Roosevelt, Obama e o Plano “Biden”: Woodstock, o retorno, por Nathan Caixeta

A pedra no sapato dos analistas das conjunturas internacionais é sempre o recorrente vício do anacronismo histórico.

Roosevelt, Obama e o Plano “Biden”: Woodstock, o retorno – Ensaio crítico à Economia Política Internacional

por Nathan Caixeta

Não são raras as tentativas de comparação entre períodos históricos, na busca de padrões, parâmetros estáveis, ou eventos causais e factuais que acenam para certa “comparabilidade” dos fenômenos históricos. À Grosso modo, pode-se comparar todo um universo de recortes históricos através da definição do tempo-espaço e do entrecorte dos níveis de abstração pelos planos de realidade pretendidos. Pode-se comparar, por exemplo, a arquitetura das Pirâmides Egípcias às Catedrais Medievais, do Feudalismo Europeu ao caldo fervente na antessala da Revolução Russa, da crise financeira de 1929 à crise de 2008, de Roosevelt a Obama, de Reagan à Trump, de Joe Biden a algum “novo messias” do capitalismo ocidental.

A pedra no sapato dos analistas das conjunturas internacionais é sempre o recorrente vício do anacronismo histórico. O recém lançado “Plano Biden” acenou os faróis para análises tão esotéricas que fica difícil encontrar unidade dentre os discursos. “Nem tanto para a reprodução do ‘New Deal’ de Roosevelt”, dizem os analistas, “nem para um novo remendo dos arames enferrujados de Obama na tentativa ‘progressista’ de costura do ‘sonho americano’”. Ao que parece, o início do governo Biden e seu ambicioso plano econômico transpassa as fronteiras nacionais, figurando como uma “terceira onda” de reafirmação da hegemonia norte-americana. Contudo, se nem de pão vive o homem, e nem do “destino manifesto” sobreviveu o sonho dos pais fundadores dos Estados Unidos, as incursões pelas quais se deram as motivações de afirmação e reafirmação de sua hegemonia são tão específicas ao período em que ocorreram que a simples “colagem” de aspectos históricos que assemelham traços de tais períodos ao atual “Biden moment”, é no mínimo um transe alucinógeno.

O Festival de Woodstock em pleno século XXI

Em meio ao movimento da contracultura, marcado principalmente pelas bandeiras das lutas pelos direitos civis e pelo chamado “maio de 1968”, o festival de Woodstock produziu efeito semelhante sobre os jovens animados com os lemas “é proibido proibir”, seguido de “Sexo, drogas e Rock in Roll”. A pequena cidade de Bethel recebeu as maiores estrelas do Rock em 1969. Os espectadores do festival formaram uma população que superou o número de habitantes daquela pacata cidade do Estado de Nova York. Se os sibilos das guitarras de Jimmy Hendrix embalavam as incursões mentais da “galera”, os alucinógenos completavam o show, no passeio pelas sensações mais primárias do inconsciente humano.

Os analistas políticos e econômicos que tem desfilado seu ânimo pelo Plano Biden parecem ter retornado em espírito aos anos 1960, seja para lançar sobre o futuro os ritmos de “Piece in My Heart” de Janis Joplin, ou para ensejar os sonhos de John Lennon em “Imagine”. Tal “abdução” cognitiva tem suas raízes tanto na trágica passagem de Trump pela Casa Branca, quanto na necessidade da principal potência político-econômica do mundo, os EUA, de “colocar” ordem na casa, ensaiando o reordenamento da ordem internacional, tanto na “ponta” de lança pela vacinação da população mundial, quanto na “salvaguarda” do capitalismo ocidental para que este não seja superado tão brevemente pelo capitalismo à chinesa.

Entre anacronismos e alucinógenos – Ao final falamos do que?

