O sentido da Páscoa vivenciada pelo ano todo, por Francisco Comaru

Quanto potencial humano e social, abandonado, em cada praça, canteiro, calçada e rua do nosso país.

Foto Soraia Saura

O sentido da Páscoa vivenciada pelo ano todo

por Francisco Comaru

Era sexta feira Santa como costumávamos dizer. Cinco minutos atrasado para o encontro com a Soraia e a Solange que me aguardavam na catraca da Sé. Tinha deixado a bicicleta num estacionamento de autos, após uma negociação realmente ótima para o dono do negócio. O almoço, um pastel de queijo morno na liberdade, após o rolê desde a Paulista até o Anhangabaú com Letizia, Pietro, Fernando, Paola e Maria. Tomas tinha voltado antes. Em vez de fome ou peso, um leve frio na barriga dos instantes que precedem mais um trabalho, digo brincadeiras, com as crianças nas ruas.

Ouvi uma mensagem recém chegada de minha mãe, que me encheu de mais doçura e coragem, enquanto ia descendo ligeiro desde a Liberdade até a Sé. Deparei-me com uma procissão descendo os degraus da catedral encenando a paixão de Cristo com muitos religiosos e um grupo que seguia.

A praça, sempre a mesma há alguns bons anos, centenas de pessoas sentadas, muitas perambulado, em sua grandíssima maioria desoladas, tristes, apáticas, entre mórbidos e moribundos. Passei muito rápido, pensando no atraso, mas fiz uma foto rápida da procissão, entre crédulos, cantos-crentes de um lado, e indiferentes, de outro.

Nós nos encontramos no hall do metrô e subimos rápido, diretamente à praça, como combinado. Soraia e Solange comentavam impressionadas sobre o tamanho da fila de espera para comida. Um sem-número de pessoas numa cauda quase a perder de vista, desde a Catedral até o baixo da praça.

Resolvemos estender o “tapete” (assim o chamamos, esses três plásticos resistentes oriundos de pôsteres de encontros acadêmicos que Soraia incorporou na nossa sacola de trabalho), numa parte lisinha sobre o piso bonito de pedras brancas de cinzas. Fui convidar três crianças que acompanhavam mães e pais na fila da comida. “Querem brincar?” Perguntei. Duas foram imediatas: “Sim”. E vieram junto comigo até o tapete. “Querem desenhar?” “Sim”.  “Querem pintar”. “Sim”. A vontade de fazer algo diferente (possivelmente divertido) era tanta que, somada à simplicidade, resultava quase sempre no mesmo “sim” disponível, espontâneo e gratuito.

Soraia e Solange desembrulharam gizes de cera, lápis de cor e grafiti, entre um lápis de carpinteiro e papeis em branco para desenho livre, papeis previamente desenhados para receber pintura e, depois, o guache.

Vieram dois, depois mais uma, mais duas, mais três, o grande “tapete” foi ficando tomado de crianças sentadas como índios, com os chinelos fora do tapete e, quase todas – ou aquelas que damos conta – com mãos limpas em álcool em gel.

Duas que eu acompanhava, quando viram o giz de lousa, perguntaram para que era. Expliquei que servia para desenhar amarelinha no chão. Elas pediram para desenhar e jogar. Eu pedi para terminar o desenho primeiro e lá fomos. Eu não desenhava um jogo de amarelinha há décadas na minha vida, nunca imaginei que faria aquilo na frente da Catedral na sexta feira da Paixão. Queriam desenhar, queriam pular, pediram para eu pular, desenharam certo, errado, certo de novo, e eu, me lembrando do Frei Lúcio, de vez em quando tentava corrigir traços errados que saiam das mão rápidas e ansiosas do menorzinho.

