Um ensaio sobre o conceito de liberdade e a ficção da modernidade, por Nathan Caixeta

Antecipando a conclusão, aquilo que será defendido é que as ruínas da modernidade não expressam a derrota de suas promessas, mas a incompatibilidade de suas premissas com o regime de propriedade capitalista.

Um ensaio sobre o conceito de liberdade e a ficção da modernidade

por Nathan Caixeta

O ensaio que se segue propõe dois planos de discussão: 1) a construção da ideia de liberdade como fundamento da vida moderna; 2) a  diluição dos pilares sob os quais se ergueu a modernidade em suas instâncias político-sociais e econômicas; – perseguindo uma síntese entre os dois planos na identificação do fracasso do conceito de liberdade iluminista perante as contradições da manutenção do “mito da igualdade” em contradição ao regime de propriedade capitalista. A essência do argumento se sustenta na identificação de uma liberdade fabricada, fruto da junção contraditória entre os valores da modernidade e os valores da tradição. Tal contradição é movida pela fluidez da dinâmica do capital em impor a “narrativa social” adequada para o florescimento do individualismo meritocrático, pela contradição entre a evolução da estrutura de direitos cívicos, sociais e humanos contrastados pelos limites da propriedade privada e da exploração do trabalho, e da transformação do Estado, de instância soberana detentora do monopólio da violência em agência de representação, promoção e repressão jurídico-burocrática da concorrência ao elegê-la como espaço soberano de resolução dos conflitos sociais. Antecipando a conclusão, aquilo que será defendido é que as ruínas da modernidade não expressam a derrota de suas promessas, mas a incompatibilidade de suas premissas com o regime de propriedade capitalista. Abertas as fissuras de suas ruínas, recorre-se à tradição e a perenidade da moral e dos costumes como a última barragem possível de manutenção do sistema de propriedade privada e estatal.

A construção da liberdade: o conceito e o mito

Refazer a rota de construção do conceito de liberdade requer o passeio por um emaranhado de discussões que flutuam entre a defesa do espaço de autonomia individual (liberdade negativa), fio teórico de ligação desde Benjamim Constant à Hayek e deste à Robert Nozick, e a defesa da liberdade positiva de J.Hobson à J.Rawls. A confusão se estenderia mais ainda ao tentar-se o esforço enciclopédico de demonstração do conceito de liberdade ensaiado por Marx ao pensá-la a partir da superação das distinções de classe e do princípio da propriedade como forma de florescimento de um tipo de consciência coletiva emanada da igualdade material e da livre fruição do tempo livre.

Contudo, o passeio pelas tensões do pensamento liberal nas variadas vertentes, mais discordante que evolutivas, conduzem à seguinte conclusão: qualquer que seja o conceito de liberdade, pendendo para os pólos negativo, ou positivo do termo, recaem na construção inconsciente do pilar fundamental da modernidade, de inegável raiz iluminista: a defesa da liberdade como ocultamento da contradição entre o modo de vida moderno, marcantemente insuflado pelo progresso material do capitalismo e a construção social do mito da igualdade aprisionada pelas disposições jurídico-burocráticas do Estado Moderno.

Verifica-se nessa contradição os dois movimentos que permitiram a ascensão do modo de vida moderno abrigado no espaço urbano-industrial, pautado pela possibilidade da vida privada e pela ascensão da concorrência como “modus operandi” do indivíduo moderno:

  1. Capitalismo e Estado Moderno são causa e efeito do novo mundo, desde as eras de expansão para o ultramar das potências europeias até o espocar das duas grandes Guerras Mundiais. A lisergia analítica que submeteram os intelectuais ao anunciar a vitória do capitalismo regulado durante os anos de ouro, e, portanto, do domínio político do Estado sobre as tendências predatórias do capitalismo. Essa interpretação foi tão logo atacada, quando as promessas de igualação das oportunidades, dos direitos civis e sociais verificaram-se um fracasso, pois na senda de aparição da sociedade de consumo de massas, ocultava-se o individualismo narcisista, por um lado, incompatível com a igualação das oportunidades, e por outro, insuflado pela identificação da liberdade de escolha (pautada pelo direito à propriedade) como significação real do mérito monetário atingido pela via do trabalho.
  2. O segundo movimento expressa o falecimento da promessa iluminista de expansão dos direitos, encerrando-se no seguinte dilema: enquanto indivíduos, dispostos à sociedade do trabalho e do consumo de massas, enfeitados pelos badulaques da cidadania representativa, como estes podem usufruir plenamente de sua liberdade, proclamando suas identidades pessoais, ou grupais, uma vez que verificam-se como termos incompatíveis: a implementação dos direitos civis, sociais e humanos com o regime de acumulação (e propriedade) que torna as pessoas mercadorias-trabalho à serem exploradas e descartadas, subtraindo sua identidade humana e inoculando os valores do trabalho, do mérito e do individualismo ególatra como expressão tanto de sua identidade, quanto de sua liberdade autoproclamada pelos exercícios do consumo e da fruição dos privilégios conferidos pelo status social! (?)

