Como compreender a disposição da subjetividade ao fascismo, por Euclides Novaes de Sousa

A personalidade exige essa organização de necessidades e, sendo assim, pode determinar preferências ideológicas que, claro, são dinâmicas

Theodor W. Adorno, “Estudos sobre a personalidade autoritária”, publicado em 1950.

Ou Como compreender a disposição da subjetividade ao fascismo

por Euclides Novaes de Sousa

The Authoritarian Personality, conhecido entre nós como Estudos sobre a personalidade autoritária, originalmente publicado em 1950, mas advindo de estudos de mais de uma década, onde contamos com os Estudos sobre autoridade e família, de Horkeimer e Adorno – é o resultado de um esforço para se entender o fenômeno do fascismo em sua subjetividade, isto é, como e por qual razão os indivíduos aderem às ideias fascistas e, ainda mais, tornam-se veículos de tais  ideais, posto que no limite podem alavancar e se comprometer com as ações fascistas. Compreendendo assim que o fascismo não é um acontecimento localizado e restrito a um momento histórico.

O estudo envolveu trabalho empírico-quantitativo, por meio de pesquisa de campo (com entrevistas e questionários), onde tenta se comprovar a hipótese de que o fascismo pode encontrar uma disposição na psique da população — o medidor é uma denominada “Escala F”, comportando muitas variantes, onde teríamos um indicador do quanto alguém é suscetível a concordar com mensagens autoritárias.

Há uma indagação de fundo que é importante descrever, por meio da seguinte formulação: por quê o fascismo torna-se possível dentro de uma sociedade tecnológica num tempo em que os valores democráticos são apresentados de forma geral como sendo importantes? Este estudo foi realizado nos EUA, em Berkeley, na Califórnia, chefiado por Adorno enquanto esteve lá, compondo uma equipe de estudiosos e entre eles o próprio Horkeimer, que conjuntamente cuidavam da parte de psicologia do projeto. Portanto, numa sociedade que aparentava ou se apresentava como democrática.

O resultado de então foi que os entrevistados eram não apenas suscetíveis às mensagens autoritárias, mas muitos apresentavam alto nível de concordância com a tal escala F (F de fascismo). Essa disposição não é gratuita: é anteriormente “trabalhada”, ou seja, operada pelos meios de comunicação de massa cuja propaganda antidemocrática é difusa, a malgrado de ambiguamente afirmarem a democracia. Isso já estava demonstrado no texto “Teoria da Propaganda Fascista”, do mesmo Adorno. Mas não só isso. As relações cotidianas já não são democráticas ou democratizadas, reflexo do ambiente político, social e econômico — e, portanto, contribuem assim para a formação de uma personalidade autoritária.

Não foi um estudo simples. Além da escala F havia também outras, envolvendo também questionários: AS – Antissemitismo; E – Etnocentrismo; PEC – Conservadorismo Político-Econômico, envolvendo questões projetivas, entrevista ideológica, clínica e teste de apercepção temática (TAT). Portanto, um amplo espectro visando cercar o problema por meio de pontuações e avaliações dos entrevistadores. Os itens são implícitos, não tocando no assunto diretamente para se evitar indução, ou seja, uma forma de mensurar o quanto a indústria cultural (mídia e atividade cultural) está presente na veiculação de ideologia e propaganda autoritária.

Além desse breve relato sobre metodologia, eu gostaria de mencionar que Adorno faz comparações qualitativas das opiniões entre os grupos e entre os indivíduos, sempre oferecendo uma explicação psicologizante (dado que as características formam uma “síndrome”). Os entrevistados diferem em pontuação nas escalas e desenvolvem formas variadas de preconceito – seja contra minorias, seja contra a política, seja contra Roosevelt e o New Deal, que então estava em pleno andamento e funcionando de forma razoável.

