American Factory: quando um vago “choque cultural” mal encobre a luta de classes, por Márcio Alves de Oliveira

O filmado discurso sindical saudosista de um momento não completamente defensivo da classe trabalhadora se faz mais contra o patrão chinês do que contra um sistema de exploração patronal brutal

American Factory: quando um vago “choque cultural” mal encobre a luta de classes

por Márcio Alves de Oliveira

Concorrente ao Oscar de melhor documentário em Hollywood e ganhador da melhor direção documental em Sundance, AMERICAN FACTORY, disponível atualmente na base de filmes da Netflix, é bom pelo que mostra mas muito ruim pelo que não-mostra. O problema não é o recorte temático proposto sobre a vida operária e humana na globalização atual de um ponto de vista inusitado: no principal país imperialista do globo, uma empresa chinesa reabre em solo estadunidense uma fábrica fechada pela poderosa General Motors uma década antes, tanto com trabalhadores locais quanto chineses. O ponto problemático é seu desdobramento incompleto que acaba por reduzi-la a um momento chinês problemático de si, efetivamente existente, à medida que esvazia a tensão com o todo do problema capitalista até desfocar, em consequência, o próprio momento enfatizado sublimadamente como expressão de um todo que falaria por si. 

Sublimação que esconde primeiro a operária experiência passada antes do recorte fílmico em Ohio, já ela transpassada não apenas pela globalização produzida pelas contradições de gigantes do Capital como a General Motors, mas também pelas contradições mais fundamentais da produção capitalista e sua neurótica acumulação inversamente proporcional às possibilidades daquilo que o filme realmente espera captar no negativo: uma experiência mais humana do real, no caso seja chinesa ou estadunidense. Isso se evidencia já nas limitações do curta anterior dos diretores: “O último caminhão: fechamento de uma fábrica GM”, feito uma década antes na mesma unidade produtiva, e facilmente acessível na Internet, onde o foco completamente imerso na apreensão da perda do emprego é bem temperada por um misto de nostalgia e humor enquanto alguns operários montam e fotografam o desafio de seu último veículo automotivo. 

Mas o que é não-mostrado, e que, insista-se, não se trata do recorte que sempre escolhe também o que não é mostrado, vai além de um passado operário estadunidense mal resolvido no todo do problema capitalista filmicamente mais contornado que delineado. Contorna-se sublimadamente, inclusive, a presença Capital de uma General Motors em outras fábricas na atualidade presente, o porquê manifestou-se diferente mas sincronizadamente sua acumulação capitalista nos Estados Unidos e fora dele, sobretudo fora do chamado primeiro mundo, e, nó central desconsiderado no filme, o porquê da dissolução desta diferença de tratamento operário na esteira da consolidação do sistema produtivo capitalista e de suas contradições.

Entrevistando os diretores, Barack Obama, financiador do projeto, depreende bem do objeto filmado um vago “choque cultural”, o qual o ex-presidente estadunidense não deixa de positivar a partir de sua perspectiva liberal que obviamente não atina com o reducionismo aí embutido de toda luta de classes. E a forma particular chinesa não se desdobra filmicamente no todo da produção capitalista justamente pelo pressuposto relatado em seguida pelos diretores entrevistados: o puro e simples mergulho no objeto humano. Se decalca do fundo mal resolvido das experiências operárias e humanas uma contradição expressiva interessante do não-mostrar de si e do todo, de fragilidades e impotências que estão lá expostas diante da câmera supreendentemente sem maiores controles da gerência capitalista; algo, aliás, inusitado e talvez a ser pensado no limite entre o vago mas motivador “choque cultural” e a exposição social generalizada de si que faz da hipervisibilidade atual um modo ideologicamente eficiente de nada mostrar. Enfim, contornando o que se mostra, essa expressão sem contradição da contradição mostra, no final das contas, algo como uma pura e simples neutralidade dos afetos destas experiências aliviadamente íntegras em suas fragilidades. Na impaciência para ouvir o objeto fílmico no todo de suas contradições, a filmagem apressa-se a fixar apenas o retrair-se numa negatividade incompleta que visa, em última instância, impulsionar um real no fundo íntegro e já bem resolvido. E assim, tudo se apazigua com um misto de nostalgia e humor, como no curta anterior, na figura daquilo que não tão lá no fundo aliviadamente se esperaria ainda imaculado: o way life of american. Mesmo que preservado negativamente, o efetivo decalque fílmico é ainda a inefabilidade do tal-sonho-americano, e com ainda mais-valor de conciliação de classes.

Claro que o que cala as tensões no objeto apesar de si deve ser diferenciado da mera retórica de conciliação de classes abertamente cínica de um republicano como Mike Pompeo, atual secretário de Estado estadunidense, quando propõe uma contraposição trumpista ao capital chinês em solo estadunidense e no que consideram seu quintal colonial latino-americano. Enfatizando-se aqui supostos valores éticos desse capital transnacional supostamente local, exacerba-se ideologicamente conflitos globais como parte de uma guerra cultural, de fundo fascista, que serve de blindagem para se manter a unidade num império em decadência bem no meio de uma reestruturação profunda do capitalismo em crise estrutural. No atual cenário catastrófico e amedrontador, o humano e a ética sempre desmoralizados pela taxa de lucro tornam-se amplamente descartáveis e a luta de classes mais evidente, assim como seu encobrimento sobretudo pelo sistemático não-enfrentamento do real. Por isso, numa tal conciliação de classes cínica, os sindicatos e movimentos sociais absurdamente são postos de joelhos em troca de um subemprego, chamado ideologicamente de emprego, que não evitará o descarte humano segundo a racionalidade sistêmica da taxa de lucro. E seguindo a tendência atual de ampla indiferença para a coerência dos próprios discursos, um princípio de realidade típico do Capital permite manter, ironicamente, o investimento chinês em solo estadunidense e adjacências, assim, evidentemente, como o contrário. 

