Relembre: Perus – o desafio de resgatar os mortos sem identidade

“Perus é um pretexto, tem que ser um pretexto, para entender como é que um país moderno, o maior da América Latina, uma potência como é o Brasil, poderá terminar um jogo de mais de mil pessoas que não têm identidade”

Perus é um pretexto para terminar este jogo em que tantas histórias precisam ser recuperadas bem como essas identidades, nos faz entender o antropólogo José Pablo em entrevista exclusiva ao GGN

Jornal GGN – Mais um capítulo de correção histórica, a cidade de São Paulo recebe este ano o que significará um marco no registro da ditadura brasileira e na antropologia forense mundial: o Grupo de Trabalho Perus.

A “vala de Perus” foi descoberta em 5 de setembro de 1990 – uma cova clandestina no cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona norte de São Paulo. Lá, estavam abrigadas ossadas de desaparecidos políticos da ditadura do regime militar (1964-1985). Logo que foram encontradas, um total de 1.049 ossadas ficou a cargo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fazer o trabalho de identificação dos corpos. A partir de então, a negligência marcou a história de Perus. Passaram-se 24 anos para o trabalho, efetivamente, começar.

Foi preciso uma articulação entre a Secretaria de Direitos Humanos, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o Ministério Público Federal e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para resultar no Grupo de Trabalho Ossadas de Perus, uma equipe de antropólogos, arqueólogos, sociólogos, geneticistas e historiadores. Com referências internacionais, profissionais da Cruz Vermelha, peruanos e argentinos também foram trazidos para compor a equipe multidisciplinar.

José Pablo Baraybar é um deles. Antropólogo peruano, especializado em exumação de corpos e técnicas criminalísticas, diretor da Equipe Peruana de Antropologia Forense, encarregada pelo relatório final da Comissão da Verdade e Reconciliação da violência interna do país. Como integrante do Escritório de Desaparecidos e Ciências Forenses das Nações Unidas, trabalhou para tribunais penais internacionais, como de Ruanda e Iogoslávia. Também viveu 11 anos investigando crimes de genocídios na Bósnia, e já levou sua experiência à África, Oriente Médio, sudeste asiático e América Latina.

Em um projeto combinado, José Pablo explica que a antropologia forense conta também com médicos e criminalistas, e necessita da integração das diferentes áreas, “todos trabalhando em sinergia”, assim descreve, em entrevista especial ao GGN.

“O patologista tinha responsabilidade de determinar a causa da morte, mas são pessoas especializadas em tecidos. Por outro lado, o antropólogo trabalha nos ossos, com os cadáveres. Mas, se olhar um cadáver decomposto, não dá pra saber se é homem ou mulher, jovem ou velho, porque o osso se quebrou, etc. É aí que acontece essa interação. Então, as áreas estão juntas, ainda que separadas. Cada vez mais o interdisciplinar está dominando o campo”, conta.

Frente a, talvez, principal dúvida de leigos – se é possível identificar, a partir das ossadas, o que levou a pessoa à morte – José Pablo esclarece: “Totalmente, os ossos falam. As lesões ocorridas próximas do período de morte, perimortem, ou as lesões ocorridas antes da morte, antemortem, são totalmente distintas. Os ossos são como recipientes que guardam informações que podemos interpretar. Um disparo na cabeça por exemplo. Certamente é possível saber”.

Além disso, existe mais de uma forma de se identificar corpos. “Muitas pessoas pensam que existe um protocolo que se usa em todas as partes do mundo, como o protocolo de Minnesotta, protocolo de Instambul para o tema da tortura. Não existem protocolos, existem recomendações de melhor prática, que vão se formando e se juntando”, afirma.

Para solucionar essas diferentes vertentes de pesquisa e identificação, o grupo se reuniu durante uma semana de encontros para padronizar e definir as técnicas a serem utilizadas neste significante caso das ossadas de Perus.

“Nós preparamos uma série de processos, porque o que interessa é que o trabalho de Perus seja também uma linha de referência, que se possa seguir de um ponto a outro”, diz José Pablo, deixando claro que o objetivo vai além: construir uma fonte estruturada de conhecimento para a pesquisa forense no Brasil.

E é nesse sentido que um estudo tão técnico e relativamente objetivo traça heranças maiores para a história nacional. “Quais são as implicações do trabalho de Perus, no futuro? Por exemplo, estamos testando agora um escâner 3D para ter imagens completas dos crânios e, assim, anotar as medidas para saber se a pessoa tende a ser mais afro, ou caucasiana, ou mais oriental. Mas, por que digo que isso é importante?”, questiona.

“Perus é um pretexto, tem que ser um pretexto, para entender como é que um país moderno, o maior da América Latina, uma potência como é o Brasil, poderá terminar um jogo de mais de mil pessoas que não têm identidade”, responde o antropólogo.

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Acompanhe a entrevista. Caso prefira, ative a legenda na barra inferior do vídeo.

http://youtu.be/zhQ4wesH2UE?list=PLZUPpD2EGpfq_qmuuuccp93EvxieaQ99a width:700 height:394

Imagem e edição: Pedro Garbellini

Entrevista concedida a Luis Nassif, Patricia Faermann e Pedro Garbellini

Acompanhe as próximas reportagens da série “Ossadas de Perus, a difícil transição”.

Redação

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