A tempestade do progresso: ainda vemos as ruínas, por Anna Carolina Galeb

Artigo de Anna Galeb, militante do MAB, sobre o território-catástrofe que se tornou Minas Gerais.

Foto: Marcelo Aguilar

da Página do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens

A tempestado do progresso: ainda vemos as ruínas

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus*.
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.

Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado.
Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.
Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Teses sobre o conceito de história – Walter Benjamin)

Ao falarmos do crime da Vale, BHP Billiton e Samarco na bacia do Rio Doce, nunca deixamos de citar o tempo que se passou desde aquele cinco de novembro. Assim como o anjo descrito por Walter Benjamin, filósofo alemão judeu alvo do nazismo, todos olhamos para as ruínas sobre nossos pés, mas, igualmente, somos empurrados para o futuro que  é imposto aos atingidos. A este futuro muitos chamam de progresso.

O território-catástrofe que se tornou Minas Gerais acumula em seus fragmentos os sonhos e vidas de milhares de pessoas. O amontoado de rejeitos se acumula até o azul não do céu, mas do mar. E enquanto os atingidos estavam sendo levados pela marcha da história em seu caminho, viram acontecer pela segunda vez o rompimento da barragem do Córrego do Feijão – a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Ao falar de um caso, impossível não comparar ao outro. Se o primeiro se construiu por muito tempo atrás da narrativa de acidente, a reincidência do segundo desvela as práticas empresariais das mineradoras no Brasil. Não à toa, logo após o rompimento em Brumadinho, vimos acionar as sirenes de Barão de Cocais, Macacos e Itatiaiuçu. O medo de serem ruínas da história revelou parte da farsa que se veste de desenvolvimento.

Assim, tendo o tempo como referência, falemos sobre os avanços e retrocessos dos direitos conquistados pelos atingidos e atingidas desses dois crimes, lembrando, claro, que nenhum dos processos está perto do seu fim. Tampouco de que devem ser necessários mais crimes como esse para que as empresas e o Estado possam incluir em suas narrativas a de que esses casos serviram como aprendizado do que deve ser feito – ao invés de assumirem uma justiça possível que desrespeita os Direitos Humanos e a participação popular.

Na bacia do Paraopeba, a rápida atuação das Instituições de Justiça garantiu desde o início três direitos fundamentais para os atingidos e as atingidas: o reconhecimento de quase toda a extensão do Rio Paraopeba enquanto territórios atingidos, a provisão de um auxílio emergencial para manutenção básica dos atingidos e assessorias técnicas independentes que atuassem junto aos atingidos no diagnóstico e elaboração do plano de recuperação integral.

Já a realidade do Rio Doce é completamente distinta. Até hoje as assessorias técnicas não foram concretizadas em grande parte do território, apesar dos acordos já realizados. As ruínas do Rio Doce não ensinaram somente a necessidade de se garantir a participação dos atingidos no processo – e como isso deve significar fortalecer as condições para que os atingidos não realizem acordos por necessidade, nem por desinformação – mas de que há outras garantias necessárias para que o processo seja levado com a seriedade que merece. Essa é a escolha por não iniciar um processo de governança assim como aquele trazido com a Fundação Renova reflexo da atuação dela nos territórios – uma atuação de desinformação, desmobilização e com interesses muito claros.

Foto: Marcelo Aguilar

No caso do Paraopeba, a escolha da UFMG enquanto instituição a cargo dos estudos sobre os danos do rompimento da barragem vai na contramão do que vemos no Rio Doce onde as grandes consultorias privadas estão de prontidão para dar seus pareceres ao lado mais forte da corda. Se o tempo aqui é nosso guia, ele bem nos mostra que o motor da história é a luta de classes. Chegando também a marca de 1 ano e 9 meses de Brumadinho, as conquistas feitas até aqui mostram que não foram concessões – em plena pandemia, a Vale afirma que não pretende renovar o auxílio emergencial.

Este breve cenário apresentando certamente não faz jus a realidade dos atingidos de ambas as bacias – que apesar dos avanços ainda sofrem igualmente com os danos e a não reparação de suas necessidades. Comparar as conquistas e retrocessos de direitos garantidos pelos atingidos e atingidas dos desastres-crimes da bacia do Rio Doce e da bacia do Rio Paraopeba merece, no mínimo, cautela. A comparação é impossível sem que haja uma medida de referência, ou que se coloque um caso enquanto mais avançado que o outro. E essa estratégia, a de medir, mensurar, dissecar cada pessoa que foi atingida até que essa revele o seu grau de sofrimento (e de preferência que esse seja reduzido a mais uma fortuidade da vida) é uma estratégia que mais favorece as narrativas de cooperação das empresas criminosas do que os atingidos.

Verdade é que os dois casos compartilham de um impasse de suas escalas – que para o processo de reparação aparecem como os dois lados de uma mesma moeda, impossíveis de serem vistas ao mesmo tempo: a dimensão do todo nós diz muito sobre os crimes, quem os cometeu, quanto são os atingidos, mas serve de muito pouco para efetivar a reparação, assim como o anjo que vê uma catástrofe única. A proximidade da fala de um atingido explícita essa outra realidade, mas a responsabilidade das empresas parece se reduzir ao átomo individualizado que cada atingido representa. A resolução desse impasse está na superação da própria forma que olhamos para essa moeda: a quem vê de fora, as duas faces nunca se tocarão. Nem os atingidos representados por si só, nem representados como um todo por outros. É somente na unidade interna do indivíduo com a totalidade que a moeda se conforma. É somente com todos os atingidos juntos que a superação do problema se resolverá. Assim, achamos nossa unidade final de comparação – a participação radical dos atingidos no processo de reparação – na qual os atingidos e atingidas podem ser as tempestades que controlam suas próprias histórias novamente. Sejamos nós os atingidos a marcha da história.

*Paul Klee foi um pintor e poeta que nasceu e cresceu na Suíça. Era um desenhista natural que experimentou e acabou explorando profundamente a teoria das cores.

*Angelus Novus é um desenho feito por Paul Klee em 1920. Atualmente faz parte da coleção do  Museu de Israel, em Jerusalém.

Redação

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