Mesmo princípio de realidade cínico que pareceria talvez relativizar o alinhamento inicialmente incondicional de um Brasil que demarca historicamente seu processo de recolonização através de um golpe de Estado em 2016 e que se encontra agora em processo de desmonte completo de qualquer traço de autonomia e dignidade humana através da síntese laboratorial perfeita para o  Capital operada entre uma figura fascista com tons milicianos brasileiros como Bolsonaro e o ultraliberal Paulo Guedes de origens pinochistas. Mas essa expectativa de relativização de um alinhamento incondicional ao império em decadência no meio de uma crise estrutural do sistema capitalista faz parte das ilusões socialmente compartilhadas, em parte inclusive pela esquerda, sobre uma reconciliação de classes no Brasil, o que não atina para as contradições pelas quais avança, mais do que recua, o processo de recolonização.  

Já na conciliação fílmica democrata de American Factory até se mobiliza elementos críticos da sociedade capitalista, mas enviezadamente como no discurso de um sindicalista trazido por operários da fábrica para convencer os demais a enfrentarem o patrão pela criação de um sindicato. Discurso emoldurado por uma trilha sonora que o destaca por um juízo de contrabando dos diretores, pois supostamente só quereriam “mergulhar no objeto”, e ao mesmo tempo o conecta firmemente às narrativas tateantes operárias através de enquadramentos e ritmos mais explicitamente estudados do meio para o final do filme, no sentido claro de fornecer aí uma narrativa bem concatenada historicamente, conforme, claro, o que é encucado como tal por uma certa padronização cinematográfica atual. Preconcebendo a busca de relações mais totalizantes de experiências fragmentadas como preconcepções, como dizem os diretores na entrevista acima citada, desfoca-se a tensão por sentido que há simultaneamente no objeto e no olhar por detrás da câmera. Com seus limites ficcionais expostos involuntariamente, a tensão documentada vai sendo represada num repasse formal em-si-e-para-si que, supostamente bem resolvido num ensimesmado girar em falso, deixa de escutar o objeto fílmico em nome, ironicamente, do tal-mergulho-no-objeto. 

O filmado discurso sindical saudosista de um momento não completamente defensivo da classe trabalhadora se faz mais contra o patrão chinês do que contra um sistema de exploração patronal brutal, o qual fica mesmo amenizado pelo que chega a parecer esquizofrenicamente uma suposta era de ouro de bons patrões pura e simplesmente descontinuada pelo modelo patronal chinês. Compartilhando da ambiguidade do discurso de quem afinal, podemos especular apesar dos limites do filme, poderia apenas estar modulando-o conforme o bom-e-velho pragmatismo sindical, os diretores recusam-se a ouvir completamente as contradições gritantes. Trabalhando na chave de uma quase fantasia, fica-se envergonhadamente preservado ao fundo uma vaga era de ouro, talvez com a tal-boa-e-velha empresa estadunidense General Motors perversamente idealizada na chave do bom burguês; embora, num chiste involuntário, não sendo ela, todavia, uma empresa do passado, e isso nem lá nos Estados Unidos nem acolá na China ou em qualquer lugar do globo, onde continua a perseguir os mesmos objetivos capitalistas brutais que seus concorrentes cada vez mais transnacionais. Idealização feita na cena exemplar, e não apenas nela, por estruturas sindicais burocratizadas resilientes no tal-sonho-americano, sempre expresso entre a eficácia e a perversidade de uma conciliação de classes cada vez mais improvável no atual estágio de evolução do sistema social capitalista centrado na luta de classes, e tergiversada por mecanismos ideológicos como o de um “choque cultural”. O objeto fílmico grita por sentido o tempo todo! Mas para ouvir há sempre que enfrentar suas pressuposições e as dos objetos que se busca compreender, e não fazer resilientemente tábula rasa deles. No Brasil, no Estados Unidos, e em qualquer lugar do mundo, ou os trabalhadores lutam como classe, enfrentando, inclusive, as recorrentes tergiversações de supostos e tolos passados de ouro, ou não barram a precarização que tende a descarta-los ou escraviza-los na crise estrutural capitalista, a qual vai abrindo, sufocantemente, espaço para a globalização de um viés fascista como um sintoma local maior e global da barbárie em que já mergulhamos, e da qual sairemos apenas como classe em luta.

Márcio Alves de Oliveira, Professor do Instituto Federal de São Paulo

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A minha leitura do documentário é extremamente mais simples:
    Para contrapor um capitalismo norte-americano a um capitalismo chinês, como se houvesse diferença dos pois, o filme recai numa visão duplamente racista, são chineses, magros, ruins e eficiente verso os norte-americanos gordos, bonachões e extremamente ineficientes.
    Conclusão: Os norte-americanos devem fazer regime e ficarem elegantes para que consigam vencer a competitividade dos chineses, evitando assim o perigo amarelo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador