Universidade e desenvolvimento, por Cintia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella

Graves problemas desafiam a formação de uma sociedade pensante e faz falta uma formação crítica em nossas instituições de ensino superior para pensar desenvolvimento.

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Universidade e desenvolvimento

por Cintia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella

É preciso repensar as comunicações, as comunicações em rede, fazer autocríticas. E parece que também é preciso fazer isso nas universidades, instituições de ensino superior e institutos tecnológicos. São corriqueiros os casos de arquitetos que não querem atender cidadãos de baixa renda, não indicam produtos de menor preço por receio de vinculação de suas atuações com classes mais baixas. Há casos de médicos que se recusam a atender determinados tipos de públicos. Há ocorrências de psicólogos que se recusam a atender determinadas demandas sociais. Há relatos de ocorrências de professores que se recusam a dar aulas para alunos que trabalham, que corrigem apresentações de materiais finais de curso com descaso, ou de forma grosseira, juízes, promotores, advogados que por vezes aparecem em denúncias por atuarem por vezes subjugam minorias, dentre tantas outras profissões que passam por formações sem considerar e acessar formação e discussão aprofundada sobre questões sociais cruciais vinculadas ao racismo estrutural, preconceito de classe, de machismo arraigado dentre outros problemas constitutivos de nossa sociedade.

Diante das contradições acima apresentadas é preciso considerar práticas e metodologias que advém de projetos sociais, que reúnem em grupos para estudos – professores, trabalhadores rurais, jovens – e exige que a as lideranças das atividades ocorram pela tutela de mulheres tem muito que ensinar às nossas instituições de ensino  e parte de profissionais nelas formados que se apresentam desvinculados das questões sociais marcadas pela precariedade, pela agressão e descaso.

Ao mesmo tempo, por  por maior que sejam as contradições de nossas universidades, centros universitários, faculdades e institutos tecnológicos, o processo de democratização do ensino superior expõe também o quão imprescindível o acesso ao ensino superior é para nossa sociedade.

Os anos de pandemia apontaram que a formação de profissionais, a profissionalização de diferentes áreas de atuação da burocracia brasileira, os investimentos em ensino superior nos anos anteriores a 2020 foram fundamentais para o enfrentamento dos desafios de atuação social em ambiente tão trágico. É possível considerar que a capacidade de formação de pessoas qualificadas para apoiar a manutenção da vida, nos serviços de saúde, nas diversas atividades envolvidas na organização social, (mesmo com o chefe do governo atuando contra a sociedade e a favor da morte na pandemia) realizadas por servidores públicos e demais trabalhadores que se desdobraram em atuar pela vida, e pela manutenção e funcionamento das instituições, é resultado da contribuição incomensurável das Universidades públicas federais, estaduais, das Universidades comunitárias, confessionais e privadas, bem como de Centros de ensino superior, de Faculdades isoladas interiorizadas, dos Institutos Tecnológicos, dos Colégios Técnicos e Tecnológicos presentes no território brasileiro.

Ou seja, é preciso considerar que para tanto todas estas instituições tiveram papel importante na formação destes profissionais que se mostraram comprometidos diante da trágica situação  provocada pela pandemia da Covid-19 neste país.

No entanto, ao longo dos últimos anos, o que nos parece também é que estas mesmas instituições se mostraram silenciosas e bastante discretas do ponto de vista de manifestações e estímulo às movimentações sociais críticas em relação aos problemas sociais, políticos, econômicos e ambientais que se avolumavam no país.

Tudo indica que diante da globalização econômica, da financeirização do mundo, da interconectividade global proporcionada pelos dispositivos eletrônicos, celulares, computadores, internet, as questões locais, regionais e nacionais não pareceram ser tema central da interlocução entre universidade e sociedade.

Se fizermos um exercício com o intuito de identificar atuações engajadas e ativas, é possível remeter a período razoavelmente próximo da história do país, em que a Universidade se colocava como instrumento de crítica e consideração das condições a que eram submetidas a sociedade. Nesta direção, ao longo dos anos 1990 do século XX, as Universidades foram destaque nas movimentações e greves que apontavam que governos se sucediam em tímidos investimentos em ensino, pesquisa e extensão no ensino superior.