Justificada a pressa analítica, são injustificáveis os anacronismos históricos. Vejamos o porquê: a “passagem” do bastão hegemônico da Inglaterra para os EUA ensaiou-se no entreguerras e consolidou-se no pós Segunda Guerra Mundial, quando o novo país hegemônico toma as rédeas do processo de reconstrução da ordem política e monetária internacional, moldando o mundo a sua imagem e semelhança, ao cristalizar nos seguintes “anos de ouro do capitalismo” (1950-1980) o padrão de desenvolvimento das economias capitalistas pautado pela internacionalização de empresas e bancos, e na industrialização de áreas estratégicas (como Brasil e Coreia do Sul) na tentativa de frear o avanço soviético em pleno espocar da Guerra Fria. Desembaraçado por dentro do padrão monetário internacional ao longo dos anos 1970, os EUA recorreram à violência monetária e tecnológico-militar para recobrar sua hegemonia em curso de contestação pelos países avançados a partir da eclosão dos choques do petróleo e da Guerra do Golfo. Inaugura-se, então, um processo que duraria duas décadas, de 1980 à 2000, de reordenamento do padrão produtivo, marcado pela indústria da microeletrônica seguida da internet, e do padrão monetário internacional, no qual o dólar passa ao démarche de referência par excellence das transações comerciais e financeiras do capitalismo globalizado.

A ascensão do neoliberalismo, escondido pela fina camada da pele de um camaleão, ora democrata, ora republicano, permitiu que as contradições nascentes no interior da sociedade americana permanecessem adormecidas com pequenos desvios em direção ao caos, como os distúrbios de Chicago e Detroit nos anos 1990, seguidos do atentado de 11 de setembro de 2001. Tal como havia moldado e exportado um padrão de desenvolvimento para os anos de ouro, a posição hegemônica norte-americana levou por seus alforjes o neoliberalismo para o mundo, como revelam tanto as exigências impostas para os processos de estabilização monetária dos países subdesenvolvidos ao longo dos anos 1990, quanto às “diretrizes” do chamado consenso de Washington. Para completar o quadro, a adoção do espaço chinês ao tabuleiro norte-americano a partir de 1979, somada à queda da União Soviética, gerou a falsa impressão de vitória do capitalismo “by american” sobre os restolhos dos totalitarismos anticapitalistas do início do século XX. E nessa batida, sob os batuques fortes da “grande moderação”, inaugura-se o novo milênio com crescente participação da China no comércio e na produção industrial mundial, num simbiótico exercício de “cooperação” entre o elevado endividamento de empresas, famílias e bancos norte-americanos e o dinamismo da economia Chinesa.

A crise de 2008 desatou os nós que a doutrina do “too-big-to-fail” havia imposto, encarregando a população mundial de “pagar” a conta, tanto pelo elevado grau de endividamento norte-americano, quanto pela debacle do ritmo de crescimento das economias capitalistas ocidentais que nunca se recuperaram desde então. Enquanto o mundo agonizava por respostas às crises sociais que apareciam, na Europa com o simbólico evento “Brexit”, no Chile, na França, em Hong-Kong e no Brasil, para citar alguns, a sociedade norte-americana viu seu sonho desfalecer, tombando de uma vez com o fracasso conservador de Obama. A eleição de Trump para além de revelar a importância das redes sociais no mundo contemporâneo, retirou as travas que cegavam os panteões que defendiam a democracia norte-americana como espelho para o mundo. Trump capturou os ressentidos, excluídos e desvalidos, aqueles que não cabiam no sonho americano. A eleição de Biden não reverte tal quadro, visto que a participação política da base eleitoral dos “oprimidos” mostrou-se maior em número de votos, superando, em meio ao contexto pandêmico, o número de votantes na eleição anterior.

Os dilemas de uma nova ordem internacional

Se o discurso de Trump inflamou as massas conservadoras, capturando os ressentimentos de um sonho falido para que “Make America Great Again”, Biden repete às avessas o mesmo movimento, ora vestindo as muletas de Roosevelt, ora encarnando o “rethinking” que embalou a ascensão de Obama à presidência. Agora, o que fazer com o “sonho americano”? Como gerir uma nova rodada de retomada da hegemonia americana? Qual o inimigo, desta vez?