Posto o dilema fundamental expresso nesses dois movimentos, a resposta do pensamento liberal a este dilema sobreveio como avalanche de quem espreitou na surdina a falência do mito, revirando o eixo de discussão: Constant advogava o progresso da autonomia individual na proclamação da esfera privada como fonte inalienável da liberdade individual, pavimentando a  rota que guiou, inconsciente ou não, todas as incursões do pensamento liberal clássico: a liberdade como condição prévia de existência do indivíduo, removido dos costumes tribais e das tiranias, e liberto para os proventos da união entre a vontade individual e o universo das trocas, soldadas pela invisibilidade das mãos da concorrência capitalista que tornou-se o espaço de igualação social entre os homens pela aparente liberdade de escolha conferida pelo assalariamento compulsório das massas antes camponesas, depois submetidas ao despotismo do cotidiano urbano-industrial.

Construído, o império da razão positiva sob o reinado dos fantasmas de Kant e Descartes, a ruina do mito inaugura-se pelo avesso, pois a liberdade conferida às massas despossuídas de seus privilégios sectários, destronaram a hipótese do homem racional, não pela invocação da loucura das massas, mas pela exigência da liberdade prometida pelo projeto iluminista que o Estado fracassava em promover e o capitalismo pulveriza ao destilar seu feitiço sobre os homens na submissão do status social (e da esfera privada) ao signo do mérito representado pelo detenção do dinheiro e da propriedade.

A falência do Estado social explicitou tão cedo, a incapacidade de o progresso social perseguir a incessante sanha acumulativa do capital, unindo os movimentos da globalização, da revolução tecnológica-informacional e da financeirização da riqueza à um tipo de governança amorfa que oferecia respostas ao ressentimento dos indivíduos, incluídos no progresso material, mas excluídos da plena liberdade e da fruição do tempo livre. O neoliberalismo que tomou o mundo foi menos expressão da vitória do conservadorismo ante ao progressismo social, revelando-se como mecanismo de soldagem entre a crescente fluidez do capital e o desejo pelo reconhecimento das identidades, capturando o ressentimento das massas dispensadas pelo avanço tecnológico, ressuscitando o fantasma que os anos de ouro havia varrido para debaixo do tapete: qual liberdade é possível, uma vez que os direitos civis, sociais e humanos são incompatíveis com o regime de propriedade (e dos homens submetidos ao status de mercadoria-trabalho)?

Hayek  ofereceu a chave ao estabelecer os termos do debate, pois: ao abandonar a naturalização da propriedade, centrar a razão nos limites da cognição humana, o dilema da liberdade Hayekiana dissolve-se na necessidade do estabelecimento jurídico da propriedade e na fruição individual da vontade humana. Desse modo, o indivíduo aparece como agente fundamental na defesa de sua “esfera pessoal protegida”, apoiado no direito de propriedade, movendo-se nos escaninhos da concorrência pela seleção cultural dos meios que o permitem expandir sua esfera de atuação individual. Sob estes moldes, a individualidade é desenraizada da propriedade como expressão natural do trabalho. O Estado social desmantelado, passa a figurar em seus moldes neoliberais como promotor direto dos mecanismo de concorrência e indireto de uma espécie de liberdade individual “fabricada” pela autoproclamação do mérito como expressão de identidades que ora ligam-se aos signos modernos na defesa da “esfera pessoal expandida”, ora apegam-se à tradição como barreira protetora contra tudo que é alheio ao desencanto do mito da liberdade referida ao status social.

Não por menos, Foucault identificaria na raiz daquilo que chamou “reprogramação neoliberal”, a ascensão do micro fascismo cotidiano capaz de ligar a esfera da consciência à prática cotidiana do individualismo metódico. O conceito de liberdade nascido em oposição e revolução contra as desordens do poder absolutista, foi subvertido para dar vez ao mito da propriedade não mais natural, tão pouco fruto da labuta ascética, mas como expressão autoproclamada pelo indivíduo rompido com os signos do pertencimento.