Pulamos amarelinha, depois, o vai-e-vem, mais gente chegando, a Soraia sacou a Petaca da sacola mágica e iniciamos com uns dois, um deles ansioso que insistia em chutar uma garrafa pet verde amassada como se fosse uma bola achatada. “Vamos jogar peteca?”. A resposta sempre a mesma: “sim”. Começamos em dois, na sequencia a mãe grandalhona se juntou toda feliz querendo participar, mais outro, outra, fizemos uma grande roda no meio da praça num jogo improvável com crianças, adolescentes e adultos, alguns ficantes, observados por transeuntes. Cada um vindo de um lugar, com um sonho ou desilusão, esperando uma comida que nunca chega e um sentimento comum. Como disse a Solange: “muita gente por todos os  lados! Crianças, adolescentes, adultos, famílias, solitários, enfim todos crianças querendo brincar de ser feliz!”.

Soraia sacou os peões da sacola e obviamente alguns adultos na praça se prontificaram a ensinar a criançada como manusear aquele brinquedo antigo quanto tradicional que me lembra tanto a infancia com meu pai e meu irmão (e eu sempre fui péssimo com o peão).

Crianças produzindo desenhos coloridos com guache em cores que saltitavam aos olhos. Acho que nunca joguei tanta peteca na minha vida – quem diria, no marco zero da cidade. Até o carro da PM que circulava nos calçamentos com suas incômodas luzes sinalizadoras, deu mostras que, excepcionalmente, desviava da tropa, como quem reconhece tal raro momento de brincadeiras incomuns.

Pessoas em situação de rua, lúcidos e embriagados, ambulantes, ciclistas, famílias inteiras, crianças mulambas entre outras arrumadinhas, curiosos e gente alegre. Um pai desajeitado que se juntou na roda da peteca, soltou com sorriso maroto: “jogar é bom para espantar o frio, né”. O jogo cantado e animado por alguns de nós, que depois de um bom tempo iniciava perder o tônus do início.

Lembrei que devia buscar a bicicleta antes das 19h. A roda dos desenhos continuava firme e a pequena Julia disse que faria um desenho para me presentear. Quando retornei o tapete sendo recolhido e duas meninas, uma delas, a Julia, com pano dizendo como adoravam limpar – que coisa rara e linda, pensei, sem comentar muito. Três crianças abraçavam sem parar a Soraia e Solange, com ar da despedida, alguns abraços sobraram para mim, e um pequeno queria jogar mais peteca. Estava um pouco cansado com mais de duas horas de jogos, desenhos, amarelinha e peteca, concordei que era bom irmos finalizando. Solange e Soraia sugeriram passar na parte alta da praça próximo à lateral da Catedral onde ficam os usuários e ver se alguém precisava de curativos. Os mais velhos sob efeitos das “porcarias” e os pequeninhos pedindo curativos (curativos afetivos, poderíamos dizer).

Solange com toda paciência e carinho fez curativos um a um enquanto Soraia e eu auxiliávamos com a lanterna, interagíamos com as crianças e conversávamos um pouco também. Luiz, Miguel, Pietro, Pérola, Julia, Vitória, tantos nomes diferentes de crianças lindas que me perco, onde mais me acho. Na brincadeira, chamo uma de Filisbina, outro Feliberto, outra Filomena, que contrariados, riem e me corrigem.

Despedimos. Nós acompanhamos até a entrada do metrô, por onde Solange se foi, até o carro da Soraia, que também partiu sob despedidas de uma lanterninha simpática e conversadeira. Subi na velha bicicleta e pedalando para casa, matutando com mil cenas e ideias na cabeça, sentimentos, lembrando de Soraia e Solange preocupadas e impressionadas, sob um misto nosso, profundo contraditório de tristeza, melancolia e algum conforto da partilha. Lembrei-me da frase do meu tio sobre como “é bom estar no centro da vida”.

A fila é grande! Quanta gente a tanto tempo, esperando um prato de comida que ninguém sabe se virá: homens, mulheres, crianças, solos, famílias, idosos, trabalhadores em situação de rua, pessoas com deficiência.

O descaso, a desumanidade, a Páscoa na maior e mais rica cidade da América do Sul. As crianças lindas, sempre dispostas ao “sim”.

Francisco Comaru – Educador voluntário no Coletivo Cheiro de Capim. Professor da UFABC, Colaborador da Rede BR Cidades

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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