nunca estaremos absolutamente perto daqueles que amamos”. Ele é um meteorologista que aceita um trabalho em uma ilha nos confins do mundo numa espécie de autoexílio. Para fazer um trabalho monótono e insignificante: anotar diariamente a intensidade e a direção dos ventos.

A ilha inóspita possui apenas um farol (estranhamente cercado de estacas de madeira como um forte que se defendesse de alguma ameaça) e uma velha cabana na qual mora o antigo meteorologista que ele substituirá num período de um ano.

Rapidamente descobre o que aconteceu com o último meteorologista que esteve ali: à noite, a cabana é atacada por estranhas criaturas humanoides, escapando por um triz da morte. No dia seguinte, vai buscar ajuda de Gruner (Ray Stevenson), o operador do farol barbudo, solitário, mal-humorado e de poucas palavras. 

 

 

A princípio, o solitário Gruner nega a ajuda-lo, até descobrir que o “amigo” trouxe armas e munição, e que poderá ser útil em sua guerra pessoal que há tempos trava com os monstros locais: apesar das diversas possibilidades que teve de sair daquela ilha, Gruner quis permanecer para matar até a última criatura. Aquilo se tornou num empreendimento pessoal, numa guerra particular.

Assim como o “amigo”, Gruner também fugiu para aquela ilha para fugir da civilização – para ele, ali ele finalmente tornou-se o senhor do seu próprio destino. E o seu destino é matar aquelas criaturas que parecem contradizer as leis do evolucionismo de Darwin e a própria racionalidade.

Mas o abismo reflete a própria besta no interior do homem: Gruner mantém uma fêmea das criaturas humanoides, como um animal de estimação e escrava sexual. O nome dela é Aneris (Aura Garrido) numa impressionante interpretação dentro de uma apertada roupa látex cinza. Gruner a trata como um animal, mas não demora muito para o “amigo” meteorologista algo mais nela.

Aneris reflete e expõe a fera existente dentro dos homens, dando sentido à epígrafe nietzschiana que abre o filme.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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