Se a liberdade dos antigos realizava-se no espaço público, a vida privada dos tempos modernos aprisiono-a à vontade individual e desta feita, o mito da liberdade plena verifica-se encarcerado ao experimento de Schroedinger, onde o mito permanece meio-vivo, meio-morto, pois: constatando-se que não há liberdade total, tão pouco existem indivíduos plenamente independentes, sobram como soldagem do fluído social, as camadas do ressentimento, sintoma da falência do conceito, néctar de sobrevivência do mito.

Desta fluidez participam, outra vez, o capital desfilando seu feitiço na moldura da narrativa social e o Estado flamulando suas bandeiras pela paz armada, elegendo o rebanho do descarte social segundo a régua da concorrência: o patrimônio protegido contra as ordens da incerteza tecnológico-financeira e as massas etiquetadas, seja por sua serventia ao progresso enquanto mercadoria, seja pela afluência inesperada do desejo pelo reconhecimento das diferenças guiadas pelo ideal da igualdade social. Enquanto isso, o mito raspa o tacho do conceito, recuperando os resquícios da tradição na captura do ressentimento, instância unívoca e inconsciente de corrosão das democracias modernas.

Identifica-se, portanto, como fruto da liberdade moderna, três mitos: a possibilidade da igualdade e a primazia da propriedade como pressuposto da “liberdade fabricada” pelo modo de operação e expansão da “narrativa social” do capital e da atuação do Estado, flutuando entre os papéis de instância protetora da liberdade e agência de promoção da concorrência.

Wendy Brown: as ruínas e o avesso do fim

Em “As Ruínas do Neoliberalismo”, Wendy Brown oferece uma luz ao debate sobre os contornos atuais da sociedade moderna. Em sua obra, a contragosto analítico dos profetas do apocalipse, as ruínas conferem o pano de fundo, denunciando ao invés do “fim do neoliberalismo”, o esgotamento de um dos sintomas de falência da modernidade.

Verifica-se, de saída, o ponto central: quais os limites da esfera pessoal protegida Haykiana? De pronto, Brown desfere uma resposta aterradora: “A defesa da esfera pessoal protegida, assim expandida, é o meio pelo qual a tradição e a liberdade repelem seus inimigos – o político e o social, o racional e o planejado, o igualitário e o estadista”. Portanto, no curso de construção da liberdade une-se a tradição, como salvaguarda daqueles que advogam a perenidade dos valores tradicionais. Unem-se, portanto, os artífices da modernidade e da anti-modernidade como protetores da esfera pessoal, atacada, quanto mais, pela célere produção de valores modernos que rechaçam a liberdade fabricada, exigindo o reconhecimento das diferenças.

A análise de Brown exprime as raízes do ressentimento, desaguando no dilema que derrubou do cavalo as aspirações da liberdade reprogramada pelo neoliberalismo: como realizar a gestão das massas pela via da concorrência, se aqueles alijados do processo concorrencial não tem outra saída senão o apego às tradições, trocando o social e o político pela moral e pela representação do bem, esferas centrais da tradição. Mediante esse dilema Wendy Brown identifica as fagulhas que ascenderam a feição violenta das democracias modernas: não havendo solução pela liberdade fabricada, os indivíduos se vêem entregues ao ressentimento, renegando a existência do super-homem de Nietzsche e agarrando-se a tudo aquilo que confere a esperança de retorno ao trono à sua esfera pessoal protegida. Neste movimento residem, tanto as raízes da “extrema-direita”, quanto os movimentos contraditórios: de negação das conquistas da modernidade – a saber: a revolução feminina, a ascensão do negro em sociedades historicamente escravocratas, a ascensão das comunidades LGBTQ+, etc. – ao mesmo tempo em que defendem o mito pela recuperação do conceito: a liberdade individual como pressuposto da propriedade.

Ao final, Brown oferece a chave para a compreensão das ruínas da modernidade: a ascensão do niilismo no exercício de desencantamento da razão e subsequente encantamento pelo novo mito. O desencantamento da razão opera-se como expressão da anti-modernidade, portanto, do retorno à tradição, da recuperação do posto que outrora ocupavam os ressentidos expressando suas odes contra a afluência social daqueles que obtiveram vias de representação pela democracia política. O encantamento pelo novo mito, antes de figurar como sentido oposto, abandona a liberdade fabricada pelo conceito de liberdade auto declaratória, se agarrando ao mito da liberdade como tradição, refazendo-a como instância natural em defesa da vida privada, contraria à qualquer tipo de liberdade “antinatural”, isto é, desenraizada da tradição.

