
da Rede BrCidades
Por uma política urbana nas narrativas do movimento negro
por Bruno Santana do Nascimento
A presença negra no Brasil, grandiosa e invariável, ergue-se como um tema amplamente debatido, entrelaçando-se nas teias multidisciplinares. A escravidão, com foco nas urbes e em seus arredores, desempenhou um papel crucial na tessitura das sociedades escravistas brasileiras. Essas comunidades, emergentes de deslocamentos forçados transatlânticos, redesenharam relações, arranjos sociais e espaços por meio de ações intrínsecas, cujas conexões étnico-raciais elevam-se em complexidade, abarcando múltiplas dimensões do construir cidade e de sua experimentação.
Dos quilombos às favelas, das associações aos terreiros, das feiras livres aos mercados, das festas de rua aos paredões na quebrada, das senzalas aos quartinhos de empregada, de encontros comunitários aos rolezinhos, dos festivais em parques ao “fluxo dos bailes”, nenhum recanto nas cidades brasileiras escapa à racialização. Importa recordar que: “O dispositivo de racialidade historicamente estrutura as relações raciais no Brasil” (Sueli Carneiro). Essa dimensão étnico-racial, ao se entrelaçar com a questão urbana e a reprodução social, é intrínseca e molda, ao longo da história, o espaço urbano do país.
Sublinhar essa concretude é essencial para evidenciar a fragilidade e a insuficiência das análises políticas, projetos e políticas urbanas que negligenciam a profunda relevância dessa abordagem. Enegrecer a discussão sobre a cidade e seus marcadores étnico-raciais é uma forma de sensibilizar para a necessidade de uma compreensão mais abrangente e inclusiva do espaço urbano brasileiro. A efetivação do direito à cidade está intrinsecamente ligada à descolonização da cidade e de suas epistemologias. Para o geógrafo Milton Santos (1926-2001), o espaço é concretizado como tempo acumulado e o lugar é o espaço onde ocorrem solidariedades. Nesse contexto, uma abordagem afro-brasileira na produção de políticas urbanas é crucial para uma compreensão mais aprofundada do próprio espaço urbano.
A questão racial, por vezes, é relegada a um segundo plano e ignorada como uma temática significativa. Ao abordar as lutas que permeiam as agendas urbanas em uma sociedade patrimonialista, como a brasileira, onde a propriedade fundiária é um mecanismo eficaz na preservação das desigualdades, vislumbra-se a complexidade da situação. Sem mencionar a violência urbana sofrida em bairros majoritariamente negros, através de uma política de segurança pública altamente repressiva, e o terrorismo perpetrado contra a luta pela demarcação de terras quilombolas. Não obstante, o não reconhecimento da cultura expressa na periferia e sua própria produção cultural e religiosa, torna-se frequente a marginalização da manifestação cultural negra periférica e sua exclusão nos circuitos culturais urbanos, assim como o apagamento da memória negra na cidade. Esta intrincada realidade exige uma abordagem política despida dos resquícios da colonialidade e do patriarcado, ainda fortemente presentes nas decisões que moldam as disputas urbanas.
O recente acatamento, por parte do IBGE, da designação “favelas e comunidades urbanas”, em contraposição ao termo “Aglomerado subnormal”, ressoa como um vigoroso impulso na batalha pelo reconhecimento dos territórios populares e pela concessão do direito à narrativa de suas dinâmicas e complexidades. Deixando-me conduzir nas palavras de Emicida em “AmarElo”:
“Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”
A canção não se restringe à abordagem da dor; antes, destaca-se por entrelaçar narrativas de resistência, empoderamento e sonhos, oferecendo um retrato vívido das experiências das pessoas pretas marginalizadas em nossa nação.
Em suma, no Brasil, as políticas urbanas e setoriais que moldam o território desempenham papéis cruciais na perpetuação das opressões nas cidades. O racismo, como uma sofisticada tecnologia e sistema que opera um mecanismo de morte, continua a desencadear agressões contra determinados grupos, contribuindo para a obliteração de sua contribuição na edificação da cidade. Reconhecer a existência estrutural do racismo e confrontá-lo emerge como a única senda para concretizar o direito à cidade para o povo negro, erigindo um projeto urbano que seja antirracista e menos permeado por desigualdades. Nestes 20 anos de marcha da consciência negra, é imprescindível enegrecer as ideias sobre as cidades com matizes negras e resilientes.
Bruno Santana do Nascimento é Arquiteto, Urbanista, especialista em mobilidade urbana (Escola da Cidade), integra a Secretaria Nacional da Rede BrCidades e o time de planejamento urbano da Tembici.
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