O pior agosto em 14 anos de queimadas e incêndios no Amazonas

O Estado ganha mais destaque no ranking de queimadas do Inpe e possui o segundo município com mais focos de calor da Amazônia em 2024.

Na imagem acima, Operação Aceiro no município de Humaitá, Amazonas. (Foto: Mauro Neto/Secom).

do Amazônia Real

O pior agosto em 14 anos de queimadas e incêndios no Amazonas

por Wérica Lima

Manaus (AM) – Há 14 anos, o Amazonas não registrava tantos focos de calor quanto os 38 mil de agosto. Esse número representa um aumento de 120% em relação ao total de 2023, que havia sido marcado por fogo e fumaça intensa no Estado. O município de Apuí, no sul do Amazonas, liderou as queimadas na Amazônia Legal em 2024 no mês de agosto, concentrando 9,2% desses registros no bioma, com 3.769 focos. Agora em setembro disputa essa liderança com São Félix do Xingu. No cenário nacional, a Amazônia detém 50% dos focos de calor, seguido do cerrado (31%) e da mata atlântica (9%), que contribuem para a mancha de fumaça presente em todo o país. 

Dados do BD queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apontam que, até 3 de setembro, Apuí, Lábrea e Novo Aripuanã responderam por 24%, 19% e 10%, respectivamente, dos focos de calor no Amazonas. Grande parte dessas queimadas ocorreu em agosto. Apuí, por exemplo, registrou 2.267 focos em agosto, o que corresponde a 58% do acumulado no ano. Lábrea teve 1.959 focos, ou 61% do seu total anual, e Novo Apurinã 1.208, representando 72% dos focos do ano. Apuí só perde de Corumbá (MS), que registrou 626 focos a mais. 

As perspectivas para os próximos meses são preocupantes. “A tendência é de aumento dos focos em setembro, principalmente na região metropolitana. Outras regiões também podem ser atingidas, já que muitas famílias utilizam o fogo para preparação de roçados”, afirma Heitor Pinheiro, analista de geoprocessamento que atua no Observatório da BR-319. 

Em 2024, as cinco cidades que lideram o ranking de queimadas capturadas pelo Satélite de Referência do Inpe estão localizadas no Amazonas e Pará: São Félix do Xingu (9,9%), Apuí (8,8%), Novo Progresso (8,2%), Altamira (8%) e Lábrea (7,3%). Até o início de setembro, a Amazônia Legal registrou um aumento de 109% nos focos de calor em relação a 2023. 

Setembro é, historicamente, o mês com maior número de queimadas na maior parte da bacia amazônica. Mas o início precoce da temporada seca levanta preocupações. “Se a estação seca começou tão cedo esse ano, será que a temporada de queimadas também vai ser mais longa?”, questiona Erika Berenguer, especialista em impactos do fogo na Amazônia e pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, no Reino Unido. 

Para Heitor Pinheiro, não há indicativos de que a fumaça vá diminuir tão cedo. Ao contrário, elas podem se prolongar pelos próximos meses, já que as queimadas atingem não só a Amazônia brasileira como a dos países vizinhos, sobretudo Bolívia e Paraguai. “Dependemos muito dos ventos”, afirma ele, lembrando que parte da névoa cinzenta só se dissipou nos últimos dias na capital do Amazonas por conta dos ventos de nordeste que a empurraram para a calha do rio Solimões. “Porém podemos ter novas plumas com queimas locais nos municípios de Autazes, Careiro, Manacapuru e Iranduba, pertencentes a região metropolitana (de Manaus).”

Paisagem inflamável 

Desde o início de 2024, o número de focos de calor tem batido recordes em meses atípicos. A pesquisadora Erika Berenguer afirma que a estação seca na Amazônia está se estendendo e intensificando. “Quanto mais tempo dentro da estação seca, mais a floresta fica ressecada e com isso muito mais chance do fogo conseguir [alastrar]”, explica. 

Embora a floresta ainda retenha umidade, Berenguer alerta que essas condições estão se deteriorando, especialmente durante a estiagem. Este ano, com a redução das chuvas, o cenário ficou crítico, permitindo que o fogo penetre e se propague em áreas da floresta com mais facilidade.

A área mais preocupante é a fronteira do desmatamento Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro), onde a floresta está extremamente inflamável. “O sul do Amazonas é uma preocupação porque tem muita fonte de ignição”, afirma. Pela plataforma Servir Amazonian Program, da Nasa, é possível observar que a quantidade de focos de calor, na maior parte, vem de queimadas em pastagem, representadas em azul. Roçados aparecem em amarelo, e desmatamentos, em vermelho.

Imagens de satélite revelam a degradação entre janeiro e setembro de 2024 (Fonte: Plataforma Servir Amazonian Program/ NASA).

