
por Ion de Andrade*
Sou pediatra e iniciei a minha vida profissional no começo dos anos de 1990 no Rio Grande do Norte onde a mortalidade infantil girava em torno de 60 óbitos por mil nascidos vivos, por ano, em média, com municípios ou distritos alcançando aqui e ali 100 óbitos por mil nascidos vivos, num indicador que encontra normalidade quando atinge um dígito, ou seja quando cruza, para menos, os dez óbitos por mil…
Iniciamos um trabalho em Mãe Luiza, um bairro de Natal, com visitadoras de saúde pagas por uma instituição popular recém fundada ali, o Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora da Conceição e fomos, sem apoio do Poder Público, montando uma pequena estrutura assistencial em torno das necessidades identificadas nas visitas.
Criamos assim: (a) uma enfermaria dia para crianças desnutridas graves, na qual por anos tivemos cerca de vinte crianças que vinham comer e receber a suplementação de ferro e vitaminas…, (b) uma unidade de reidratação oral, tecnologia simples, barata e que resolve a imensa maioria dos casos de desidratação evitando os internamentos para a hidratação venosa e (c) uma unidade de nebulização para os numerosos casos de asma, que praticamente desapareceram quando a comunidade foi ganhando renda para sair do uso do carvão para a cozinha… A instituição também ajudou as famílias que não tinham banheiro a construir o seu e a cimentar pisos que eram de terra ou areia…
As visitadoras realizavam visitas temáticas mensais a todas as mães com crianças com menos de um ano no bairro e às gestantes, estimulavam o aleitamento materno e compartilhavam conhecimentos sobre os cuidados higienodietéticos necessários ao primeiro ano de vida do bebê, o que incluía, por exemplo, tratar a água de beber com uma gota de água sanitária por litro ou a higiene das mãos, sobretudo antes do preparo dos alimentos.
Elas cuidavam também de alertar as mães para o diagnóstico precoce das principais causas de morte em bebês: a desidratação (que tem sinais clínicos claros como a mucosa da boca seca ou a perda da elasticidade da pele) ou as pneumonias que precisavam ser diferenciadas precocemente das doenças respiratórias mais leves e que normalmente podem ser flagradas quando a febre alta ultrapassa três dias e o estado geral fica comprometido…
Sem mistério, sem a participação do Poder Público e com poucos recursos, em menos de dois anos reduzimos a mortalidade infantil de 65 por mil nascidos vivos para um número que passou a oscilar a partir daí em torno de 12 a 15 óbitos por mil bebês nascidos vivos por ano… O nosso projeto durou dez anos.
Em virtude disso, penso ter acumulado muita experiência no manejo dessa problemática mas também dos contextos que produzem a mortalidade infantil quando ela é alta e a ausência do Poder Público é sempre a peça central!
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Nesses anos noventa, que se seguiram a essa iniciativa, vivemos um retorno da prioridade à Saúde Materno Infantil decorrente de uma “nova” cultura sanitária relacionada à relativamente recente redemocratização do país.
Não se pode chamar de genocídio o que ocorreu nesses anos passados porque o abandono com que o Poder Público tratava o nosso povo, e continua tratando, aliás, é o respirar normal do Estado escravocrata brasileiro que vai, folgadamente, reproduzindo o Brasil injusto e excludente como ele é.
Esse mecanismo é, por isso, o quinhão de todos os pobres, sejam eles pretos, pardos, índios ou brancos… A generalização do massacre, no Brasil de então, demonstrava “apenas” a continuidade de uma mentalidade pública escravocrata e colonial, que embora gravíssima, não somente não pode ser incluída no conceito legal de genocídio, como persiste em locais onde o Poder Público ignora, por exemplo, a população em situação de rua ou as mazelas crônicas das periferias, usando o seu dinheiro para contratar policiais ou pavimentar estradas…
O caso dos Yanomami é semelhante no que toca ao abandono dos bebês pelo Poder Público incorporando no método o que o Estado brasileiro faz em toda parte: matar corpos deixando morrer e matar almas capando oportunidades aos mais pobres.
Esse caso, porém, se diferencia do massacre perpetrado normalmente pelo Estado brasileiro contra o povo em dois aspectos:
(a) na motivação que indiscutivelmente foi a de quebrar a resistência dos Yanomami ao garimpo e
(b) na intensidade, pois a mortalidade infantil entre os Yanomami alcançou 114 óbitos por mil, (11,4%) em 2020 conseguindo ser pior do que a de Serra Leoa na África, país que detém o pior indicador mundial de mortalidade infantil hoje, que é o de 78 bebês por mil; mas, comparando o que é comparável, o indicador é, sobretudo, pior do que a média para os índios brasileiros de outras etnias que foi de 35,8 bebês por mil nascidos vivos em 2020… (clique aqui para ler)
Isso significa que a brutal desassistência que está por trás desses números não poderia, em qualquer circunstância ter sido obra do acaso, o que materializa uma intenção.
O que diz a lei?
A lei número 2889 de 1956, (clique aqui para ler) que define o crime de genocídio, diz no seu Artigo primeiro:
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: … c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
Ora, considerando
(a) os interesses do garimpo;
(b) a intenção antiga de extinção da reserva Yanomami expressa num Projeto de Lei de 1993 do então deputado federal Jair Bolsonaro,
(c) e a sua contextualização por medidas que falam por si mesmas; como a do pedido a Bolsonaro feito pela ex-ministra Damares Alves da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, datado de 6 de julho de 2020, de que não enviasse aos indígenas, durante a pandemia de covid-19, itens como: leitos de UTI, água potável, materiais de limpeza e higiene pessoal, ventiladores pulmonares e materiais informativos sobre a doença alegando que os mesmos não haviam sido “consultados pelo Congresso Nacional” (clique aqui para ler);
Se conclui necessariamente que a mortalidade infantil explosiva como foi, concentrada em causas evitáveis e tratáveis e ocorrendo em níveis que a colocam como a pior do mundo, num país cheio de recursos como o Brasil, parece ser suficiente, sozinha, para materializar o crime de genocídio contra o povo Yanomami.
*Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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