Dalmo Dallari e os direitos indígenas na Constituição, por Manuela Cunha

Dois artigos na Constituição Federal de 1988 são decisivos para os direitos indígenas. Ambos foram de inspiração de Dalmo Dallari

Foto: Divulgação

Dalmo Dallari e os direitos indígenas na Constituição

Da Comissão Arns

Por Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, membro da Academia Brasileira de Ciências e membro da Comissão Arns.

Dois artigos na Constituição Federal de 1988 são decisivos para os direitos indígenas. Ambos foram de inspiração de Dalmo Dallari. Ele nos deixou no dia 6 de abril, quando oito mil indígenas estavam justamente reunidos em Brasília para defender a letra desses dois artigos.

O artigo 231 reconhece que os direitos dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam são originários: originários significa que são anteriores a qualquer lei.  Eles, portanto, não são concedidos pela Constituição, são reconhecidos por ela. Isso foi o que nos explicou Dalmo, que na ocasião nos deu um exemplo exótico: os cantões suíços guardaram seus direitos anteriores, originários ao se unirem para formar o Estado suíço. 

A União, continua o artigo 231, tem o dever de proteger essas terras e para tanto, demarcá-las. O governo Bolsonaro procura inverter os termos e fazer crer que os direitos dos índios às suas terras dependem da conclusão do (longo) processo de demarcação. Não dependem. O Supremo já se pronunciou clara e reiteradamente sobre isso. Mas essa aberração tem justificado um aumento inédito da grilagem de terras indígenas e a tentativa da atual FUNAI de se eximir de seus deveres.  

O artigo 232 também foi formulado por Dalmo. Foi fruto de experiência em acompanhar conflitos e prejuízos que povos indígenas tentavam ajuizar. No mais das vezes, os juízes não admitiam a capacidade dos indígenas entrarem com ações. Alegavam que era a FUNAI, e não eles, quem devia ingressar com a ação. Ora, era frequente que a FUNAI fosse justamente a autora ou pelo menos conectada aos autores dos prejuízos. Não iria entrar em juízo contra si própria. 

É notável que os indígenas já tinham assegurados direitos importantes. Mas o diabo está nos detalhes. De que valiam esses direitos se os indígenas não tinham acesso direto à justiça, sob o pretexto absurdo de que eram tutelados? Ao longo da década de 1970, Dalmo já havia protestado que o Código Civil havia instituído a capacidade relativa dos índios como uma proteção negocial, mas que a tutela estava sendo, nos tribunais, interpretada contra eles. Nada mudou, porém. Para resolver esse obstáculo, Dalmo Dallari veio com uma solução elegantíssima no artigo 232: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Esse artigo não só trouxe o auxílio do MPF, mas mudou da água para o vinho o acesso dos indígenas à justiça. Ninguém o contestou na Assembleia Constituinte. De uma só tacada, os indígenas e suas formas de organização, tanto tradicionais quanto inovadoras, tinham capacidade jurídica reconhecida, e não precisavam de nenhum CNPJ. Esse foi um dos argumentos que permitiu à APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, ser legitimada como autora no STF da notável ADPF 709 de 2020 que procurou defender os povos tradicionais da COVID-19. 

Dalmo deixou, sem alarde, um enorme legado aos povos indígenas.

Redação

1 Comentário

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  1. Para esse excelente texto “Dallari e os direitos indígenas na Constituição” de autoria de Manuela Carneiro da Cunha, gostaria de contribuir com o pensamento de Pedro Salles, liderança do povo Kaingang no Rio Grande do Sul: “A terra para o Kaingang significa mãe. A terra é aquela que nos dá alimento e água, igual à mãe que oferece o alimento proveniente de seu corpo para o filho. O branco pensa que a terra é um instrumento de riqueza. Por isso ele não reconhece seu irmão, seu semelhante, e discrimina o mais fraco, que não tem condições de enfrentá-lo, de concorrer com ele…”, publicado no artigo que escrevi “O Guarani das águas e dos índios” da Revista Ciência Hoje da SBPC (vol. 32, nº 190, janeiro/fevereiro de 2003):
    http://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2003/02/190.pdf#page=64&zoom=auto,-81,796
    Abraços,
    Heraldo

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