Berenguer explica que é essencial diferenciar os focos de calor, já que nem sempre indicam incêndios florestais. A maior parte ocorre em áreas de pastagem, onde há atividade agropecuária. “Nas pastagens, as árvores crescem rápido, diminuindo o capim para o gado. A solução mais barata é tacar fogo no pasto porque o capim pega fogo muito rápido”, diz.

Já o desmatamento, anterior à formação das pastagens, ocorre em áreas virgens de atividade agropecuária. As imagens de satélite mostram que essa atividade segue o “arco do desmatamento”, conforme observado pela Amazônia Real. “O fogo é uma ferramenta de desmatamento, assim como o trator. Depois de derrubar a floresta, usa-se fogo para limpar a área e plantar capim para o gado”, complementa a pesquisadora.

El Niño menor com mais impacto 

Lago do Padre durante a seca em 2023, no município de Manacapuru, Amazonas. (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace).

O El Niño foi apontado como o principal causador da seca na Amazônia em 2023 e das queimadas em 2024. No entanto, Berenguer destaca que, em 2015, durante o El Niño Godzilla, o impacto foi menor, mesmo sendo um evento mais longo e intenso. Segundo ela, a mudança climática é a principal responsável pelos extremos registrados nos últimos dois anos, e que ela não vai esperar até 2050 para se intensificar. “Já tivemos um aumento de temperatura de cerca de um grau e meio, então qualquer El Niño em cima disso vai ser exacerbado”, afirma Erika sobre a bacia amazônica.

Atualmente, a região vive um período “neutro”, sem influência do El Niño ou La Niña, mas ainda assim a floresta ainda sente os efeitos da seca prolongada do ano passado. 

Qual será o futuro daqui para frente? 

Em agosto, a fumaça das queimadas cobriu o céu de Manaus, comprometendo a qualidade do ar. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Para todo lado é fumaça e fogo, seja em cidades como Lábrea, Canutama ou Tapauá. O padre Éder Carvalho Assunção, coordenador de Pastoral de Lábrea, constata a destruição por onde anda. E isso não é de agora. A navegação foi prejudicada, pelo baixo nível das águas. E não há ações suficientes de combate aos incêndios ou ao desmatamento, segundo o religioso, porque falta uma valorização dos servidores ambientais. 

Éder Carvalho vê uma política deliberada de desmonte, com o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) sendo um dos principais responsáveis pela omissão do governo estadual. “A política do fogo é a política do agro”, afirma o padre, destacando que os governos da região Amacro são de direita e favorecem essa prática. 

A principal preocupação do padre Carvalho, que atua na calha do rio Purus, entre Tapauá e Canutama, é a abertura de ramais ilegais que ligam os municípios à BR-319, pressionando os indígenas isolados. Ele atribui os recordes de destruição à retomada da construção do trecho do meio dessa rodovia federal. Uma dessas “estradas” que está sendo aberta liga Tapauá ao distrito de Realidade, que foi tema de uma reportagem especial da Amazônia Real.

Para ele, não adianta aplicar multas de até 500 mil reais para fazendeiros, afinal o que é “um milhão para um chefão do agro”? Além da banca ruralista no Congresso apoiar os que estão incendiando as matas, o poder público municipal está longe de ter uma atuação de enfrentamento do problema. “Eles não fazem nada, há uma política da destruição, há um estado destruindo a própria União, aquilo que é comum a todos”, diz. 

Pouca gente para muito fogo 

Operação Aceiro em agosto, no município de Humaitá, Amazonas. (Foto: Mauro Neto/Secom).

Heitor Pinheiro, que além de especialista em geoprocessamento é brigadista florestal, conta que mesmo com o desmonte dos órgãos ambientais, houve um avanço na formação de novas brigadas, principalmente com o apoio de instituições privadas e do terceiro setor. Ele citou o trabalho que desenvolve no Amazonas, onde foram criadas e estruturadas brigadas voluntárias e comunitárias. Porém, o problema é ainda maior que a solução. “Tem mais focos que homens em campo”, diz. 

Erika Berenguer reconhece o papel essencial dos brigadistas, mas alerta que eles atuam só quando o fogo já está perdendo o controle. Para ela, essa estratégia só vai funcionar se os brigadistas forem contratados o ano todo, com foco na prevenção e no manejo dos incêndios florestais. “O combate [ao fogo], tem o seu papel, mas ele não pode ser a única forma que a gente lida com o fogo”, ressalta, destacando que esse vai ser o grande desafio num contexto de mudanças climáticas.

No meio da fumaça 

Show do cantor Wesley Safadão em Lábrea, Amazonas, realizado no dia 1º de setembro. (Foto: José Rodrigues da Silva)

Em Lábrea, o segundo município com mais queimadas no Amazonas em 2024, a fumaça densa impede até mesmo ver quem transita nos rios do Amazonas. Ainda assim, a cidade realizou entre 30 de agosto e 1º de setembro a 32º “Festa do Sol”, com Wesley Safadão como atração principal. Nas imagens da transmissão ao vivo, uma multidão se aglomera sob uma “neblina” branca que na realidade é fumaça. 

