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Por uma política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens, por Carlos Vainer

O PL não é perfeito, mas nenhuma lei nasce perfeita. Uma vez aprovada, a legislação poderá ser aperfeiçoada nos próximos anos

Barão de Cocais

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Por uma política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens

por Carlos Vainer

Vários órgãos de imprensa (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/11/03/ politica-nacional-de-barragens-pode-trazer-inseguranca-juridica-dizem associacoes.ghtml) e canais da internet (https://www.canalenergia.com.br/noticias /53262116/fmase-alerta-para-pl-sobre-politica-nacional-para-atingidos-por-barragens) vêm dando ampla divulgação à carta enviada por um Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico ao Ministro de Minas e Energia solicitando a postergação da aprovação do PL 2278, ora em tramitação no Senado Federal, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB).

Quem é o FMASE?

O FMASE reúne várias associações empresariais, entre as quais: ABCM (Carvão Mineral), ABCE (Companhias de Energia Elétrica), ABRACE (Grandes Consumidores de Energia), ABRAGET (Empresas Geradoras Termelétricas), ABRATE (Empresas de Transmissão). Por trás de siglas e nomes pomposos estão alguns dos mais importantes e poderosos grupos não apenas do setor elétrico, mas também da indústria mínero-metalúrgica e de outros segmentos econômicos. Para conhecer apenas uma das “associações” que integram o autodenominado “fórum de meio ambiente”, tomemos a ABRACE, associação que reúne grandes consumidores de energia. Encontraremos alguns nomes bem conhecidos: a Microsoft; a Nestlé; o Grupo Votorantim, através da Votorantim Cimentos e da Companhia Brasileira de Alumínio; a multinacional alemã Vallourec, atuante em mais de 20 países;  o grupo financeiro espanhol Santander; a Novelis, subsidiária da Hindalco Industries Limited, líder no setor de alumínio, cobre e metais diversos, vinculada à Aditya Birla Group, sediada em Mumbai, Índia; a Messer, multinacional alemã líder da indústria mundial de gás industrial; a Nouryon, multinacional do ramo químico. Há que destacar a presença de duas corporações muito conhecidas no ramo dos desastres de barragens e da mineração – a Vale e a Samarco (Vale/BHP).

Em nome destes e outros representados, o Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico dirige-se ao Ministro de Minas e Energia com o intuito de pressioná-lo a barrar a aprovação do PL 2788/2019. Vejamos seus argumentos.

Enganos e Falácias do Neo-Ambientalismo Energético

Em primeiro lugar, os neo-ambientalistas energéticos pretendem assustar prefeitos, governadores e o próprio governo federal, inflando de maneira enganosa o número de barragens às quais se aplicaria o no PL 2788/2019, que estabelece:

“§ 1º As obrigações e direitos estabelecidos pela PNAB aplicam-se: I – às barragens enquadradas na Lei nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, que institui a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB); e II – às barragens não enquadradas na Lei nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, cuja construção, operação ou desativação tiverem atingido populações.” (PL 2788/2019, Art. 1º, § 1º)

E quais são as barragens enquadradas na Lei no 12.334? Apenas aquelas que tiverem altura igual a superior a 15 m ou capacidade igual ou superior a 3 milhões de m3 ou contenham resíduos perigosos ou tenham médio ou alto potencial de danos sociais e ambientais. Mas os neo-ambientalistas energéticos clamam: “existem 23.977 estruturas cadastradas no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens” (FMASE, Carta ao Ministro de Minas e Energia, Brasília, Brasília, 1/11/ 2023) sugerindo que todas elas seriam objeto do PL 2788/2019.

Absolutamente falso!!! Na verdade, destas 23.977 barragens,

“13.438 (56%) não apresentaram informações suficientes para a avaliação de suas características e conclusão sobre o enquadramento na Lei nº 12.334, de 2010, nos termos de seu art. 1º. As demais barragens cadastradas (10.539) passaram por avaliação, sendo verificado que 5.665 estão enquadradas à PNSB e 4.874 não estão”. (Agência Nacional de Água e Saneamento Básico, Relatório de Segurança de Barragens 2022, p. 20)

Dentre as que estão enquadradas, mais da metade delas (54%) possui altura inferior a 15 metros”, “71% das barragens de acumulação de água <…> possuem capacidade inferior a 3 hm³” e “quanto às barragens de contenção de rejeito mineral e resíduo industrial, 40% são reservatórios muito pequenos, com capacidade de até 0,5 hm³”. Acrescente-se “56% das barragens cadastradas (13.438) não possuem informações suficientes para verificar se estão enquadradas ou não à PNSB” (idem, ibidem, p. 21).

