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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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Coragem, novos pactos sociais e educação popular, por Marcelo Karloni

Há um setor de extrema direita no país que não será derrotado nas urnas, pois o fascismo não depende delas para se legitimar.

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Coragem, novos pactos sociais e educação popular: A destruição do fascismo à brasileira

por Marcelo Karloni

285 dias! Essa é a contagem exata entre 30 de outubro de 2022, a data do segundo turno presidencial no Brasil, e o dia 11 de agosto de 2023. Quase um ano após a eleição histórica, a população brasileira ainda vislumbra, mesmo que timidamente, uma saída desse cenário autoritário e golpista que tomou conta do país desde abril de 2016.

Programas sociais estão sendo reativados e aos poucos a ciência está retomando seu papel nas decisões relacionadas à saúde. A questão urbana também está sendo debatida de maneira mais apropriada no governo. Programas como o “Minha Casa, Minha Vida” estão sendo atualizados e retomando suas operações, enquanto o desemprego está em queda.

Tudo isso está se tornando possível devido à decisão política do governo eleito em 30 de outubro de 2022. O Brasil está experimentando uma mudança decisiva que, se não tivesse ocorrido, provavelmente estaríamos sob um governo ainda mais forte em negar direitos essenciais, talvez até mesmo manifestamente ditatorial, ainda mais forte que aquele dos anos 2016 a 2022.

No entanto, recentes revelações destacam o quão violentas foram as tentativas de impedir, por exemplo, que os nordestinos votassem. Usou-se a máquina do Estado, incluindo a polícia (algo que continua se confirmar com o recente noticiário), para bloquear estradas em cidades onde o candidato adversário do ex-governo, que agora está fora do poder, teve 75% dos votos no primeiro turno. A veracidade dessas ações está sendo investigada.

Pode-se dizer que “escapamos por um fio” da construção de uma sociedade quase distópica, para dizer o mínimo. Entretanto, apesar da vitória nas urnas de um projeto progressista de país, ainda paira sobre a sociedade brasileira, intrinsecamente autocrática e burguesa, um espectro organizado de golpe.

Esse espectro possui características inequivocamente fascistas. Há um setor de extrema direita no país que não será derrotado nas urnas, pois o fascismo não depende delas para se legitimar. Ele utiliza uma “ética” de fundo emocional, alimentando-se do ódio para justificar abusos de autoridade de maneira “racional”. Esse ódio é direcionado à simples diferença do outro.

Esse, o fascismo possui uma “ética”, se é que podemos assim atribuir o termo, de fundo emotivo. É passional. Usa do ódio para justificar “racionalmente” seus abusos de autoridade. Pode-se dizer que seria ele a racionalização do ódio ao simples fato do outro poder ser diferente.

Por isso não é incomum encontrar em sociedades que atravessaram o fascismo como hegemonia, cientistas, juristas, professores, políticos de carreira e intelectuais cerrando fileiras ao lado de ditadores.

Claro, há de questionar-se a cientificidade desses sujeitos, mas o que  chama atenção aqui é sob o manto de uma retórica aparentemente alinhada, o ódio se espalha e é alimentado por declarações dessas figuras públicas.

Na ausência de um ambiente favorável a declarações xenófobas, essas figuras usam termos que têm por fim atenuar a gravidade do que afirmam. Assim, termos como “reconstrução nacional”; “ patriotismo”, “ Deus”, “Família”, “Frente”, entre outros, esconderão para a opinião pública seu verdadeiro caráter violento.

No entanto, para aqueles dentre nós nos quais haja uma identificação íntima de ideias , o emprego dessas expressões soarão como um chamado. Uma convocação que se assemelha ao conceito de missão para o religioso. Se alimenta assim o ressentimento regional, que não aceita a ideia de mais uma vez ser governado por um nordestino dos arredores de Garanhuns, sertão de Pernambuco. Um ressentimento de parte da classe média que enxerga o morador da periferia frequentador da universidade de seu filho como ameaça e o ressentimento de ter seu projeto derrotado nas urnas em 2022.

O que é preciso compreender é que na esfera do sentir e do afeto, não há muitos meios de vencer o fascismo. A luta não é racional. Ela é de fundo emotivo. Há uma ética aí escondida. É essa “ética” que explica parte dos motivos que legaram ao Brasil a marca de uma sociedade fundada na troca de favores e no patriarcalismo.

De todo modo, governo federal mudou e está em andamento. Porém, há três eventos recentes que podem indicar, quando entre si relacionados, a articulação retórica e de força que está em operação no Brasil no exato momento da escrita desse texto.

Importa recordar que o autoritarismo é um processo social, não apenas político, que ainda conta com um tom de “cordialidade” que vem disfarçado na troca de favores, das gentilezas, dos “agrados” e de uma ética de fundo emotivo.