Nenhuma dessas três perguntas é respondida claramente pelo Plano Biden, nem se fazem presentes nas análises sobre tal plano. Desde que fora “fundado”, o sonho americano impõe ao mundo o mesmo efeito lisérgico de que “agora, vamos todos ao progresso”, juntos como uma grande comunidade global e capitalista. Parece que a guitarra de Hendrix ainda persiste ecoando, não em seu sentido concreto e melódico, mas na suavização dos sentidos ao perceber que o sonho americano nunca foi para os norte-americanos, mas para o mundo. Derrotado o perigo do comunismo, as políticas do departamento de Estado voltaram-se ao combate dos problemas sociais, elegendo novos inimigos: aqueles que não cabiam no sonho, ou por sua origem “de Rosa Parks à Malcolm X”, ou por sua procedência, sejam latinos, asiáticos, ou mesmo os norte-americanos que viram seus empregos serem sacramente precarizados, enquanto a lista Forbes embelezava suas capas com o pomposo anuncio dos mais ricos do mundo (5 dentre 10 sempre norte-americanos), e das maiores empresas (com orgulho, norte-americanas) que encontraram no sudeste asiático, o paraíso perfeito para o redesenho da divisão internacional do trabalho.

Após o episódio George Floyd alguém ainda acredita no sonho americano, tendo em vista que Trump “Make America Chaotic Again, but always”? Biden não herdou uma terra arrasada, mas uma casa em chamas. Seu “Grande Plano” é o bombeiro do sonho americano e do capitalismo ocidental? Há que se ver, mas é inegável o tom nostálgico que as primeiras ações de Biden revelam. Mais honesto, talvez, fosse que Biden reprisasse a cena da Série House of Cards, quando Frank Underwood, diz ao povo americano: “vocês não têm direito a nada, o sonho americano morreu”. Ao contrário, Biden faz as vezes da viúva que encontra em seus antecessores a inspiração para uma nova remontada no alazão dos EUA como grande promotor do Capitalismo, da liberdade e da democracia. Recorrendo à uma anedota, vejamos este plano “autorreferido” do tal “sonho americano”: porque nunca houveram golpes de Estado nos EUA? Porque lá não existem embaixadas norte-americanas. Do outro lado da medalha, são confessos pelos documentos recentemente divulgados pelo departamento de Estado norte-americano sobre a flagrante intervenção dos EUA nos golpes de Estado no Brasil, na Coreia do Sul, Chile, Guatemala, Taiwan, etc. Em defesa da democracia, a promoção do sonho americano espocou indiretamente diversos golpes de Estado autoritários ao longo do século XX. Já falido, porque revivido, tal sonho? Embora todos queiram juntar a postura ferina de Thomas Jefferson ao pomposo espírito conservador de Trump, todos os presidentes norte-americanos, inclusive Biden, carregam algo de Trump, de Reagan e de Obama, that’s all, folks!

Quanto à uma possível terceira rodada de “retomada da hegemonia americana”, vejamos às complicações: em primeiro lugar, devemos repor o conceito de hegemonia internacional e aqui me valho da brilhante interpretação de João Manuel Cardoso de Mello em um artigo de 1992 chamado “A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição crítica  latino-americana”. Neste texto, Cardoso de Mello define a hegemonia internacional como exercício imperioso cristalizado em três bases: a hegemonia tecnológico-industrial, a hegemonia político-industrial e, por fim, a hegemonia monetária e financeira. Vejamos as diferenças entre a retomada da hegemonia norte-americana nos anos 1980-90 tal como cunhado por Maria da Conceição Tavares em 1985, e as peculiaridades do momento atual:

A primeira diferença básica é que o padrão tecnológico industrial vigente no espocar da “indústria 3.0” nos anos 1980, culminando no aparecimento da internet nos anos 1990, é dramaticamente diferente do padrão tecnológico atual em curso de construção a partir da revolução tecnológica 4.0. Outra instância nesta mesma chave, são as diferenças no plano da disputa industrial. Na primeira rodada de retomada da hegemonia americana, os EUA perseguiam a diluição do avanço Japonês e Alemão como concorrentes industriais. Atualmente, a indústria chinesa já supera em muito o dinamismo da indústria norte-americana, inclusive, devido à própria mudança no padrão de internacionalização das grandes empresas que migraram seus centros produtivos para o leste asiático (em especial para a própria China) ao longo dos anos 1990 em diante, mantendo o “núcleo” inovador nas matrizes sediadas nos países de origem, revelando à nova e mutável divisão internacional do trabalho e construção em vias de uma remontagem das chamadas cadeias globais de valor.

