Jubileus paulistas (1)
por Walnice Nogueira Galvão
Em 1954, a derrota da chamada “Revolução Constitucionalista” ainda ardia na pele dos paulistas e só assim se entende a esdrúxula escolha da data para os festejos do IV Centenário da cidade de São Paulo. Pois, como todos sabem, o dia da fundação da cidade, devidamente documentado e corroborado, é 25 de janeiro. No entanto, a comemoração foi marcada para o dia 9 de julho – data da eclosão da insurreição paulista em 1932.
Derrotada nas armas, a insurreição a serviço da elite paulista fora detonada pela ameaça de enfraquecimento da férrea liga do Café-com-Leite. Assim era alcunhada a aliança dos cafeicultores paulistas com os pecuaristas mineiros, aliança que comandava a política nacional e que fez os primeiros presidentes da República. A aliança temia ser alijada do poder, como de fato logo seria com o advento de Getúlio Vargas, que vinha do extremo Sul tradicionalmente em escanteio, e sua longa ditadura. Ao ser derrotada, trataria pressurosa de afirmar seu predomínio no campo cultural, criando apenas dois anos após a derrota a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, só com professores estrangeiros (1934).
Poderíamos falar em “revanchismo deslocado”, já que o litígio por hegemonia se transferiu das armas para a cultura? Há quem concorde, há quem discorde. Ou poderíamos aludir à guerra como prolongamento da política por outros meios, com Clausewitz, mas com uma variante: neste caso, o outro meio seria a cultura.
Não era por falta de precedentes ilustres, pois a cidade fora palco da Semana de Arte Moderna de 1922 apenas doze anos antes, com o devido escândalo causado pelos irreverentes vanguardistas que sacudira os alicerces. O pacato burgo oitocentista começara a se agitar.
O sentimento bairrista hoje é algo quase desaparecido, mas predominante naqueles anos. Encontrou via de expressão, imiscuindo-se nas comemorações do IV Centenário, erigindo no Ibirapuera o Obelisco como mausoléu para os derrotados mortos na insurreição. Guilherme de Almeida, poeta do Modernismo que produziu muita poesia do “orgulho paulista”, teve versos seus inscritos nas paredes do monumento onde também repousa.
Após a Segunda Guerra, o florescimento cultural em São Paulo expressa-se numa série de medidas, Em 1950 ergue-se o Teatro Cultura Artística Logotipo e assinatura da cidade, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), na Avenida Paulista, projetado por Lina Bo Bardi, foi fundado em 1947 mas só inaugurado em 1959. O Museu de Arte Moderna, o MAM, é fundado em1948, São contemporâneos o Teatro Brasileiro de Comédia em 1948 e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz em 1949, empreitadas do industrial italiano Franco Zampari. O TBC nasceu na Faculdade de Filosofia da USP, a partir do Grupo Universitário de Teatro, o GUT (1943), conjunto amador de alunos dirigido por Decio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, futuros professores da casa. Data de 1949 a criação da Filmoteca Brasileira, também anexa ao MAM, que passaria a Cinemateca independente em 1956.
Em 1953 surge a Escola de Samba Verde e Branco, que deu um novo impulso ao samba paulista, num panorama em que já fora precedida pela VaiVai em 1930 e pela Lavapés em 1937.
A Bienal Internacional de São Paulo é criada em 1951 e terá sua maior edição em 1953, demorando-se propositadamente até o ano seguinte para coincidir com as celebrações do IV Centenário da cidade, para tanto mobilizando fartos recursos. Foi de uma opulência incalculável: nada menos que 100 obras de Picasso, inclusive a monumental Guernica. Sem falar em retrospectivas completas dos mais reputados artistas plásticos do planeta.
Todos esses avanços no campo cultural prepararam o ambiente para a celebração do IV Centenário, quando a capital completou 400 anos.
Entre os festejos do IV Centenário conta-se o Congresso Internacional de Escritores, patrocinado pela Unesco, que convocou relevantes figuras das letras e até um prêmio Nobel como William Faulkner. E ainda o Festival Internacional de Cinema, que exibiu 300 filmes de 23 países, além de trazer uma delegação de Hollywood e outra do cinema europeu.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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