As ruínas do neoliberalismo enquanto razão ordenadora dos espaços de sociabilidade não revelam, no entanto, um recrudescimento do progressismo social, senão anunciam os sinais de falência da modernidade pela sublevação do mito e reificação do conceito. O mito moderno de igualação dos homens tão logo esbarrou nos limites de mercantilização da vida pelo capital, driblados, quanto mais, pelo feitiço do dinheiro como fim meritório do processo social. O conceito de liberdade, fabricado às ordens da mutação social, perdeu-se em seu sentido primeiro, pois a expansão da esfera pessoal protegida desvelou-se como barreira indissolúvel e indiscernível na defesa da propriedade, não mais natural, mas abrigada no cadafalso da transformação do homem em mercadoria.

As ruínas da modernidade: encanto do mito e os feitiços do capital

Isaiah Berlim em “Os dois conceitos de liberdade” expressa bem o movimento de busca pela liberdade fabricada (p. 24):

“O que classes e nacionalidades oprimidas, como regra, demandam não é a simples liberdade de ação sem entraves para seus membros, ou, acima de tudo, igualdade de oportunidades sociais e econômicas, menos ainda, atribuições em um lugar num Estado Orgânico, sem atritos concebido por um legislador nacional. O que eles querem, na maioria das vezes, é simplesmente reconhecimento (de suas classes ou nações, ou cor, ou raça, [ou gênero]) como fonte independente da atividade humana, como entidade com vontade própria, com intenção de agir de acordo com isso (sem importar se é bom ou legítimo, ou não), e não ser governado, educado, guiado, por, não importa, quão leve a mão, como se fossem plenamente humanos, e, portanto, não sendo inteiramente livres”

A questão da liberdade desloca seu eixo, do mito para a realidade, na inclusão dos grupos historicamente oprimidos que ao rejeitaram tal mito na busca pela humanização de suas identidades grupais, ativaram a fúria da modernidade contra si mesma, pois desafiaram o suposto da propriedade, não propriamente econômica, mas pelo espaço social e político que conferia a distinção enraizada no tradicionalismo. O sistema de propriedade privada move os mecanismos de reprodução das desigualdades econômicas e sociais, enquanto a contravento, a modernidade trouxe “para fora” das estruturas verticais de poder (patriarcado, escravidão, suserania, monarquismo, ordenamento religioso, etc.) aqueles historicamente excluídos, dando voz ao ressentimento daqueles que nem lograram êxito ao submeter-se ao capital enquanto mercadoria, nem verificavam na cidadania um meio de expressão da identidade individual, dilacerada junto aos signos de pertencimento, quando o espaço-tempo expandiu-se das relações comunais e globalizou-se pela uniformização dos valores que guiam a atuação do indivíduo moderno em busca do status oferecido pelo signo monetário.

O feitiço do capital, historicamente embalado pelo economicismo, mostra suas garras ao mover o ressentimento cotidiano dos excluídos pela construção da narrativa social do “fraco” contra o “forte”, enquanto no campo político-social enervam-se as tensões entre os excluídos que dançam pelo ritmo do revanchismo, abraçando os ideais da tradição e agarrando-se em tudo que confira a sensação de pertencimento e que permita a autoproclamação da identidade como última camada para o exercício do individualismo.

Wallerstein em “Após o liberalismo” lança as sementes do conflito entre dois tipos de modernidade, aquela econômico/tecnológica e aquela político/social, cimentadas pelas finas camadas da democracia política, pois se o “pós-modernismo” se encontra em ruínas, a pós-modernidade acena para a utopia de uma nova ordem social, longe da reconstrução daquilo que foi arruinado, mas da luta pela liberdade e pela igualdade a despeito da modernidade tecnológica.

Contudo, em tom discordante, há que se notar que nem os avanços recentes dos totalitarismo e de seu aporte niilista se assemelham ao velho fascismo, nem o esmero da “extrema-direita” faz as vezes de “delírio coletivo”. Ao contrário, as peças até aqui reunidas, possibilitam uma conclusão da qual, se espera, esteja em dia com a sensatez: a modernidade não morreu, nem a tradição é capaz de recuperar suas glórias, mas “as cartas do jogo” são lançadas em outro plano, longe do delírio econômico, ou do cotidiano geopolítico: a liberdade plena, decantada pelo liberalismo faleceu como conceito, assim como, as esperanças no avanço das forças produtivas não produziram resultado melhor do que violentas desigualdades sociais reembaladas no espaço da concorrência.