A publicação e a recepção da obra. O estudo de Adorno, junto aos seus colaboradores, é coerente com a crítica imanente derivada de seus trabalhos anteriores e em especial com Dialética do Esclarecimento, concluído em 1947 e com os estudos oriundos de Freud. No ano da publicação dos “Estudos”, 1950, Adorno retornava a Frankfurt. Continuaria seu trabalho no antigo Instituto de Pesquisa Social (mais conhecido entre nós como “Escola de Frankfurt”). A Teoria Crítica da Sociedade, cujo molde primordial era a crítica da sociedade tecnológica capitalista, ainda ganharia grande fôlego, com publicações importantes as quais Adorno daria contribuição decisiva.

É preciso dizer que não obstante a grande importância de The Authoritarian Personality, a obra publicada ficou um pouco esquecida, sendo apenas mencionada nos meios acadêmicos e sendo republicada, nos EUA, apenas nos anos 1990. E no Brasil suas principais partes apenas recentemente (2019), pela Editora Unesp. Os motivos pelos quais isso ocorreu ainda deveriam ser discutidos, como fazendo parte, em meu entendimento, do próprio problema do fascismo e da memória histórica.  

Aspectos gerais do estudo. A relação entre personalidade individual e comportamento social é complexa. O tipo autoritário de homem “…parece combinar as ideias e habilidades típicas de uma sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou antirracionais.” (p.29). Afirma Horkeimer na introdução da obra, ou seja: há uma ambivalência aqui que precisa ser explicada, pois é este indivíduo que será propenso às ideias e atividades fascistas e/ou antidemocráticas. O grupo de estudo, incluindo Adorno, evidentemente, entendia que só assim poderíamos obter elementos orientadores para uma educação democrática. Isso me parece o mais importante, pois nos fornece base teórica para a ação antifascista e democrática.

A investigação sobre antissemitismo (AS), por exemplo, incluído no estudo, seria um ponto de partida para o estudo do preconceito em geral e o preconceito contra minorias. De fato, pelo observado, as opiniões antissemitas dos entrevistados compunham a mesma base contra outras “minorias”, a saber, os negros e os imigrantes. Trata-se de um construto, onde o outro é perfilado como “feio”, “sujo”, “malvado”, etc. Podendo envolver até características também aparentemente positivas, tais como “inteligente”, mas que se voltam contra as características do in group  e se revelam, ao final, negativas. Há sempre uma “ameaça à civilização” na base destas convicções, daí a relação com o etnocentrismo (escala E). Isso pode parecer uma não novidade para nós. Mas o estudo é de 1950! Então deveríamos talvez aprender um pouco mais.

Classes sociais. Um dos investigadores no estudo, Daniel J. Levinson, alerta para um importante fato: não há uma relação simples entre pertencimento a classes sociais e o preconceito em geral e o conservadorismo. Portanto, não há uma relação necessária entre ideologia e classe social. E nem mesmo com a faixa etária. Mais uma vez, isso não nos parece ser uma novidade, mas auxilia na compreensão do “pobre de direita” – em termos mais específicos: como os indivíduos tendem a adotar ideologias que vão contra seus próprios interesses.

Perfil psicológico e o ambiente social. O estudo é apoiado fortemente em Freud. Possui um mérito excepcional ao tentar dar explicações que reúnam ao mesmo tempo as estruturas materiais da sociedade e as forças da personalidade individual — pulsões, desejos, impulsos emocionais, etc.

“Há necessidades emocionais primitivas, há necessidade de se evitar a punição e conservar a boa vontade do grupo social, há necessidades de se manter a harmonia e a integração dentro de si [self]” (p.79)

A personalidade exige essa organização de necessidades e, sendo assim, pode determinar preferências ideológicas que, claro, são dinâmicas. Importantíssimo dizer ainda que:

“… a personalidade se desenvolve sob o impacto do ambiente social e nunca pode ser isolada da totalidade social dentro do qual ela existe.” (p.80)

A personalidade se estrutura assim dentro desse ambiente e é capaz, plenamente, de ação. Não há nada de inato, “básico” ou “racial” dentro dessa estrutura psíquica. A personalidade é um potencial, mais ou menos estruturada e permanente da psique, que reivindica prontidão para um comportamento. Este, que estará de acordo, embora de forma contraditória ou padronizada, com os estímulos do ambiente social. É aqui que entra a propaganda fascista e/ou antidemocrática. E é evidente que isso decorre de interesses muito bem estabelecidos, econômicos e de poder. E certamente imerso em um ambiente propício: crise ou instabilidade.