É nessa concessão de favores e na defesa do nome de “família” – não necessariamente a originária, mas quem decidimos assim chamar – que o interesse particular se sobrepõe ao geral. Nessa lógica é que optamos em defender os íntimos, mesmo quando em erro, frente aos nossos desafetos. Não, não há como esconder o que somos como sociedade, pois dentro e fora das universidades essa “ética” oprime e persegue todo traço verdadeiro meritocrático.

Essa cordialidade está longe da ideia de gentileza. Ela é uma “corda” com a qual se socorre quem está do nosso lado e, ao mesmo tempo, se “enforca” quem feriu de “morte” nossa ética – mal conceituada ética – de família.

Porém, é importante observar quanto a cordialidade e sua relação com fascismo escamoteia e camufla todas as ações de violência institucional e não institucional em nossa sociedade, inclusive tentando tentando justificar violências sob o pretexto da “bandeira” da defesa da “família patriarcal”. Não nos enganemos, a noção de família que rege muitas instituições, mesmo públicas, em nossa história é apontada por Sérgio Buarque como uma das causas do nosso atraso. Ela é patriarcal, pois traz para baixo de sua influência protetora todos os que são alvos de nosso afeto e “lança” às feras os que por casualidade ou por opção se tornaram nossos desafetos.

E há afeto no fascismo… e muito. Não se trata de um fascismo desprovido de emoção. Pelo contrário, é prenhe dela e a direciona às raias da paixão quando posto em movimento. Mas vamos aos três episódios recentes veiculados na mídia que ilustrarão essa afirmação.

Chacina no Guarujá

Em 03 de agosto já havia subido para 16 o numero de mortos envolvidos no episódio do Guarujá em São Paulo. Entre os dias 28 de julho e 03 de agosto, uma operação da polícia militar chamada ESCUDO estava sendo deflagrada no município. Teria sido essa uma resposta à morte de um soldado da corporação no dia 27 de julho. Obviamente, não há necessidade de entrarmos nos pormenores da operação, já que o caso está sendo acompanhado nacionalmente e nos faltaria tempo para explorar seus meandros. O que se tem aqui por objetivo é confirmar que a ação do Estado, embora possa se revestir de racionalidade em alguns momentos, possui forte conteúdo emotivo e, portanto, passional.

Especialistas em segurança pública apontam que operações policiais, especialmente nas periferias, são marcadas pela ausência de inteligência e pelo uso excessivo da emocionalidade. Moradores das periferias frequentemente são mortos e torturados como retaliação à morte de um policial. Ou seja, não é incomum que moradores da periferias sejam mortos e torturados como resposta à morte de um integrante da corporação militar.

Obviamente, crimes como o que vitimou o policial Patrick Bastos Reis precisam ser esclarecidos. É um servidor público e, como servidor da segurança, também sofre com a ausência de investimentos para garantia de sua proteção em espaços de conflito armado, baixa remuneração, horas de trabalho extenuantes, assédios morais entre outras questões.

Porém, a despeito de tudo isso, o uso do aparato policial para “vingança” pode até satisfazer essa necessidade nossa de nos sentirmo “justiçados”, mas isto apenas serve como pano de fundo para aumentar ainda mais a desconfiança entre moradores de periferia e a polícia militar. Ou seja, tudo o que o crime organizado deseja.

A passionalidade aqui tem arma e pode matar. Não é a passionalidade de um povo que tem por única arma sua voz e seu voto, como os moradores da periferia. Note-se que digo moradores.

A “Frente” sul-sudeste

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema envolveu-se em nova polêmica regional ao dizer que a frase “Vaquinhas que produzem pouco”, uma clara referência à região Nordeste, o governador de Minas Gerais se recusa a admitir qualquer viés regionalista na sua fala. É um direito. Não é incomum haver falas “infelizes” por parte de autoridades. A questão não é essa.

A questão é o que revelam essas “infelicidades discursivas”.

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, se envolveu em uma nova polêmica regional ao se referir à região nordeste como “vaquinhas que produzem pouco”. Apesar de o governador negar qualquer viés regionalista em sua fala, o que importa aqui não é condenar a declaração em si, mas sim o que ela revela. Não é incomum haver falas “infelizes” por parte de autoridades, porém a questão principal está sobre o que escondem essas “infelicidades discursivas”. O Brasil está passando por uma disputa política intensa, com uma extrema direita em busca de um novo líder após a prisão de seus representantes anteriores que dê possibilidades de dela voltar ao poder.

Evidentemente que uma colocação infeliz não deve condenar quem a profere, entretanto quando colocações como essas provêm de autoridades como governadores e políticos, o resultado assemelha-se ao estopim de um barril de pólvora. Nesse contexto, já vemos voltar às redes sociais a imagem veiculada por um grupo de separatistas que defende a construção de um muro físico que separe as regiões Norte e nordeste.