Outro indicador importante a ser considerado é que no auge das crises e convulsões sociais brasileiras após 2010, com estímulos, mas também com indicativos consistentes de golpe à então presidenta Dilma Rousseff, após 2013, uma das manifestações social e política de maior destaque se constituiu a partir do movimento dos estudantes secundaristas contra cortes de gastos na educação em 2016. E, neste sentido questionamos, por quê? Por que as instituições vinculadas ao ensino superior não foram espaço de maior destaque nas manifestações após 2016? O que explica o silêncio do mundo acadêmico em relação a estas questões urgentes no contexto nacional?

Esta ausência de força nas manifestações se manteve ao longo do governo dos milicianos e, suas estratégias nazifascistas findado em 31 de dezembro de 2022. (Des)governo que reduziu, senão quase aniquilou drasticamente os investimentos em educação, saúde. (Des)governo que foi conivente e estimulou violências de toda ordem contra a população, contra a diversidade de pensamento, contra as mulheres, contra negros, pardos, contra indígenas, contra a comunidade lgbtqi+. (Des)governo a serviço da rapinagem econômica neoliberal em benefício da falaciosa lógica da economia de mercado, lançando milhões de brasileiros na condição de famélicos, outros tantos na condição de miseráveis e, não poucos na condição de pobres.

Então, é possível questionar, onde estava a força de mobilização das universidades que ao longo dos anos 60, 70 aos anos 1990 se unia aos demais movimentos sociais em marcha à Brasília  e, em diferentes capitais do país para exigir investimentos e atuação do Estado na atuação de suas responsabilidades, de seus compromissos com o financiamento e a manutenção dos bens públicos tão necessários à historicamente violentada população brasileira?

Estas questões, entre outras, exigem considerar que o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, a criar estruturas de ensino superior, a oferecer possibilidades de ensino e ensino superior às classes mais pobres, aos trabalhadores, e ainda hoje vivencia experiências escandalosas de profissionais que alegam não orientar, ou ministrar cursos para alunos que sejam trabalhadores, dentre outras manifestações grotescas de exclusão, humilhação da população, gerando episódios de suicídios, evasão, abandono, de horrores causados à população brasileira expropriada em sua condição e força vital e, por decorrência excluída da justiça social.

E, em casos menos contundentes, mas por isto não menos violentos quanto, as instituições de ensino superior podem servir a manutenção da divisão da sociedade em classes, permitindo às elites suas titulações, qualificações, como justificativas de diferenças salariais, reforço às diferenças salariais entre gêneros, classes, raça, dentre outros aspectos. Ainda nesta direção, as universidades e, demais instituições de ensino superior se colocam como instrumento de captura de mentes brilhantes de indivíduos advindos da classe trabalhadora, mas também das classes submetidas ao trabalho precarizado (entregadores de fast food, de encomendas de toda natureza, de trabalhos temporários, de estagiários, de microempreendedores individuais (MEI) e tantas outras formas de extração e expropriação da mais-valia pelo capital), promovendo o silenciamento das mobilizações, das lutas de classes. A diplomação de alguns poucos indivíduos da classe dos trabalhadores, do “precariado” acima citado promove a cooptação dos mesmos, permitindo acesso a trabalhos, cargos e salários um pouco melhores para estas minorias, e destituindo a capacidade de lideranças destes no âmbito dos movimentos sociais em que parte destes trabalhadores estão, ou estavam envolvidos, porque garante a poucos estes acessos limitados às benesses de uma classe média.

