ABI: Há 85 anos Moses lançava concurso que deu origem a um edifício eternamente moderno, por Rogério Marques

Vários arquitetos e escritórios participaram do concurso organizado por Herbert Moses. Os vencedores, com um projeto de arquitetura moderna concluído em 1938, foram dois irmãos ainda desconhecidos, Marcelo e Milton Roberto.

ABI: Há 85 anos Moses lançava concurso que deu origem a um edifício eternamente moderno

por Rogério Marques

1936. Ao contrário da decadência e do esvaziamento atuais, o Centro do Rio vivia um momento de efervescência na arquitetura. Nos amplos espaços surgidos com a demolição do Morro do Castelo, diversos prédios começavam a ser erguidos na então capital da república. Alguns se tornariam marcos da arquitetura moderna, como o edifício-sede da Associação Brasileira de Imprensa e o Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema, que em agosto o governo federal ameaçou leiloar, gerando protestos em setores da cultura no Brasil inteiro. 

Vários arquitetos e escritórios participaram do concurso organizado por Herbert Moses. Os vencedores, com um projeto de arquitetura moderna concluído em 1938, foram dois irmãos ainda desconhecidos, Marcelo e Milton Roberto. Nasceu naquela época o escritório MM Roberto, que fez história e ganhou mais um M quando o terceiro irmão, Maurício Roberto, também se tornou arquiteto.

O professor Cláudio Calovi Pereira, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez dissertação de mestrado sobre os irmãos Roberto em 1993. O trabalho, que dedica boa parte ao edifício da ABI, tem o título “Os irmãos Roberto e a arquitetura moderna no Rio de Janeiro (1936-1954)”. Em entrevista ao site da ABI, ele diz que até hoje volta ao tema e estuda o trabalho dos irmãos arquitetos. Em suas pesquisas para a dissertação, conseguiu documentos e dados importantes sobre o certame organizado por Moses.

CONCURSOS E POLÊMICAS

Apenas um ano antes do concurso da ABI, um outro, para a construção do Ministério da Educação e Saúde, foi motivo de polêmicas e de críticas, principalmente de entidades de classe dos arquitetos. O ministro Gustavo Capanema, que organizou o certame, em 1935, rejeitou o projeto vencedor, de Archimedes Memória, que não foi do seu agrado, e convocou Lucio Costa, que montou sua equipe: Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Ernani Vasconcellos e Carlos Leão, com consultoria do já então famoso arquiteto franco-suíço Le Corbusier.    

Em sua dissertação de mestrado, o professor Calovi relata que Herbert Moses, admirador da arquitetura moderna, desejava para a ABI um edifício nesse estilo. Teria procurado, então, montar um júri sobre o qual tivesse controle, para evitar a repetição do episódio que envolveu Capanema no ano anterior. Mas isso também foi alvo de críticas.

 “Homem influenciado pelas ideias de Frank Lloyd Wraight [arquiteto estadunidense], do qual fora tradutor em conferências proferidas no Rio de Janeiro em 1931, ele não desejava correr riscos ao convocar um concurso de arquitetura. Assim, organizou um certame assegurando controle sobre o júri, formado majoritariamente por membros da direção da ABI e completado por engenheiros e arquitetos de órgãos especializados. Tal medida provoca protestos do IAB, registrados na imprensa da época.”

O concurso da ABI mobilizou muitos arquitetos. Alguns haviam participado do concurso para a construção do Ministério da Educação e Saúde, como o próprio Arquimedes Memória, cujo projeto vencedor foi preterido por Gustavo Capanema. Na ABI, Memória e François Cuchet, seu parceiro no trabalho, receberam menção honrosa.   

UM PROJETO VANGUARDISTA       

O professor Cláudio Calovi ressalta a forte influência do arquiteto e urbanista Le Corbusier no prédio da ABI, como os pilotis, o terraço-jardim e grandes brise-soleils verticais, de concreto, tomando quase inteiramente as duas fachadas. Na entrevista ao site da ABI, ele destacou o caráter vanguardista do projeto.

“É o primeiro caso mais conhecido de um edifício que incorpora esses brises de forma tão sistemática. Nesse sentido o projeto é inédito. Le Corbusier pensou em colocar brises assim em projetos, mas ele não conseguiu construir isso antes da ABI. Então, sem dúvida esse é um ineditismo muito forte do projeto e outra razão pela qual o prédio da ABI adquiriu a fama que tem.”