Diferenças tão atordoantes quanto são as relações incorridas à “sete chaves” na definição da “paz” armada entre EUA, Rússia e China. Não se trata de uma nova “guerra” fria entre dois regimes político-econômicos, mas de uma percepção tão óbvia, quanto aterradora: qualquer movimento brusco do ponto de vista armamentista implica na destruição não apenas de espaços nacionais, mas de toda população mundial. A aparência da identidade entre a corrida tecnológica militar durante meio século entre EUA e URSS, é tão aparente quanto uma indeterminação matemática. Nada diz de concreto.

O que revelaram dois séculos de desenvolvimento tecnológico-militar pelos Estados Nacionais são suas relações, por um lado, simbólicas na detenção “das armas do mundo”, por outro, e principalmente, econômicas, pois parte das inovações que vieram a incorporar as revoluções tecnológicas desde as industrializações tardias do século XIX foram flagrantemente resultado do pesado investimento estatal no fomento do complexo industrial-militar. Em outras palavras, um forte complexo tecnológico-militar representa um componente endógeno da “destruição criadora” de Schumpeter a partir do orçamento de capital do Estado. Há quem lance a tola pergunta: onde se inscreve a intenção dos lucros neste esquema, visto que a atividade estatal não supõe a finalidade de geração de excedentes, e sim sua distribuição? Para economizar linhas, ilustraremos, a falsidade dessa aparente contradição: são confessas as interações entre o desenvolvimento da internet, dos sistemas de algoritmos, das nanotecnologias e, contemporaneamente, da inteligência artificial numa simbiose entre o investimento estatal (para qualificar seus mecanismos de controle social) e o investimento privado na geração de inovações capazes de gerar espaços de acumulação de riqueza, repondo no terreno da “violência potencial” a relação inaugural entre Estado Moderno e Capitalismo: a manutenção da ordem social como pressuposto para a acumulação de capital e vice-versa, pois tal acumulação prescinde da ordem social para a circulação da riqueza sem contestação dos direitos de propriedade, e o aparato de manutenção da ordem social, necessita que a acumulação de capital verifique-se para absorção da “sociedade massas” ao mercado, arrefecendo às pressões sociais sobre o Estado. De tão óbvia, tal relação perdeu-se nas análises de economistas e cientistas políticos.

 Sobram os dilemas quanto ao padrão monetário internacional. Rompido os duzentos anos de padrão-ouro em 1973 e redefinidas às convenções que garantem a reprodução do padrão fiduciário de emissão de uma moeda internacional, imediatamente exigida como “liquidez” par excellence, o dólar flutuou vitorioso, entre chuvas e trovoadas, regulando as tempestades do sistema financeira internacional, pelos ajustes, em simultâneo, das taxas de juros nacionais à taxa de juros norte-americana. Este sistema não se vê questionado, como em 1978, na antessala do segundo choque do petróleo, por outras nações. Mas verifica-se uma pressão endógena pelo fortalecimento da relação entre endividamento público e valorização da riqueza financeira, ocorrida nos escaninhos dos mercados de reservas bancárias no interior do sistema monetário internacional. As ondas de injeção de liquidez, não inéditas, mas cada vez mais céleres e volumosas à cada sinal de pânico nos mercados financeiros, na ameaça de “derretimento” das posições especulativas, impelem os estados nacionais a elevarem seus níveis de dívida pública, pela intervenção direta ou nos mercados à vista (especialmente de juros e câmbio) e nos mercados futuros, acalmando a “grita” geral pela liquefação das posições financeiras altamente alavancadas. É enganosa as interpretações que relacionam a explosão das dívidas públicas com extraordinários exercícios de “inchaço” dos orçamentos de seguridade social e de serviços públicos. Na verdade tal elevação dos patamares de endividamento foram, especialmente pós crise de 2008, resultado da renitente necessidade dos Estados Nacionais de operar como “emprestador” (ou financiador) em última instância da “farra do boi” ocorrida nos cassinos financeiros bem “afiançados” pelo ideário corrente da autorregulação dos mercados em relação aos seus índices de endividamento. Logo, o padrão monetário internacional centrado no dólar-fiduciário não se vê, presencialmente, nem em ameaça de ruptura, nem de substituição pelas incursões chinesas em busca de internacionalização de sua moeda, mas permanece pressionado para a incestuosa relação entre dívida pública e acumulação fictícia de capital, algo quase tão antigo quanto o próprio capitalismo, mas atualmente tão bem engendrado pelo complexo de relações e volumes absolutos e relativos de “operações financeiras” em que os bancos centrais se vem reféns da soberania dos mercados, independentemente de seus graus de “independência institucional”, ou da capacidade de que “taxes drives money”.