O prefeito Gean Campos de Barros (MDB), candidato à reeleição, convidou a população para a festa em vídeo no Instagram, sem mencionar a fumaça ou medidas de prevenção. “Olá, meu amigo, minha amiga, como eu tenho orgulho de estar prefeito pela 4º vez da nossa amada Lábrea. Estamos em um momento de festividade onde estamos comemorando a 32º festa do sol, quero convidar a todos para que juntos possamos fazer uma das maiores festas no nosso município”, diz Barros. 

Conforme publicado no portal “Noticias da Hora”, a festa recebeu cerca de 42 mil pessoas e a presença de Wesley Safadão, escolhida pelo prefeito, “foi considerada um fechamento da sua gestão com chave de ouro”.  O evento é ainda, promovido para gerar renda local, segundo o prefeito. “Nós fazemos o evento pensando no bem-estar da população de Lábrea, por isso pensamos em montar a melhor estrutura, fazer um grande show e desta forma ajudar o município a ter um grande giro econômico e social”, disse Gean Barros, conforme publicado no portal.

Show do cantor Wesley Safadão em Lábrea, Amazonas, realizado no dia 1º de setembro. (Foto: José Rodrigues da Silva).

Amazônia Real enviou perguntas, por meio da Secretaria de Finanças e da Chefia de Gabinete, para o prefeito Gean Barros responder, entre as outras: quais são as medidas de proteção à saúde da população contra a poluição fumaça das queimadas, quais as ações de combate aos incêndios florestais, se houve planos de cancelamento do show e o valor do cachê pago ao artista Wesley Safadão. Barros não respondeu até o fechamento desta reportagem. O chefe de gabinete, Antônio Pereira Melo, disse: “Não sei o valor do cachê”. O secretário de Finanças, Aristenes Siqueira, afirmou que o prefeito estava em Manaus e não forneceu o telefone do gestor à agência. 

Wesley Safadão é conhecido por ter cachê altos, que variam de 700 mil a 900 mil  reais. Em 2022, a Justiça do Amazonas chegou a suspender um show do cantor em Tabatinga devido ao alto gasto público.

O que dizem as autoridades

Governador do Amazonas, Wilson Lima, discursa para o CBMAM durante a Operação Aceiro de combate às queimadas no sul do Amazonas. (Foto: Arthur Castro/Secom).

O governo do Amazonas informou que desde 5 de julho está em vigor o decreto de Emergência Ambiental em 22 cidades do sul do Estado e da região metropolitana de Manaus. Por essa legislação, qualquer prática de fogo está proibida. O governador Wilson Lima solicitou, via ofício ao Ministério de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, recursos para locação de aeronaves, compra de veículos com equipamentos de combate a incêndio, bombas d’água, locação de caminhões-pipas e envio de brigadistas do programa Prevfogo. 

Segundo o governo do Estado, 28 novas viaturas foram empregadas no sul do Amazonas. “Atualmente, quase 75% dos focos de calor registrados no Amazonas e combatidos pelas equipes estaduais estão em áreas de responsabilidade federal. Outros 17% são em vazios cartográficos”, diz o texto da Secretaria de Comunicação. 

“Em abril, teve início da Operação Tamoiotatá 2024, em sua quinta fase, que já realizou 168 prisões e detenções por crimes ambientais, mais de 17, 2 milhões de hectares de áreas embargadas e a aplicação de multas no valor de mais de 130,2 milhões de reais. Em junho foi lançada a operação Aceiro 2024, em que os bombeiros do Amazonas já combateram mais de 11,5 mil focos de incêndio”, diz texto encaminhado para a Amazônia Real

A nota afirma que cerca de 690 homens dos órgãos ambientais atuam no combate aos incêndios. No mês de agosto, 200 bombeiros militares aprovados em concurso e recém-formados começaram também a atuar. 

Mas o governo do Amazonas não respondeu às perguntas específicas enviadas pela reportagem, como a quantidade de aeronaves do Estado utilizadas para combater o fogo, quanto o Amazonas já recebeu de recursos e se as sanções ficaram mais rígidas diante do decreto de emergência ambiental.

Vista do mirante Lúcia Almeida revela uma paisagem com fumaça densa das queimadas que cobriu o céu de Manaus, comprometendo a qualidade do ar. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

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 Wérica Lima – Formada em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Nilton Lins, é estudante de Ciências Biológicas no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Em sua trajetória, passou pela assessoria de comunicação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e publicou artigos pela organização internacional de mudanças climáticas Climate Tracker. Em 2019, participou da 1ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real e foi social media na agência entre julho de 2020 e janeiro de 2021. Empenha-se em fazer reportagens que representem a diversidade amazônica e dê espaço para as populações falarem sobre suas próprias realidades, a partir do jornalismo científico e socioambiental. ([email protected])

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