Percebem? A retórica, ainda que assumida como mal interpretada pelo emissor, mantém viva entre apoiadores separatistas a “paranoia” de um país que expurgue seus miseráveis do Norte e Nordeste. O argumento segue defendido em nome da reforma tributária, que segundo o governador de Minas Gerais é o seu mote. Ele busca por uma justiça tributária baseada no número de habitantes, e não no número de unidades da federação. Essa é uma discussão, mas, por favor, não sejamos tão ingênuos a ponto de ignorar os interesses de disputa do capital político que hoje caminham pelo Brasil como um “exército” sem “capitão”.

Essa ideia de frente imbuída do mesmo fundo emotivo do homem cordial. O patriarcalismo, essa instituição anacrônica à democracia moderna, provavelmente, bebe do ressentimento de termos novamente um nordestino na presidência da República. Sim! Apesar de morador de São Paulo, o atual presidente é dos arredores de Garanhuns, no estado de Pernambuco, fato que até a esquerda do Sudeste e Sul às vezes parece querer esconder, pasmem.

Os episódios de xenofobia nas redes sociais, intensificados em época de eleição presidencial, não são poucos. Porém o que chama atenção é a  ligação entre a fala do governador Zema e a descoberta recente da ação comandada pela PRF para bloqueio de vias durante o segundo turno no Nordeste em 2022. Em outras palavras, por trás dessas falas aparentemente equivocadas, parece haver correspondências práticas e geralmente violentas com as ações políticas da extrema-direita. Essas ações estão claramente conectadas, ainda que em nível da representação social dos seus agentes. São falas e ações que obedecem a condicionantes estruturais, mais do que ao sujeito. Elas denunciam posições, denunciam ideologias, denunciam visões de mundo.

O Brasil precisa urgentemente abandonar essa noção nonsense de que declarações são apenas declarações, especialmente quando essas falas vêm de autoridades que podem transformá-las em ações violentas, como acaba de acontecer no Guarujá, litoral de São Paulo. Não se trata de ato falho, é o que se quer realmente dizer aqui. Atentemo-nos mais para esses supostos equívocos de fala.

Zona oeste do RJ, 07 de agosto de 2023

Em uma comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro, um adolescente de 13 anos foi assassinado. A narrativa sobre o incidente é contraditória: ele foi acusado de atirar em policiais, mas também se alegou que estava na garupa de uma moto. Familiares afirmam que a cena foi manipulada para confirmar a versão da polícia. A investigação está em andamento.

Não creio ser necessário falar muito aqui. Apenas publicizar já é um grande passo. Segundo pesquisa do grupo de estudos dos novos ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, entre 2007 e 2021, as polícias fluminenses realizaram 17.929 ações em comunidades com 2.393 mortos na região metropolitana. Desse total, 19 eram policiais.

A eficiência das operações está em torno de 1,53%, segundo especialistas em segurança pública. Outro dado alarmante da Rede de Observatórios da Segurança sobre esse tipo de ação é que 86% dos mortos em ações policiais no Rio de Janeiro são negros. Em 2020, o estado do Rio teve 1.245 mortos em ações policiais. Somente na capital, das 415 mortes, 90% foram de pessoas negras. Há dados e mais dados que poderiam ser apresentados. Mas o que fato fica é que as periferias regionais ou das cidades sempre tiveram no Brasil sua versão negada. “Tudo não passou de uma fala mal colocada” (equívocos de autoridades ), uma rua escura ( na qual não seria possível distinguir um adolescente de 13 anos de um traficante), ou mesmo de um desejo de vingar alguém da nossa “família institucional” – como no caso da chacina do Guarujá.

Coragem, novos pactos sociais e educação popular, destruirão as bases do fascismo

O fascismo no Brasil combatido por intelectuais e por nós professores não é apenas discursivo. Ele vira prática. Vira rotina. Vira estatística. Portanto, não é  apenas na formação de mesas de debate sobre esses dados alarmantes – vistos por nós desde sempre diga-se – que será vencido. É necessário ações políticas corajosas, como a reforma do sistema de segurança pública, ainda com DNA da ditadura militar, um novo pacto federativo que trabalhe para distribuir riquezas e ciência (investimentos nas universidades no Nordeste) com o objetivos de não concentrá-las mais uma vez no Sul e Sudeste ( aqui basta um pouco de leitura do Chico de Oliveira em Elegia para uma Re(li)gião) e ações nas periferias das nossas cidades para prover educação popular, cultura, esporte e lazer.

No país onde a retorica da direita fascista não é minado, não há democracia nem futuro possível para uma frente nacional esmagar qualquer outra frente separatista que se anuncie.

Marcelo Karloni é Professor da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Curso de Arquitetura e Urbanismo e membro do Núcleo Arapiraca da Rede BrCidades.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas

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