Estado Moderno e Capitalismo: notas analíticas sobre o conceito de hegemonia

Em resumo, há sim disputa em termos da hegemonia internacional no plano político-econômico, mas tal disputa é de tal forma nublada pelas centelhas do incêndio geopolítico que nem o anúncio de flexibilização de certas relações econômicas e políticas pelo governo Chinês, nem os sinais dados pelo Plano Biden são capazes de mapear o tabuleiro de xadrez, mas tão somente acenam para a movimentação de peões num jogo de soma-zero, que dilui-se no espaço-tempo, independente de “determinações” de reordenamento estratégico no curto prazo, mas das intenções de longo prazo da capacidade do Espaço-mundo de suportar os reais dilemas do capitalismo contemporâneo: a desigualdade social, a sustentabilidade ambiental da acumulação de capital e a necessidade de novos marcos internacionais de regulação dos mercados financeiros.

Nem parecem corretas as interpretações, sejam o anúncio apressado de uma nova guerra fria, nem do renascimento do espírito de 1945, sob a salvaguarda da explanação do falido sonho americano em defesa do capitalismo ocidental. Tal disputa geopolítica só pode ser compreendida mediante um refinado exercício analítico que dispense os anacronismos e observe as reais capacidades de movimentação das duas principais sustentáculos da ordem social na modernidade: Os Estados Modernos em suas imanentes funções de proteção estratégica de seus espaços de influência política, e do capital cristalizado na presença das empresas transnacionais em estabilizar seus níveis de investimento corrente em relação aos seus níveis de investimento tecnológico para a absorção “pacífica” do desemprego tecnológico e da descartabilidade social, em si, um problema indissolúvel pelo vigente modo de operação dos Estados-Empresa Neoliberais, sob os artifícios da violência contra as populações, ou do acalanto de políticas focalizadas de assistência pública.

Observadas os atuais dilemas em  torno de uma nova rodada de reafirmação da hegemonia norte-americana sob a crescente relevância chinesa no espaço geopolítico global, é possível especular, qual o inimigo a ser combatido?

A apressada resposta dada pelo Governo Trump no eterno “blefe” nacionalista contra o governo chines não sobreviveu à qualificação de tal posição como chavões para a base tacanha e conservadora do mundo ocidental, nesta inclusa a versão brasileira, nosso “capitão de milicias” e seu trágico chanceler, recentemente demitido. Desde a ascensão neoliberal “o inimigo” a ser combatido nunca foi externo, senão em pequenas tensões em torno de crises financeiras (como as ocorridas nos anos 1990, em 2008 e em 2011/12 na zona do Euro), ou nas intervenções Norte-americanas no Oriente Médio e no sudeste Asiático.

O inimigo do Estado Neoliberal passou a ser os próprios norte-americanos que não se inscreviam na órbita da mercantilização da força de trabalho e dos padrões de vida e consumo. Quem não cumprisse tais requisitos, ou era eliminado pela violência (como no caso George Floyd), ou readaptado à ordem mercantil da concorrência capitalista por mecanismos de transferências focalizadas de renda. Enquanto isso, o controle estatal e capitalista sobre os indivíduos cresceu sobremaneira na interligação “em rede” de dados e informações pessoais, que retiraram do individualismo ególatra a possibilidade da vida privada, dilema indissolúvel que tem gerado ondas de violência virtual que por vezes, articulam-se com a acumulação de capital através da “virtualização do trabalho”, por vezes transpassam o espaço virtual movendo-se para o campo real seja no confronto ala “faroeste caboclo” entre os egos inconformados e ressentidos, seja pela intervenção estatal e do capital privado na capitulação e moldagem dos padrões e comportamentos sociais. Em suma, a lógica de controle da ordem social implementada ao longo do século XX, converteu-se na fabricação da ordem social, unindo a repressão da vida privada pelo Estado, e na comercialização do “tempo-livre” das pessoas pela interconexão “em rede” de informações dos indivíduos através da competição cooperativa entre as grandes empresas-aplicativo como Google, Facebook, Uber, Amazon e outras. É nesta cena que se configuram as atuais relações entre a manutenção da ordem social e da acumulação de capital, uma a serviço da outra.