Em outras palavras: as barragens às quais se aplica o PL 2788/2019 são em quantidade  muitíssimo inferior ao (propositadamente) assustador número de 23.977 brandido pelo FMASE. É bom não esquecer porém, que é bem expressivo o número de barragens de cuja construção e operação decorrem violações de direitos humanos e nas quais não se reparam devidamente os danos e perdas impostos às populações atingidas. É disso que trata o PL, é isso que deve ser considerado e levado em conta.

Seguindo no caminho de misturar e confundir propositalmente os números, a carta do FMASE afirma:

“Vale lembrar que o PL não faz distinção das barragens a serem abrangidas pela Legislação, ela não trata somente das barragens de mineração, mas das 23.977 barragens existentes. O que acaba por impactar milhares de Prefeitos Municipais e outros segmentos (agro, turismo, pscicultura, energia, mineração, abastecimento, saneamento) que correm o risco de ter de indenizar qualquer habitante que acredite que seu imóvel foi desvalorizado em razão da existência de uma barragem, sem qualquer limitação de distância ou faixa de abrangência que justifique tal desvalorização.” (FMASE, idem)

Em primeiro lugar, o já citado Relatório de Segurança de Barragens 2022, informa que do total de barragens enquadradas apenas 8% são consagradas à contenção de rejeitos – cerca de 450, e não  23.977!!!! E é fazer pouco da inteligência de quem quer que seja, ainda mais de autoridades governamentais responsáveis pelo Ministério de Minas e Energia, afirmar que prefeituras e empresas em geral “correm o risco de ter que indenizar qualquer habitante que acredite que seu imóvel foi desvalorizado em razão da existência de uma barragem…”. É sabido que, em qualquer circunstância, danos e perdas, de qualquer natureza, somente são passíveis de reparação quando demonstrado inequívoco nexo causal entre o evento ou agente provocador e a vítima do dano.

Assim, o verdadeiro “terrorismo” detonado pelo FMASE apenas busca mobilizar uma ampla frente de interesses que supostamente estariam ameaçados pelo PL 2788/2019, quando se sabe que serão alvo da nova lei apenas aqueles que efetivamente constroem e operam barragens, aqueles que são responsáveis por impor danos e perdas a terceiros, conhecidos por fugirem às suas responsabilidades. As prefeituras não devem temer ter que indenizar seja lá quem for; ao contrário, deverão ser indenizadas pelas perdas que sofrem quando grandes projetos se implantam em seus municípios a sua revelia, impondo dramáticas mudanças nas condições de vida de seus munícipes e a degradação de infraestruturas e serviços públicos estaduais e municipais (saúde, transporte, educação, etc). Agricultores e empresas várias somente terão a ganhar, pois os impactos que sofrerem em decorrência de barragens serão devidamente ressarcidos.

Não contentes com embaralhar fatos e números, os representantes do setor elétrico afirmam que “a implantação de empreendimentos hidrelétricos (compostos por barramentos) não ocorre à revelia dos direitos das populações atingidas” (FMASE, idem). Ora, em 1992, sob o impulso do ar fresco da democratização e aprovação da Constituição de 1988, era a própria Eletrobrás quem reconhecia que “o Setor Elétrico tem a responsabilidade de ressarcir danos causados a todos <…> afetados por seus empreendimentos” (Eletrobrás, II Plano Diretor de Meio Ambiente, 1992). Passados 30 anos, depois de 2 milhões de deslocados compulsórios (Comissão Mundial de Barragens), muitas mortes, lama, destruição e dor, qual a credibilidade em termos de direitos humanos de um “fórum” que fala em nome da Vale e da Samarco?

Embora afirmem que talvez “seja elogiável a intenção do presente projeto” (FMASE, idem), revelam de maneira aberta o que pensam, isto é, sua clara oposição a que os direitos das populações atingidas por barragens sejam respeitados e as perdas e danos, individuais ou coletivos, sejam justamente reparados. É assim que pedem ajustes e se insurgem contra a “obrigação do empreendedor criar e implementar programas específicos destinados a mitigar os impactos na área de saúde, defesa civil, saneamento ambiental, habitação e educação dos Municípios afetados pela implantação e operação de barragem ou pela ocorrência de incidente ou de acidente” (FMASE, idem). Não querem reparar as perdas e danos que provocam, não querem nem mesmo ter a obrigação de mitigar os impactos. Desejam que tudo permaneça como está há muitos e muitos anos. Repetem o que dizem há décadas: “Isso não é problema nosso, que somos bravos empreendedores”. Contra todas as evidências, contra todos os estudos científicos e técnicos levados a cabo por pesquisadores, órgãos públicos e instituições nacionais e internacionais idôneas, querem retornar aos “bons velhos tempos” em que simplesmente se invisibilizavam a existência de atingidos e as violações de seus direitos.