Por essas e outras é que o sociólogo Jessé de Sousa argumenta que  a classe social deve ser compreendida para além da renda, como uma formação sociocultural, que permite que seus filhos e ou agregados se preparem para herdar os melhores cargos e salários nos serviços públicos e, no âmbito privado do país, e isto se dá, também com passagem pelas universidades e instituições de ensino superior, bem como institutos tecnológicos que oficializam discursos e práticas que conformam a divisão de classes no país, os preconceitos, as práticas xenofóbicas, a reprodução da estratificação social historicamente injusta, característica de países de desenvolvimento periférico como é o caso do Brasil. Um exemplo de crítica dentro do sistema de instituições de ensino superior que aponta a gritante luta de classes pode ser percebido nos ataques às instituições de ensino superior que se espalham pelo interior do país, por viabilizarem condições, com todos os problemas, cortes abruptos de investimento e infraestrutura, de corpo técnico e, de docentes, que enfrentaram e continuam enfrentando as instituições do país, condenando-as como menores porque também atendem a grupos da classe trabalhadora e com isso, apoiam o surgimento de uma massa trabalhadora que busca melhores condições de trabalho e aumento da renda, e também diluem a concentração das relações de poder das grandes instituições de ensino, pesquisa e extensão do país.

Todas estas questões, cortes orçamentários, ausência de uma política educacional, de produção de conhecimento, de ciência qualitativa vincula-se à estratégia de impedir o acesso ao conhecimento qualificado às classes marginalizadas, da população do Brasil profundo, das regiões diversas do país, tratadas como menores, piores, como menos desenvolvidas. Ainda neste patético contexto educacional, aqui especificamente em cena a educação superior e suas frentes: o ensino, a pesquisa, a extensão, lançam-se toda sorte de preconceitos contra as instituições que atendem majoritariamente a extensão continental do interior do país (onde o Estado não chega), estas instituições são reprimidas, não acessam políticas de investimento, ignorando as demandas sociais, a heterogeneidade do ensino, das instituições, e os anseios por melhorias nas condições de vida de parte significativa da população daquelas regiões e do país.

As políticas de cotas, de investimento via políticas de financiamento do ensino superior e da educação técnica e tecnológica, de ampliação e aumento dos valores das bolsas de pesquisa, foram altamente transformadoras da realidade de acesso à universidade brasileira entre os anos 2003 a 2015, causando conflitos de toda ordem, mas, possibilitando transformações em nossa sociedade, inclusive proporcionando uma massa de trabalhadores que certamente atuaram e diminuíram um pouco a tragédia que foi a pandemia nesse país. Quantos foram os formandos como técnicos de enfermagem, e enfermeiros que atuaram no suporte à sociedade na pandemia? Muitos cursaram cursos técnicos e tecnólogos também vistos sob olhar elitista brasileiro como menores, piores e deficitários.

É preciso destacar que os argumentos arrolados acima não se colocam no sentido de questionar a instituição de ensino superior, mas de questionar as formas, as estratégias a partir das quais ela pode promover e potencializar espaços de reflexão, de crítica, de debate acercas das contradições, dos limites, das possibilidades sociais, do acesso por direito e por necessidade das diversas classes sociais, sobretudo daquelas classes que enfrentam maiores dificuldades e, precariedades vitais. Ou seja, trata-se de retomar a condição da universidade como problematizadora da discussão de consciência de classe, do racismo avassalador brasileiro, do machismo e da falta de formação feminista, não apenas nos poucos espaços e cursos propensos a tal condição, mas em toda sua estrutura acadêmica, curricular, científica, para que se possa estimular pensar livremente e, propor outras formações socioespaciais para além da mera exploração das classes oprimidas.

Se estamos diante da necessidade e, talvez da oportunidade de pensar e propor outras formas de relações sociais, econômicas, políticas e, de poder para compartilhar o país entre os brasileiros, pardos, negros, índios, brancos, mulatos, morenos, cafusos, homoafetivos, lgbtqia+…, as instituições de ensino superior, institutos técnicos e tecnológicos também podem chamar a sociedade para compor o desafio de considerar suas formas de atender a sociedade. Não é possível pensar alteração das formas de organização e formação socioespacial, formação socioeconômica sem questionar modelos institucionais estabelecidos.