“(…) O fascismo, a fim de ser bem-sucedido como um movimento político, precisa ter uma massa como base. Ele precisa assegurar não apenas a submissão temerosa, mas a cooperação ativa da grande maioria das pessoas. Uma vez que, por sua natureza mesma, ele favorece poucos à custa de muitos, não tem como demonstrar que irá melhorar a situação da maioria das pessoas a ponto de seus interesses serem atendidos. Ele precisa, portanto, fazer apelo, acima de tudo, não ao autointeresse racional, mas às necessidades emocionais — frequentemente aos medos e desejos mais primitivos e irracionais.” (ADORNO, 2019 p.88)

Se esses potenciais emocionais antidemocráticos já existem no meio social, a propaganda fascista torna-se mais fácil. E é aqui que entra em cena o papel da mídia, da imprensa escrita, auditiva, televisiva e… redes sociais!! Esta última merece um capítulo à parte, pois possui “poderes ocultos” que operam na personalidade de modo incisivo e eficaz. Mas esta parte quero dizer o mínimo, dado que envolve teorias da linguagem e semiótica.

Construção ou síndrome edípica. Não é nosso interesse fazer uma descrição exaustiva das teses de Freud, que entre outros estudos, também escreveu sobre os movimentos de massas. Importante aqui recordar algo do Complexo de Édipo para relacionarmos melhor com o tipo autoritário e o mecanismo psíquico envolvido.

Segundo Freud, o futuro psicológico da personalidade do indivíduo depende da relação com os pais. Aqui nos interessa a internalização no supereu no que diz respeito à autoridade e que nos remete à identificação, como uma resposta ao complexo na economia libidinal. Segundo o próprio Adorno:

A identificação é a expressão mais primitiva de uma ligação emocional com outra pessoa, desempenhando um papel na história inicial complexo de Édipo. Pode bem ser que este componente pré-edipiano da identificação ajude a provocar a separação da imagem do líder como a de um pai primitivo todo poderoso, da imagem paterna real. Uma vez que a identificação da criança com seu pai como uma resposta para o complexo de Édipo é apenas um fenômeno secundário, a regressão infantil pode ir além desta imagem paterna e por um processo anaclítico alcançar uma mais arcaica. Além disso, o aspecto primitivamente narcisista da identificação como um ato de devorar, de tornar o objeto amado parte de si mesmo, pode nos fornecer uma pista para o fato de que a imagem do líder moderno às vezes parece ser mais a ampliação da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, do que a imagem de um pai cujo papel durante as fases tardias da infância do sujeito pode bem ter diminuído na sociedade atual. (ADORNO, 2015 p.167/8).

Dada essa exposição, é muito fácil se desviar para um argumento de individualização: o sujeito autoritário é aquele que resolveu mal a internalização da autoridade devido a pertencer a uma família desajustada, cujos pais falharam na educação. É a explicação mais usual e insuficiente, que tenta justificar a existência de um líder cuja loucura seduz as massas. O intuito de todo os Estudos é justamente o contrário: as massas seguem o líder não porque foram simplesmente “seduzidas”, mas porque se identificam com ele. A família se orienta e evolui dentro de um ambiente social, educacional e econômico, onde as interações vão ser complexas — em outros termos, a família não é uma unidade isolada, onde o indivíduo dá respostas aos estímulos apenas dentro desse ambiente. Em uma sociedade narcísica as respostas serão por meio da identificação narcísica — a figura do pai, por exemplo, poderá ser externalizada na de um líder do tipo autoritário (projeção narcísica). Assim (grifo meu):

“O supereu, que deveria se comportar como uma obrigação impessoal e sublimada no interior do indivíduo, acaba, no entanto, “repersonalizado” em outra figura externa de liderança que substitui a autoridade familiar. Tal pessoa será escolhida pela filiação inconsciente com as características dos pais típicos dos mais preconceituosos, a saber, aquele que reproduz no interior da família os valores e exigências do capitalismo: fomentando a obediência pelo medo e intimidação…  reforçará o status quo econômico-social e culturalmente já dominante, prometerá bens materiais por recompensas morais, em suma, baseará seus argumentos não em conclusões racionais, mas em moralismos de fachada, manipulação de ódio e agressividade…” (COSTA, 2020 p.9)

Em outras palavras, a internalização da lei no supereu, que poderia levar o indivíduo a uma solução de autonomia, pelo contrário, pode, por estes motivos expostos, conduzir uma personalidade de um sectarismo cego e no limite violento e agressivo.  

Constituintes do ideário político.

Ignorância e confusão. Ambiente de confusão. Segundo o estudo, há uma ignorância geral em relação às complexidades da sociedade contemporânea, que por sua vez contribui para um estado de incerteza e angústia. Há muitos fatores que contribuem para isso. Materialmente, estas condições são mantidas e reforçadas por “poderosas” forças econômicas que, com ou sem intenção, mantêm as pessoas ignorantes. Os autores falam em “manipulação”, mas não aprofundam o tema. Só podemos depreender que naquele tempo jornais e outras mídias já embaralhavam o cenário político e social; o que aliás é coerente com o restante do estudo, no que diz respeito à propaganda fascista e antidemocrática que os autores analisam. Por seu turno, há os fatores subjetivos. A estupidez é mantida pelo próprio indivíduo a fim de não minar seu próprio padrão de identificação. Há fatores idiossincráticos da própria sociedade: um utilitarismo que visa apenas a sua satisfação e sucesso individual, alheando-se da política – embora isso não o constrinja de ter opiniões políticas. A política não é vista como algo que possa promover objetivos individuais. Os autores descrevem uma particularidade interessante neste capítulo e está relacionada à indústria cultural: notícias são vistas como entretenimento e misturam-se com os programas propriamente de entretenimento. Buscar um conhecimento aprofundado não combina com essa natureza da cultura. Sim, estamos ainda nos anos 1940…

Pensamento de ticket. Personalização da política. Os autores dedicam longas páginas somente a este item. Vamos dar um resumo, para que esta resenha não se prolongue demais. Pensamento de ticket é aceitar (muito facilmente) um bloco de ideias, sejam elas de qualquer área, e constar tudo como verdade, sem aprofundamento e na maior parte calcadas na estereotipia. Especialmente quando diz respeito a minorias: negros, judeus, imigrantes. E atinge indivíduos pontuados altos ou baixos em qualquer escala.

A personalização parece ser uma característica de longa data em nossas democracias. Campanhas políticas são fortemente personalizadas, exaltando mais o candidato que o partido ou o programa político. Conhecer alguém, falar sobre alguém é menos complicado que abordar questões. O jogo começa a ficar perigoso aqui quando aparece um candidato que atinge o supereu punitivo do indivíduo, isto é, entra em cena a identificação e projeção num candidato autoritário.

Enfim, vale a pena acompanhar uma pequena conclusão dos autores:

“…processos sociais cada vez mais anônimos e opacos dificultam cada vez mais a integração da esfera limitada da experiência de vida pessoal com a dinâmica social objetiva. A alienação social é ocultada por um fenômeno superficial em que o próprio oposto está sendo enfatizado: a personalização de atitudes e hábitos políticos oferece uma compensação pela desumanização da esfera social que se encontra subjacente à maioria das queixas de hoje. Como cada vez menos se depende realmente da espontaneidade individual em nossa organização política e social, mais as pessoas tendem a se apegar a ideia de que o home é tudo e a buscar um substituto para sua própria impotência social na suposta onipotência de grandes personalidades.” (ADORNO, 2019 p.370)