A ideia de liberdade colada ao tradicionalismo, dissipou o mito da igualdade, assim como as odes da ciência haviam debelado o encantamento da religião. O neoliberalismo semeou a “liberdade fabricada” como o novo mito da modernidade, uma vez que o mito da propriedade encontra-se cristalizado pelos avanços da concentração da riqueza e do status político-social à ela associados. A avalanche do ressentimento das massas desfez o mito da liberdade “pura” ligada ao ideal da igualdade, abrindo espaço para o encanto pela tradição. O quadro que decora a última parede sobrante em meio as ruínas da modernidade é segurado pelo fino prego da tradição enquanto instância protetora da esfera pessoal de Hayek, escondendo o real horizonte do conflito: se já não natural, ou coroa da labuta, a noção de propriedade preserva-se incólume das incursões revanchistas no campo político e social. Enquanto isso, avançam numa esfera somente nítida ao caleidoscópio do pessimismo metódico, as forças que fazem das ruínas a antessala de uma nova ordem social: O Capitalismo Informacional (e cada vez mais fictício) e a vigilância de Estado, rompedores dos entraves da sociedade panóptica  e inauguradores de um tipo de autoritarismo capaz de enfeitiçar a consciência pela geração dessa outra liberdade, vigiada, porém autônoma, fabricada, mas exclusiva, comandada, ainda assim, independente, virtualmente possível e instantaneamente real.

Considerações finais – As ruínas da modernidade: o termino pelo princípio

Permanecem unidos, como nunca: o feitiço e o encanto, pois os valores da tradição, flagrantemente anti-modernos tornaram-se as barreiras de proteção da liberdade fabricada, possibilitando a sobrevivência do mito da propriedade pelo evanescer das formas de expressão do ressentimento como novo espaço de pertencimento dos excluídos e destronados, sejam de seus postos enquanto trabalho-mercadoria, sejam de seus tronos enfeitados pelos privilégios da tradição: as diferenças de raça, gênero, credo e identidade quer seja sexual, ou grupal. Ademais, conclui-se que as ruínas da modernidade não se assemelham ao amontoado de rastros de destruição dos ideais iluministas que a fundaram, mas como fracasso de seu próprio fundamento, ao verificar-se a fabricação da liberdade pela narrativa do fetiche do capital e da concentração da propriedade, e ao comprovar-se contraditório o ideal da igualdade sob os espectros da consciência guiada pelo mérito, referendada pelo dinheiro e apoiada na naturalização da propriedade como fundamento do contrato social que elegem a proteção à propriedade privada como expressão da liberdade e a expansão dos meios coercitivos e vigilantes do Estado como forma de garantia da ordem social. Refazendo o caminho argumentativo, não há exageros na afirmação de que a modernidade já nasceu em ruínas cujas fissuras foram sendo abertas pelo fracasso do conceito e a ressurreição do mito pulverizado nos ideias da tradição cujas raízes encontram-se na perenidade da moral e dos costumes que fundamentaram a hierarquização vertical da sociedade durante os milênios que antecederam a modernidade.

O conceito de modernidade ancorou-se nos três mitos na propriedade privada, portanto na possibilidade de autorrealização, na liberdade pela identificação de uma esfera pessoal protegida e da igualdade como aspiração do sucesso da concorrência em repartir igualmente os frutos materiais, culturais, políticos e sociais do progresso. O mito da igualdade foi subsumido pela dinâmica concentradora do capital. O mito da liberdade, verificando-se impossível, foi substituído por um substrato fabricado pela referência ao status social e monetária. O mito da propriedade prevaleceu sob os dois outros, pois fundamentado na origem histórico-concreta da modernidade: a união entre Capitalismo e Estado Moderno, ambos feiticeiros da utopia da ordem social. As recentes ondas de questionamento sobre as possibilidades de sobrevivência do modo de vida moderno expressam menos um vivido movimento de contestação, revelando-se como quem navega sem encontrar terra firme perante um vasto horizonte nebuloso e sombrio, assombrado pelos fantasmas da tradição.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  1. Muitos autores, economistas em especial, recorrem à ideia de liberdade para fugir do tema fundamental que é o (livre) arbítrio. Schopenhauer nos lembrava que o único atributo verdadeiramente humano é negar a própria natureza. Nesse sentido, exercer o livre arbítrio é negar a (própria) natureza. Ser livre para fazer o que quiser, mesmo economicamente, não é o suficiente para o exercício do livre arbítrio do ponto de vista coletivo e muito menos do ponto de vista individual. Ser livre para vender picolé na praia não é exercício de livre arbítrio.

    Retirar as regras para a acumulação de capital não é aumentar a liberdade nenhuma! O debate sobre liberdade econômica é uma grande fraude.

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