Financeirização e desenvolvimento
por Cintia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella
No centro de aldeias, vilas e cidades nem sempre foram as atividades de troca comerciais que receberam atenção especial. Em certas aldeias ainda existentes as habitações que circundam uma área central que se dedica a encontros de diferentes naturezas. Em cidades antigas, práticas de cultivo e alimentação, culturais, religiosas entre outras formas de relacionamento eram primordiais.
As feiras, as trocas, o comércio existia, com evidências inclusive de mais de dois mil anos em determinadas regiões do planeta. No entanto, ao que tudo indica, “a vida era para valer, a vida era para levar” (caso possamos neste espaço fazer esta alusão à música brasileira). Exemplos de formas de construção, de arquitetura, de arte, de organização do espaço, bem como de relação com a natureza, para produção de alimentos apontam dedicação e articulação com a escala do tempo de maneira diferente que adotamos atualmente.
A construção de terraços para plantio, o acesso à terra pelas pessoas, expõe que diferentes grupos se organizavam em torno da produção de alimentos, de trocas, e de dedicação ao trabalho coletivo para alimentação e compartilhamento, como se pode reconhecer em civilizações existentes antes da chegada de europeus na América.
Mesmo mais recentemente, nas cidades oitocentistas, nas áreas centrais, ou onde a vista alcançava, capelas, igrejas, prefeituras, órgãos de controle, privilegiavam o curso da vida ainda não inteiramente suprimido pela lógica produtivista implementada pelo capital, a partir da potencialização da massificação do consumo como mote privilegiado de sua reprodução.
No alto de montanhas ou das serras as construções dedicadas a viver e avistar dinâmicas de vida se constituía. Não que não fossem modos de vida permeados também por relações de poder, por relações de violência. Frequentemente presentes, estas questões da opressão devem receber olhar analítico.
No entanto, o que queremos chamar a atenção aqui é sobre a centralidade que as atividades comerciais, e na trajetória histórica do capitalismo, as atividades de finanças, adquirem crescentemente nas relações, nas ações, e na organização dos espaços urbanos e rurais, bem como os objetos e equipamentos públicos e privados que constituem e condicionam as formas de vida.
A lógica de produção e de acumulação de capital, a partir da voracidade da exploração dos recursos e bens naturais e, da expropriação do trabalho humano de acesso à riqueza socialmente produzida sob tais pressupostos invade todos os espaços e tempos conformando formas de vida violentadas pela dinâmica da plena produção e do pleno consumo. Exemplo tácito de tal condição, encontramos no urbanismo que conforma a cidade moderna, tracejada e cortada por ruas destinadas a fluidez e velocidade dos carros, dos veículos de transportes. Aos seres humanos restam as calçadas, as faixas de pedestres, os sinais luminosos, os apitos dos guardas de trânsito, as buzinas dos estressados motoristas de carros, de motos, ou de ônibus, pressionados pelo cumprimento de horários e metas produtivas. E, esta discussão serve para reforçar que esta alteração completa do modo de viver dos povos também transforma o espaço, que reforça os processos que nele estão inseridos.
Desta maneira, ecoa um debate que acompanhamos com o mesmo nome deste título[1]. A discussão no canal da TV Grabois, começou com a seguinte questão: financeirização e desenvolvimento, trata-se de uma co-relação ou uma antinomia?
Não fomos convidados formalmente ao debate, e de maneira petulante, tomamos para nós este questionamento, mas, ao mesmo tempo, compreendemos que ao lançarmos nossas construções em rede, a ideia é também, justamente inquietar e convidar pessoas à reflexão. Assim, poderemos tecer algumas considerações.
No debate ocorrido, o doutor em desenvolvimento econômico Aloísio Sérgio Barroso, um dos convidados, alegou que a simplificação é inimiga da reflexão e que para entender e enfrentar os problemas da financeirização é preciso participação e acompanhamento sistemático destes processos, e nos lembra de Lênin para reforçar seu argumento dizendo que sem teoria revolucionária não há processo revolucionário.
Desta maneira, influenciados pelo debate e ao mesmo tempo considerando a trajetória de estudos sobre o termo desenvolvimento, gostaríamos de apresentar argumentos no sentido de compreender a financeirização como co-relacionada ao desenvolvimento.
Considerando que o termo desenvolvimento parece ter se sido apropriado, em função de sua potencialidade de carregar consigo a ideia de avanço, de superação de uma fase inferior para uma fase superior, este passou a ser utilizado com maior força, e com sentido mais específico, após a Segunda Guerra Mundial, em função de demandas dos países que se fortaleceram econômica e politicamente com as decisões, investimentos e estratégias executadas naquele período.
O sentido específico do termo desenvolvimento, seja em âmbito político, social ou econômico, parece estar atrelado a uma condição de melhorias econômicas e sociais, que poderia ser alcançada por países que cumprissem uma agenda de transformações ligadas ao incentivo à formas de produção e de consumo, com industrialização e sistematização dos processos produtivos, que justamente lançariam produção e consumo ao centro das atividades de diferentes povos ao redor do mundo.
A partir de uma agenda que se constitui desde seu nascimento internacional, centralizada, com interesses específicos de fortalecer uma política econômica, especialmente dos Estados Unidos e países da Europa ocidental, foram estruturadas organizações internacionais e formas de avançar para o interior de países, especialmente do Sul global, definindo as novas formas de se viver, pensar, de se comportar, de organizar os espaços imbuídos agora a produzir e consumir cada vez mais.