O conhecimento como forma de organização do pensamento, da sociedade, tem sido atacado em todo o mundo, as forças da ultradireita em conluio com as perspectivas neoliberais questionam a ciência, questionam as instituições e desestabilizam a sociedade, são obscurantistas.

A sociedade não se vê na universidade, e quando a acessa é profundamente desmerecida, criticada, pela falta de estrutura, ou de investimentos, ou de valorização das instituições que consegue acessar.

Por seu turno, os modelos alternativos de organização social por movimentos sociais apontaram enormes possibilidades de atividades de ensino e aprendizagem com grupos diversos, como a Escola Florestan Fernandes, que tem em suas turmas e formações públicas reunidos que agregam produtores rurais, professores, jovens, dentre outros.

Repensar a universidade e o papel que tem desempenhado neste país de potencializar as divisões de classes sociais é imprescindível para compor o debate sobre mudanças no Brasil. Não é possível pensar outras formas de desenvolvimento, ou de acesso das classes trabalhadoras a melhores condições de vida com instituições garantidoras da manutenção do status quo. E, permitir que a população acesse este repensar, seja ativa através da participação popular como método, como o novo governo propõe é imprescindível.

Nós queremos participar da construção de um novo país. Nós precisamos conhecer o que se projeta e poder contribuir com este diálogo e construção. Nós todos precisamos participar. Nós somos o povo. Se se trata de participação popular como método, como no relatório apresentado pela Comissão de Transição, é preciso ouvir as diferentes instituições, é preciso ouvir a sociedade, é preciso ouvir os discentes, é preciso ouvir os neurodiversos, é preciso ouvir as crianças, é preciso ouvir lideranças populares, dentre outros grupos.

Sob tais pressupostos, e no que concerne a questão acima exposta como convite à reflexão e ação é preciso considerar que a Universidade, sobretudo ao longo do século XX tenha se tornado (assim como o Estado) uma agência a serviço dos interesses estratégicos do capital. Trata-se de formar mão-de-obra qualificada para o mercado de trabalho; produzir pesquisas e conhecimentos que possam intensificar o regime de produção; de compreender fenômenos sociais e ambientais e seus eventuais riscos, ou impactos, sobretudo a partir dos interesses do capital, bem como manter as divisões do trabalho, as classes sociais, e toda a opressão das hierarquias sociais que massacram os que não forem hétero, cis, brancos. Ou dito de outra forma, de uma instituição em que o cultivo do pensamento é (era) sua marca de nascimento, passou-se a uma instituição “produtora e disseminadora” de um conhecimento útil e prático no contexto de sociedades produtivas,  consumidoras e opressoras.

O ambiente universitário migrou e continua migrando, senão aderindo a lógica da eficiência e da eficácia na produção do conhecimento. Some-se a isto a divisão social do trabalho intelectual que também adentra a universidade e tem-se a afirmação de uma racionalidade instrumental apta a executar ordens, a competir por bolsas de produtividade, de pesquisa, entre tantas outras estratégias.

Professores abrem mão de sua liberdade de cátedra, para tornarem-se funcionários do ensino, da pesquisa orientada para determinados fins, que em fundo último desconhecem. Ou seja, pensar transformou-se em atividade de alto risco nas Instituições de Ensino Superior. Comprometer-se com questões sociais e políticas desestabiliza o sistema… é preciso continuar produzindo … A agenda de pesquisa se torna uma agenda que valoriza temas da globalização e ignora demandas sociais locais, regionais e nacionais.

Cabe alertar que a própria terminologia “produção do conhecimento” denuncia as prerrogativas do capital, a lógica de mercado transformando o pensar em “mercadoria”, no “fetiche da mercadoria acadêmica”. É importante recordar que estes fenômenos também se apresentaram nas instituições de ensino superior, localizadas na Itália e Alemanha no contexto de surgimento do fascismo e do nazismo.

Portanto, há uma urgência no exercício do questionamento em torno das instituições de ensino superior, seus usos e apropriações que historicamente ignoram a discussão de consciência de classe, racismos, machismos e seus reflexos para o desenvolvimento.

Drª Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia

Dr. Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

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