Além das surpreendentes inovações estéticas – um prédio sem janelas –, os quebra-sóis permitem ao mesmo tempo claridade, arejamento e conforto térmico em uma cidade com verões de altas temperaturas. Isso é percebido de imediato por qualquer pessoa que conheça internamente o edifício, até hoje visitado por estudantes e professores de arquitetura do Brasil e diversos outros países.

COMO SERIA HOJE A ABI

O segundo lugar no concurso da ABI coube à equipe dos arquitetos Alcides da Rocha Miranda, Lélio Landucci e João Loureiro. Para compor a sua dissertação, o professor Cláudio Calovi obteve em publicações da época as perspectivas de dois projetos avaliados no concurso. Se o trabalho de Oscar Niemeyer, Francisco Saturnino Brito e Cássio Veiga de Sá, que receberam menção honrosa, tivesse sido vitorioso, a ABI hoje seria assim:

Ou seria como na ilustração abaixo, se tivesse vencido o projeto dos arquitetos Jorge Machado Moreira e Ernani Vasconcellos, que ficou em quarto lugar. Esses dois arquitetos também se tornariam famosos. Assim como Niemeyer, eles fizeram parte da equipe comandada por Lucio Costa que projetou o Ministério da Educação e Saúde, inaugurado oficialmente em 1945, bem depois, portanto, do edifício da ABI.  

Algumas publicações incluem Maurício Roberto, o irmão mais novo, como coautor do prédio da ABI. Segundo o site da instituição, essa informação está na revista Ilustração Brasileira, de outubro de 1978. Mas se houve alguma participação de Maurício na obra, certamente foi limitada, pela própria idade e falta de formação profissional.

No livro “Irmãos Roberto, arquitetos”, de Luiz Felipe Machado Coelho de Souza, o autor relata que “Maurício incorporou-se ao ambiente profissional precocemente, aos 15 anos de idade, em 1936, quando Marcelo e Milton já trabalhavam no projeto da ABI.”

O fato é que o projeto vencedor foi inscrito por Marcelo e Milton, que assinaram a obra, depois de concluída. Quase ninguém repara, mas os nomes de Marcelo e Milton Roberto, “architectos”, estão gravados discretamente na base de um dos pilotis do edifício-sede da ABI, logo na entrada, assim como o nome da empresa construtora Duarte & Cia. 

MUDANÇAS NO PROJETO ORIGINAL

Na entrevista ao site da ABI, o professor da UFRGS Cláudio Calovi conta que em 1992 esteve no escritório de arquitetura de Maurício Roberto, no Rio, quando fazia pesquisas para a dissertação de mestrado. Na ocasião, Milton e Marcelo já haviam falecido. Quase 30 anos depois, o professor lembra que recebeu de Maurício cópias de diversos trabalhos do escritório. Um dos desenhos a que ele teve acesso revela uma curiosidade: o edifício-sede da ABI parecido com o que conhecemos atualmente, mas com diferenças consideráveis. No esboço, os quebra-sóis vão somente até o quinto andar, para serem retomados apenas último pavimento. O letreiro com a sigla ABI também é muito diferente do atual: em vez das três grandes letras de metal no alto da fachada da Rua México, elas estão na quina do edifício, na parte inferior, como se fosse um letreiro luminoso.

Perspectiva de autoria dos irmãos Roberto. O edifício da ABI com algumas diferenças do projeto final: os quebra-sóis até o quinto andar e as letras ABI na quina do prédio, na parte inferior

Maurício Roberto morreu em 1996, quatro anos depois da visita de Cláudio Calovi ao seu escritório. O professor diz que o desenho aparenta ser a versão apresentada no concurso, “embora não se possa ter certeza disso”. Segundo ele, era comum, nesses concursos, haver modificações nos projetos aprovados originalmente.

“Os concursos de arquitetura em geral julgam anteprojetos. Ou seja, os arquitetos olham as exigências apresentadas, o terreno, os recursos disponibilizados e fazem uma proposta. Na execução muitas vezes algumas coisas são mudadas. É óbvio que não são mudanças fundamentais. Na ABI o prédio sofreu algumas alterações. Eu conheço algumas plantas que apresentam um subsolo com piscina. Isso nunca foi feito.”

PIONEIRISMO E DUAS INAUGURAÇÕES

No ensaio “Veredas da arquitetura modernista no Rio de Janeiro”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti diz que o concurso para a escolha do projeto da ABI, aberto em janeiro de 1936, foi concluído em julho do mesmo ano. No trabalho, Cavalcanti aborda o pioneirismo da construção e relata um fato curioso: o prédio teve duas inaugurações.

“A obra foi célere, e já em 10 de outubro de 1938 o presidente Herbert Moses convida os associados à ‘cerimônia de instalação de seus serviços administrativos na nova sede, no Palácio da Imprensa’. Em 13 de maio do ano seguinte houve a inauguração definitiva. Portanto, o prédio da ABI foi concebido antes da conclusão do projeto do MES [Ministério da Educação e Saúde] (1945), sendo então o pioneiro na aplicação dos elementos arquitetônicos modernistas: estrutura independente em concreto armado, pilotis, planta livre, teto plano e terraço-jardim, fachada livre e com grandes painéis de vidro e o tão propalado brise-soleil.” 

DE INÍCIO, PRÉDIO CAUSOU ESTRANHEZA    

Em suas pesquisas, o professor Cláudio Calovi constatou que inicialmente o edifício da ABI causou uma estranheza e gerou até algumas críticas.

“Mas isso foi mais sob o ponto de vista popular, porque é um edifício inusitado, tem formas muito diferentes das usuais, até hoje. A gente anda pelo Centro do Rio de Janeiro e vê aquela fachada com as faixas de quebra-sóis, os pilotis, aquela parede sinuosa em baixo que chega até os elevadores. É um prédio muito diferente do comum, então isso causou no uma reação meio de desconforto. Mas em seguida o edifício começou a ser publicado em revistas de arquitetura internacionais, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Itália e logo se tornou uma obra famosa. Isso serviu para terminar com todos os preconceitos. O uso intensivo dos quebra-sóis na fachada desse edifício é realmente algo inédito. Além de serem esteticamente revolucionários eles são tecnicamente eficientes, evitam a entrada do calor.”                            

NECESSIDADE DE REFORMAS

Há alguns anos o edifício, que é tombado pelo Iphan, precisa de reformas. A última de grande porte foi feita em 1983. O presidente da ABI, Paulo Jerônimo de Sousa, diz que a diretoria vem se empenhando em obter recursos de diversas formas. Pagê, como é conhecido, lembra que pouco depois de ter assumido o cargo recorreu ao Clube de Engenharia em busca de ajuda, juntamente com outros diretores.

“O Clube enviou um engenheiro e nós percorremos o edifício inteiro para uma avaliação. Só a reforma da parte elétrica, que é mais urgente, ficava em R$ 50 mil, e até hoje não temos esse dinheiro. Estamos recorrendo a alguns deputados para tentar conseguir emendas parlamentares voltadas para as reformas emergenciais do edifício. No ano passado o deputado Glauber Braga conseguiu uma emenda de R$ 400 mil. A verba foi para o Iphan, mas na época havia morrido um diretor do Iphan e não havia ninguém para aprovar o projeto. Aí perdemos a emenda porque venceu o ano, caiu em exercício findo. Depois o superintendente do Iphan esteve aqui, pediu desculpas. Agora estamos tentando de novo, com alguns deputados.”   

Para o professor Cláudio Calovi, hoje, decorridos 83 anos da inauguração, o edifício-sede da ABI continua se destacando pela modernidade.

“Tanto tempo depois ele continua sendo algo inusitado, algo incomum na paisagem do Rio como obra de arquitetura. É um prédio que mantém o seu destaque. É um exemplar muito importante. O tombamento é merecido, merece estar preservado. Ele foi concluído muito antes do Ministério da Educação e Saúde, então é um edifício que realmente é pioneiro no surgimento das manifestações modernas da arquitetura brasileira. O Marcelo e o Milton Roberto não tinham o projeto do ministério para influenciá-los, eles estavam projetando sem saber como seria o edifício do ministério.”

Rogério Marques é jornalista e conselheiro da ABI

Redação

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