As áreas centrais das cidades, das localidades, portanto, passam a ser dedicadas às praças, lojas, mercados,… e aos poucos, também as áreas mais afastadas das comunidades e cidades, em função das disputas sobre valores imobiliários passam a receber e oferecer também espaços especializados em consumo, como supermercados, shopping centers, e outros.
Desta maneira, o desenvolvimento está intimamente ligado à disseminação de um modo de viver dedicado à plena produção para pleno consumo, ou, por reverso ao pleno consumo, para plena produção. E, para circular para posteriormente produzir foram necessárias estratégias e instrumentos da publicidade, do crédito, do endividamento, e da complexificação das relações comerciais, que alimentam a financeirização como a fase em vigência do capitalismo.
Assim, engendrado por processos políticos e econômicos, o desenvolvimento parece ser, não o caminhar de uma fase inferior para superior, mas sim formas de estimular transformações de vida das pessoas, das localidades e regiões ao redor do mundo a se tornarem partícipes; como explorados; para possibilitar do processo de acumulação de riqueza de povos dos Estados Unidos e países da Europa ocidental. Ou dito de outra forma, o desenvolvimento apresenta-se como a ideologia do capitalismo em sua fase neo-imperialista Pós-Segunda Guerra Mundial caracterizado, a partir dos anos 1970, pela desterritorialização e financeirização do capital em detrimento do trabalho, de comunidades, povos e países.
Neste sentido, a financeirização e o desenvolvimento estão correlacionados. Pois o aprofundamento do sistema capitalista só foi possível pela ampliação da acumulação de riqueza no âmbito do sistema colonial a que foram submetidas às terras e povos do “Novo Mundo” a partir do século XV, garantindo a captura dos recursos naturais, e posteriormente da disseminação de uma ideologia de produtividade para captura da força de trabalho, agora industrial, do Sul Global, com estratégias verticais de exploração.
Verticalizando o alcance dos locais pelos agentes globais, através das estruturas industriais e comerciais, foi possível organizar os sistemas financeiros e fortalecer agentes hegemônicos, aprofundando e complexificando as relações de poder.
Os bancos, as casas de câmbio, centros de operações de bolsas de valores, escritórios de fundos de investimentos, lugares da fluidez do dinheiro, dos homens rápidos e dos dados financeiros, é que vão passar a ser o ponto de convergência e interesse dos agentes mais poderosos do mundo. A trajetória das relações comerciais, com o advento do sistema capitalista proporcionou não uma racionalidade da produção, pois esta já existia, mas uma racionalidade de acumulação de riqueza, que necessita de expropriação do trabalho, da renda socialmente produzida.
Desta maneira, as áreas centrais se transformam em centros de decisão dedicados a pensar não o que produzir, não a organização social para produção, não a divisão da produção para garantia da sociedade, mas sim formas, maneiras de ampliar o acúmulo, e de dedicar fluxos para a continuidade do enriquecimento de indivíduos e grupos privilegiados em âmbito global, mesmo que por vezes o processo de enriquecimento não necessite passar por uma produção nos modos anteriores, dedicados a cultivos, vestimentas, ferramentas.
É por isso que por vezes nos deparamos com arquiteturas que ostentam o poder dos escritórios de finanças que refletem espelhados a miséria do entorno de suas existências. Talvez como forma de tentar expulsar de dentro destes prédios o que lá fora persiste miseravelmente, numa tentativa de apoiar aos que lá dentro estão de se manterem em suas vidas dedicadas à exploração que exige ignorar o sofrimento alheio. A classe média, trabalhadora, sobe os vidros dos carros, e a classe exploradora sobe andares e andares de vidros, por vezes também blindados.
Nesta quadra histórica do capitalismo de plena financeirização e especulação do capital pode-se considerar que a própria ideologia do desenvolvimento tão útil à lógica de acumulação do capital tenha sido abandonada, esvaziada. Afinal, trata-se de considerar que a desterritorialização do capital sequestrou a capacidade política dos Estados nacionais de estabelecer formas de regulamentação do capital, parte significativa dos trabalhadores perderam não apenas seus empregos, mas também seus direitos e, sobretudo as instituições que os representavam, os sindicatos. Subempregados, trabalhadores informais, trabalhadores precarizados, desalentados, a financeirização do capital capturou inclusive a economia (oikos = casa+ nomia=leis = oikonomia) que sempre se apresentou entre os seres humanos como capacidade de articular relações de produção como forma de manutenção de preservação da vida. Ou seja, a financeirização reduz a economia a estratégias agressivas de submissão dos seres humanos a lógica do débito e do crédito no contexto de fabricação diuturna de seres humanos endividados.
Neste contexto o governo de povos e indivíduos se faz por meio da dívida. Trata-se para o capital de governar massas de indivíduos endividados. A vida em qualquer forma que se queira imaginar foi capturada pela dívida. Talvez neste ponto do debate proposto possamos considerar a profunda relação entre desenvolvimento e financeirização, uma financeirização que promove alcance de estágios superiores apenas a pequenos grupos e inviabiliza a vida a dos demais povos, e espécies.
[1] A discussão pode ser encontrada no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=iGSY_Bnf8y4
Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia
Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia
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