Há outros itens neste capítulo. Gostaria de destacar apenas mais um, que diz respeito a Franklin Roosevelt. Nele está concentrado o denominado “complexo de usurpação”. Trata-se de um sentimento de que ali não está o homem certo para governar, por vários motivos: “é negociante de guerra”, “comunista”, “internacionalista”, “não sabe lidar com dinheiro”, “esnobe”, “decrépito”, estão entre os qualificadores mais comuns. As justificativas são descritas nas próprias respostas — que em geral também associam o político à pessoa. Ou seja, não há separação de um e de outro. Então comunista porque dá dinheiro aos pobres, que deveriam trabalhar, em vez de receber ajuda do governo (como no caso brasileiro, o “bolsa família”); negociante de guerra e internacionalista porque tratou da paz nos encontros em Yalta; não sabe lidar com dinheiro e esnobe, porque “nasceu em berço de ouro” (FDR nasceu em família rica) e agora distribui dinheiro; decrépito porque está doente e velho — esse aspecto pessoal é associado ao New Deal, por atribuição semiótica, claro. Então todo o governo é decrépito. Os de pontuação baixa nas escalas tendem a ver aspectos positivos no governo de Roosevelt, mas não conseguem escapar a todos os estereótipos, tal como achar que o presidente era velho demais e o país necessita de alguém jovem. Alguma coincidência? Estamos nos anos 1930 ainda…

Outras opiniões correlatas. Os autores alertam que muitas afirmações dos entrevistados  não estão, de forma geral, confinadas a nenhum grupo em particular, sejam altos ou baixos pontuadores. Então por exemplo, extrapolando: burocratas e políticos: “ninguém presta”, “a política é suja”. Política e políticos são mal vistos de forma geral. E pelo visto, ainda hoje…

Vejamos outras afirmações dos entrevistados.

Realismo: é preciso ser “realista”, nenhuma utopia é válida, dado que a vida é dura. Outro determinante relacionado a este pensamento é o medo. Medo de mudança, do que poderia advir de uma realização utópica. Há uma grande ambiguidade aqui: tudo deveria ser mudado, mas a “realidade” é o que é (considerada como um dado da Natureza). O que leva o sujeito a uma atitude cínica: “deixe o mundo como está”.

Sem piedade dos pobres. Esse é um tópico, um dos poucos, que está mais confinado aos altos pontuadores. Possui sua contraparte na admiração dos ricos e dos bem-sucedidos. Esta característica é importante segundo os autores porque vai um forte elemento justificador de ações violentas em situações críticas, pois:

“…lança luz sobre a atitude potencial dos altos pontuadores em relação a possíveis vítimas do fascismo em situação crítica. Aqueles que mentalmente humilham os que já são, de qualquer forma, espezinhados são mais do que propensos a reagir da mesma maneira quando um outgroup estiver sendo ‘liquidado’.” (ADORNO, 2019 p.428)

Essa simpatia para com os ricos está relacionada com determinantes sociológicos: expectativa de ascensão social, visão de um mundo de competição, onde a pessoa vale pelo que pode conquistar. Mas há também os motivos psicológicos: projeção da punição que receberam, quando ainda criança ou jovem, pela própria compaixão pelos pobres (a criança, em geral, não gosta de ver o sofrimento alheio). Junto a isso, a educação recebida, de forma punitiva, pelos pais; a sociedade por sua vez responsabiliza os pobres mesmos pela sua própria pobreza e isso é internalizado pelo supereu de uma forma autoritária e que vai projetar para fora também numa figura autoritária.

No último capítulo do livro e também do estudo, os autores descrevem e discutem características tipológicas dos indivíduos — que eles chamam de “síndromes”, em altos e baixos pontuadores. A mais importante ou mais relevante para o nosso tema é a “síndrome autoritária”, que segue o

“…padrão psicanalítico clássico que envolve uma resolução sadomasoquista do complexo de Édipo… a repressão social externa é concomitante com a repressão interna dos impulsos. (…) O sujeito alcança seu próprio ajuste social apenas sentindo prazer na obediência e na subordinação. Isso traz à tona a estrutura de impulsos sadomasoquistas (…) O ódio resultante contra o pai é transformado, por uma formação reativa, em amor. Essa transformação leva a uma categoria particular de supereu. A transformação de ódio em amor… nunca é completamente bem-sucedida. Na psicodinâmica do ‘caráter autoritário’, parte da agressividade precedente é absorvida e transformada em masoquismo, enquanto outra parte é deixada ao sadismo, que busca uma saída em direção àqueles com quem o sujeito não se identifica: em última instância o outgroup.” (ADORNO, 2019 p.544)

O autoritário desenvolve traços de compulsividade, rigidez e prontidão para atacar aqueles que são considerados (socialmente) como “vítimas”.  É bom lembrar: este sujeito independe de classe social. Na Europa era um fenômeno de classe média-baixa. Aqui, nos EUA daquele tempo, em qualquer classe cujo status difere daquele ao qual aspiram. Em outros termos e traduzindo: não há uma relação necessária entre status social e desenvolvimento de uma síndrome autoritária, a depreender por esse estudo.

A tipologia autoritária pode ser resumida nestas variáveis (Adorno, 2019 p.135):

  1. Convencionalismo: adesão rígida a valores convencionais, de classe média [considerados em termos médios, mas que podem ser adotados por qualquer classe];
  2. Submissão autoritária: atitude submissa, acrítica a autoridades morais idealizadas do ingroup;
  3. Agressão autoritária: tendência a vigiar e condenar, rejeitar e punir pessoas que violam os valores convencionais;
  4. Anti-intracepção: oposição ao subjetivo, ao imaginativo, a um espírito compassivo;
  5. Superstição e estereotipia: crença em determinantes místicos do destino individual; disposição a pensar por meio de categorias rígidas;
  6. Poder e “dureza”: preocupação com a dimensão de dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase excessiva nos atributos convencionalizados do eu; asserção exagerada de força e dureza [a vida é dura e é preciso ser duro com tudo e com todos];
  7. Destrutividade e cinismo: hostilidade generalizada, desprezo pelo humano [e pelo sofrimento humano, em geral: normalização do tipo “acontece…”];
  8. Projetividade: a disposição para acreditar que coisas tresloucadas e perigosas acontecem no mundo; projeção para fora de impulsos emocionais inconscientes;
  9. Sexualismo: preocupação exagerada com “eventos” sexuais [e comportamentos sexuais no outgroup].

Uma palavra sobre religião.

Ao tempo da pesquisa a religião não refletia essa importância que ganhou nos dias de hoje. O evangelismo moderno, televisivo, que ganhou proeminência nos EUA nos 1970 e que se irradiou pelo mundo, ainda não estava no horizonte dos fiéis. Nem da política.

Os próprios autores constatam que, naquele momento, a religião era secundária na vida e na opinião das pessoas. Ora considerada como um meio utilitarista, na realização de metas, ora como meio subjetivo de tranquilizar a consciência. Não impedia que pastores e ex-pastores de igrejas atuassem na disseminação de propaganda fascista. Apesar disso, e a despeito da religião desencantada, observam os autores que ela atua como um resíduo, conservando-se na base moral individual e servindo como justificativa de opiniões mais conservadoras e de alguma forma até antidemocráticas, mas não tão essencial para escala F, a tendência ao fascismo – pois neste há uma tendência a acolher a religião como uma agência, entre outras, num eu cindido.

Em resumo, havia uma tendência de adotar a religião convencionalizada e como parte do status quo

Para o Brasil.

Importantíssimo estudo para nós brasileiros, mas não só, onde o fascismo (propensão ao ou in facto) vem crescendo há algum tempo. Caracteres antidemocráticos e autoritários já se abrigavam no perfil psicológico e comportamental do brasileiro. Portanto, encontramos uma predisposição positiva na população quando agentes políticos autoritários se oferecem na cena pública, pois são estes que vendem a ideia de que podem resolver os problemas nacionais, opondo-se ao governo ou à política (apresentando-se como antissistema), ainda que a evolução econômica se mostre favorável ou ainda que haja otimismo de melhora futura.

As raízes dessa disposição podemos identificar em nossa própria formação histórica: escravista, patriarcal, fortemente inclinada à punição física. Esse traço é marcante, enquanto sociedade colonial, nas classes aristocráticas, na figura do pai de família e senhor de terras. O fim da escravidão, o fim de um sistema colonial clássico, não contribuíram decisivamente para um outro perfil social — podemos dizer que se mantiveram como fatores de “longa duração” (nos termos empregados por Braudel) na mentalidade e psique brasileira, onde as soluções para os problemas sociais, políticos e até mesmo econômicos são associados à força, autoridade, punição exemplar e até justiçamento. Uma recapitulação recente desse nosso panorama social, que podemos aqui indicar, muito bom em termos de síntese, é o de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”; onde a autora descreve como o Estado Moderno brasileiro vai se erigir nestas bases autoritárias — infelizmente. Daí explicando também o forte militarismo que envolve nossas instituições, pois a República não modifica substancialmente o quadro econômico-social: o fato de a República ser fundada em bases militares vai ao encontro dessas permanências autoritárias.

O que muda, ou melhor, evolui num sentido de acentuamento desse traço é o desenvolvimento da própria sociedade em bases modernizadas. “Somos modernizados, não modernos”, já afirmava um grande economista. O traço autoritário vai se tornar um fenômeno de massas na sociedade modernizada. Daí que a figura autoritária independe do status social, tanto do líder quanto do seguidor. Estou fazendo sínteses que, evidente, merecem maiores estudos sociológicos. Mas estes não faltam. O que falta é uma maior difusão e aprofundamento de estudos tais como o de Adorno, com pesquisa de campo e envolvendo também investigação do perfil psicológico. O que seria perfeitamente válido para nós na medida em que poderíamos compreender tanto os fatores sociais e econômicos quanto subjetivos e a relação íntima dessas associações. Entender as aspirações de classe em termos ideológicos e psicossociais é essencial para entender o fenômeno do “pobre de direita” — que precisa, sim, ser explicado, a despeito da carga pejorativa que carrega. Mas esta nos remete justamente à questão proposta nos Estudos sobre a personalidade autoritária: como entender a tendência autoritária, o fascismo, o preconceito, o antissemitismo, nas sociedades modernas, tecnológicas, que se apresentam como democráticas, abertas, plurais…

Em nosso caso brasileiro a disposição autoritária – em sua forma mais recente, podemos afirmar com certa segurança – foi despertada no âmbito da Lava-Jato e da Guerra Híbrida, a partir da segunda década do século, fenômeno bastante visível a partir das manifestações de 2013. Esse foi o “ovo da serpente”, digamos assim. Se quisermos ir mais longe, talvez tenhamos que regredir ao tempo do “mensalão”, ainda no primeiro mandato de Lula, tempo em que a mídia operou incessantemente não apenas contra o PT, mas de forma oportuna contra as pautas de esquerda. E não só isso. Contra qualquer pauta que de certa forma democratizasse o cotidiano – como as pautas distributivas e compensatórias, por exemplo. Mas a sociedade brasileira já não era autoritária e conservadora? Sim, como demonstra Lilia Schwarz, na obra já mencionada; ocorre que esses caracteres, de longa duração, foram ainda mais acentuados pelo trabalho da mídia, como já dissemos, e estendendo ainda mais a cronologia, vem desde o início deste século, a partir do primeiro mandato de Lula. E agora temos as mídias de internet, redes sociais e aplicativos (não vamos esquecer do tik tok), que elevaram ao paroxismo a tendência autoritária na população. Não por acaso estamos sempre à beira de um fascismo maior, com candidatos cada vez mais de caráter autoritário.

Em síntese.

Como dissemos, o estudo ocupou-se de entender o fascismo e autoritarismo em sua dimensão social e psicológica e resultando, enfim, numa tipologia antropológica que é o do autoritário. A preocupação maior foi com o indivíduo potencialmente fascista e sujeito à propaganda antidemocrática. Evidente que todos os traços desse perfil vão se concentrar em poucas figuras, casos extremos. Toda tipologia é ideal e somente a realidade empírica demonstrará sua verdade. No caso dos Estudos, ao tempo em que foi realizado, concluiu-se que o caráter autoritário estava disseminado de forma difusa nas pessoas pesquisadas e em contradição com uma sociedade que  se apresentava e que se enxergava como democrática, plural e tolerante. Em contradição também com o ambiente do New Deal, que em seus esforços procurava recuperar a economia — e de fato estava sendo mais ou menos bem sucedido. Outro “achado” que podemos encontrar nos Estudos é que o preconceito, o etnocentrismo e outros comportamentos conservadores, não dependiam diretamente da classe social, sua origem ou nível instrução. Estava difusa; o que nos leva a compreender por que a sociedade moderna é permeável aos discursos antidemocráticos e autoritários. As razões estariam nos dois níveis inseparáveis: social e subjetivo. No primeiro plano porque a sociedade não é democrática ou não é suficientemente democrática ou ainda que se apresente como tal, não desenvolveu atitudes e costumes democráticos em seu cotidiano. No segundo plano, subjetivo, cuja interação com o plano social é dialética, desenvolve-se um conflito edípico cuja solução será a projeção e identificação com o caráter, o comportamento e o líder autoritário. O impulso autoritário, no limite a violência, decorre daqui.  A interação é dinâmica, reforçadora uma da outra. Em termos: o sujeito é submetido a fatores sociológicos e ideológicos que vão influenciar suas agências (agencies), isto é, sua capacidade de operar no mundo, de acordo com essa personalidade resultante. Entendamos: o autoritário está aí e age no mundo.

Adorno, em algumas passagens, atenta para o fato de que o ambiente geral em que ocorrem todas essas interações é o do capitalismo e suas bases materiais em que se desenvolve a sociabilidade humana.

Se esse estudo pode nos ensinar algo é o seguinte: se quisermos uma sociedade democrática, não autoritária e não fascista, temos que lutar para democratização de nossas instituições de Estado e, para além disso, de nosso cotidiano. O que nos leva a encarar o antidemocratismo  também das instituições privadas: a começar pela imprensa, seja escrita, televisiva, auditiva ou digital. Mídia. E por último, mas ao mesmo tempo, no plano da família. É nela que se dá e se resolve o plano edípico e a organização da personalidade.

Por onde e como começar? Isso é plano para outro artigo. Importa saber por enquanto ninguém está imune ao fascismo da forma em que se exerce atualmente, cujas características são distintas das do histórico em alguns pontos, muito semelhantes em outros, mas psicológica e socialmente de mesma ordem.

Euclides Novaes de Sousa  – servidor público do Ministério Público de São Paulo, formado em Ciências Sociais, História e Filosofia pela USP, com lato sensu em Língua Portuguesa.

Bibliografia comentada.

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. Trad. Virgínia Helena Ferreira Costa e outros. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

Importante destacar os coautores que trabalharam nessa pesquisa: Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford. Como dissemos, uma importante obra que aqui ficou inédita até 2019 e nos EUA só foi republicada em 1992. Só relatório da pesquisa, em si, possui mais de mil páginas. A presente obra é um resumo, mas bastante detalhada em alguns aspectos.

ADORNO, Theodor W. “Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista” in: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

Este é o importante ensaio que deve ser lido conjuntamente à obra dos Estudos, agrega conhecimentos da psicologia freudiana, fundamentais para se entender a suscetibilidade dos sujeitos a ideologias que podem ir contra seus próprios interesses.

COSTA, Virgínia Helena Ferreira. “A personalidade autoritária” de Theodor W. Adorno: conceituação do “tipo antropológico autoritário” e atualizações no neoliberalismo. 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020.

-Neste texto a autora, que ajudou na tradução e organização do livro acima, faz importantes atualizações dos Estudos para os dias de hoje, contemplando a era neoliberal. Há outros trabalhos da autora que visam aclarar a obra adorniana.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

-Editado no calor da Covid-19 e do governo Bolsonaro, a autora faz toda uma reconstituição de nossa herança autoritária: a escravidão, o passado colonial e o domínio dos senhores de terras.

Outras referências.

Inúmeras obras poderiam aqui compor a lista para a parte brasileira, em termos de nossas permanências. Mas quero destacar duas, que aproveitei para esta resenha:

CAIO PRADO JR. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1965.

-O autor discute o sentido da colonização e os fatores de seu prolongamento no tempo, além de uma descrição bem ampla do período colonial.

FLORESTAN FERNANDES. “A sociedade escravista no Brasil” in: Circuito Fechado. São Paulo: Hucitec, 1976.

-O autor discute a evolução da sociedade escravista, transição, resistências e legitimações. Texto obrigatório.

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