
Um ícone nacional humilhado
por Homero Fonseca
Era 1969 quando estourou em todo o Brasil, na voz jovial de Jair Rodrigues, o samba “O conde”, contando uma história de amor de um sambista abandonado que se consola ao desfilar pela escola de samba do coração, a Portela. Quem, nos anos 70, não cantou, nos bares e nas festas, os célebres versos: “Como é / Que eu posso por ela trocar / A emoção de ver Vilma dançar / Com o seu estandarte na mão / E ouvir todo o povo meu povo aplaudir / Minha escola a evoluir / Minha ala comigo passar”?
Os autores da composição – Jair Amorim, jornalista capixaba, e Evaldo Gouveia, violonista cearense – formavam uma dupla responsável por alguns dos maiores sucessos da música popular brasileira, gravados pelo cantor Altemar Dutra (“O trovador”, “Brigas”, “Bloco da solidão”) e mais um time onde se incluem Aguinaldo Rayol, Ângela Maria, Anísio Silva, Gal Costa, Miltinho, Milton Nascimento, Nélson Gonçalves, Rosana, entre outros.
A personagem do verso “A emoção de ver Vilma dançar” é a carioca Vilma Nascimento, de 83 anos, que ontem (quinta-feira, 23/11/2023), foi coagida e humilhada numa dessas lojas de importação livre no Aeroporto de Brasília. Ela voltava para o Rio, depois de haver sido uma das personalidades homenageadas na Câmara dos Deputados no dia anterior, no marco do Dia da Consciência Negra. Ela e a filha Danielle, que comprara chocolates na loja, foram abordadas por uma fiscal e constrangidas a abrirem as bolsas diante do público, acusadas de roubo. Danielle contou que a fiscal acusou-a de não haver pago a mercadoria e recebeu uma instrução pelo rádio para também revistar a bolsa da mãe. Do alto de sua dignidade, a octogenária Vilma disse que só abriria a bolsa na presença da Polícia. Como a Polícia não chegava, a filha convenceu a mãe a mostrar o conteúdo da valise, pois estavam na iminência de perder o voo. A família vai levar o caso à justiça. Uma pá de artistas, entidades e políticos se solidarizaram com as duas e denunciaram o caso como racismo.
Paulinho da Viola declarou:
Foi com dor e indignação que vi o vídeo dessa cena lamentável. (…)Apesar de todos os esforços que temos feito para combater esse preconceito, ele acontece diariamente toda vez que uma pessoa é agredida, humilhada, constrangida e ferida dessa maneira. Eu também me sinto ferido.
A Escola de Samba lançou nota, afirmando:
A luta por uma sociedade mais justa e humana passa pelo combate ao racismo. (…) Vilma é um dos ícones da Portela e do carnaval. É uma sambista de destaque, que traz na pele a marca de nossa ancestralidade. O constrangimento, demonstrado nas imagens divulgadas, é sentido por todos que temos no samba parte importante de nossa identidade, e que enxergamos em Vilma uma de nossas grandes referências.
É por isso que constatamos: a abolição da escravatura ainda não foi concluída no Brasil.
Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.
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