Avançar na Proteção dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens

Em 1987, num acordo histórico, a estatal Eletrosul reconheceu a existência dos atingidos por barragens e de seus movimentos, aceitando negociar com a Comissão Regional de Atingidos por Barragens do Alto Uruguai (CRAB). Em 2000, a Comissão Mundial de Barragens, coordenada por Kader Asmal, então Ministro de Recursos Hídricos da África do Sul, com apoio do Banco Mundial e participação de representantes de governos, indústria da energia e da construção e de organizações da sociedade civil, produziu extenso diagnóstico e fez recomendações para que fossem respeitados os direitos humanos na construção e operação de barragens (World Commission on Dams, Dams and Development: a New Framework for Decision-Making, London, Earthscan, 2000). Em 2010 o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho Nacional de Direitos Humanos) constatou a violação sistemática de direitos humanos no planejamento, construção e operação de barragens em nosso país. Em 2015 e em 2019, os trágicos e criminosos desastres de Mariana e Brumadinho comoveram o país, o Estado e o Congresso, levando a elaboração do PL 2788/2019.

O PL não é perfeito, mas nenhuma lei nasce perfeita. Uma vez aprovada, a legislação poderá ser aperfeiçoada nos próximos anos com base na experiência e no aprendizado. Certamente as vítimas de um desastre não devem ser tratadas da mesma maneira que populações deslocadas compulsoriamente para a implantação de um reservatório de água. Certamente as formas de reparação deverão variar caso a caso, e por esta razão o PL prevê a criação de comitês locais tripartites (estado, empresas e atingidos) para avaliar impactos e negociar à luz das realidades concretas. Ademais, muitas questões que escapam a uma lei desta amplitude poderão e deverão ser tratadas através de legislação regulamentar.

Mas os trágicos e criminosos desastres de Mariana e Brumadinho serviram para alertar a sociedade, o Estado e os legisladores que não é mais admissível postergar um claro e firme enfrentamento do problema, estabelecendo uma legislação de proteção às populações vitimadas e atingidas pela construção e operação de barragens. Estamos falando de centenas de milhares de pessoas compulsoriamente deslocadas por barragens (2 milhões segundo a Comissão Mundial de Barragens), sendo incontáveis todas as populações indígenas, tradicionais ou ribeirinhas que sofreram a destruição de seus meios e modos de vida.

A inconsistência e intuito protelatório dos argumentos do FMASE foram demonstrados de maneira definitiva na Audiência Pública da Comissão de Serviços e Infraestrutura do Senado Federal, realizada em 17/10/2023 (https://legis.senado.leg.br/comissoes/reuniao?0&reuniao=11956&codcol=59). É mais que chegada a hora de fazer justiça às vítimas de Mariana e Sobradinho, aos deslocados compulsórios, aos brasileiros e brasileiras com direitos sistematicamente violados pela construção e operação de barragens. A segurança dos indivíduos, famílias, comunidades não pode ser sacrificada no altar dos interesses e da segurança dos ganhos das empresas da indústria energética e da mineração. Os custos de perdas e danos não podem continuar sendo pagos pelas vítimas. 

Em 5 de novembro se completaram 8 anos de Mariana e quase 5 anos de Brumadinho. O Estado brasileiro e o Senado devem uma resposta às vítimas. Alguns, agarrados ao passado, pretendem impedir o progresso e os avanços civilizatórios por que anseia nossa sociedade. Falando em nome da Vale, da Samarco, de grandes corporações multinacionais, querem pressionar o Senado e o Governo a impedir que a história avance.

Que o Senado aprove o PL 2788 e que o Presidente Luis Inácio Lula da Silva o sancione, para que seja feita justiça e o Brasil possa encarar de frente seus parceiros quando participar das discussões internacionais sobre a crise climática e apresente propostas para a promoção da justiça ambiental.

Carlos Vainer – Professor Emérito Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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