O Plano Biden: Entre a falência do sonho americano e a ilusão do messianismo conservador-progressista

Foram necessárias todas estas mediações analíticas para que sejam inaugurados “à risca” no saldo final que parece enunciar o messiânico “Plano Biden”. O anúncio da injeção de 2,2 trilhões de dólares na Economia mundial a partir do orçamento norte-americano com vistas ao enfrentamento da crise sanitária e recuperação da atividade econômica é de fato impressionante. Contudo, analisemos tal movimento à luz da breve recuperação histórica e analítica anteriormente desenvolvida. É evidente que um investimento de tal volume a partir do país emissor da moeda-chave do sistema tem dois efeitos: um imediato, repondo as expectativas de recuperação da economia mundial a partir de pelo menos o quarto trimestre de 2021; e outro, concreto, na retomada das relações comerciais e financeiras a partir do próprio esforço norte-americano. Obviamente esses eventos terão impactos sistêmicos positivos sobre a “economia real”, inclusive rebatendo sobre toda a economia global, gerando impulsos na demanda efetiva das economias capitalistas integradas ao “espaço-mundo” globalizado comercial e financeiramente. Contudo, há que se pesar, dois fatores que desabonam o plano Biden como um “messianismo” salvador do capitalismo ocidental.

As questões essenciais: qual a fatia capturada pela esfera financeira de tal esforço de injeção fiscal? Qual a capacidade concreta de geração de crescimento da Economia norte-americana num quadro de flagrante rearticulação das cadeias globais de valor? Mais ainda, qual a parcela desse esforço não refará o circuito de elevação das reservas cambiais chinesas, dado que boa parte da oficina do mundo está concentrada no leste asiático tendo a China como centro dinâmico? Por fim, qual motor endógeno de elevação da demanda efetiva norte-americana senão o refazer nostálgico da elevação das posições de endividamento das famílias, em consonância com um novo ciclo de efeito-riqueza?

O pessimismo metodológico e o retorno ao século XXI: voltando de Woodstock 52 anos depois

Dúvidas essas insolúveis, mas que servem para lançar as sementes da sobriedade analítica sob o espírito messiânico do plano Biden. Esperamos que tais questões, lançadas com a ressalva de possíveis equívocos interpretativos, amenizem os efeitos lisérgicos sob a mente dos analistas da conjuntura internacional. Meu ceticismo não se impõe, no entanto, no campo analítico, pois reafirmo os impactos positivos de tal plano sobre a economia global no biênio 2021-22, mas reafirma-se como pessimismo metodológico, relembrando que antes de messiânico, tal movimento do Plano Biden é reflexo, primeiro da necessidade de resposta diante do caos, e em segundo lugar da tentativa de juntar os cacos do falido sonho americano. Adicionalmente, arrisco dizer, com a ressalva de alguma imprecisão conjuntural, que tal movimento carrega acima de tudo um volumoso e expressivo ato de “jogar para a galera”, na tentativa de repactuar uma sociedade norte-americana dividida entre a esperança no recrudescimento do sonho americano e o ressentimento na verificação do cortejo fúnebre do “the american way of life”. No fim das contas, o que nos ensinou séculos da simbiose entre Estado moderno e capitalismo de mercado foi: “the Capital and State way of productive and social modernization”.

Referências

Mello, João Manuel Cardoso de. “A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição crítica latino-americana. Um prólogo em homenagem a Celso Furtado.” ECONOMIA E SOCIEDADE I (1992): 159-164.

Tavares, Maria da Conceição. “A retomada da Hegemonia Americana.” Em Poder e dinheiro, uma economia política da globalização, por Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori (orgs.). Vozes, 1997.

Sobre o Autor: Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP)

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