Quando o rabo balança o cão ou a “desancoragem” das análises, por Lauro Veiga Filho

Parece estar em curso uma real e efetiva “desancoragem” da maioria das análises frente aos dados disponíveis sobre o lado real da economia.

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Quando o rabo balança o cão ou a “desancoragem” das análises

por Lauro Veiga Filho

Mantidas as condições atuais, nos termos da ata divulgada na quarta-feira, 18, pelo Comitê de Política Monetária (Copom), referente à reunião ocorrida entre 10 e 11 deste mês, a taxa básica de juros poderá atingir 14,25% até 19 de março, quando o comitê concluirá sua segunda reunião no próximo ano. A se confirmar o prognóstico antecipado pela ata, o Copom realizaria pelo menos mais duas rodadas de alta dos juros, cada uma de um ponto percentual, o que elevaria os juros reais para mais de 9,3% ao ano, uma taxa absurdamente elevada a se considerar uma suposta “ameaça” inflacionária, “fantasma” ainda mais esdrúxulo quando se considera que o próprio comitê admite um recuo da inflação para 4,5% ao final do ano que vem.

O Copom afirma que passou a trabalhar com um cenário mais adverso, embora “menos incerto”, já que teriam se concretizado os riscos de “resiliência da inflação de serviços, desancoragem das expectativas e depreciação cambial” (alta do dólar). Numa tentativa de fundamentar sua avaliação, o comitê argumenta que a inflação subiu e tende a continuar mais alta, que a política fiscal continua “expansionista”, assim como o crédito continua avançando, dando sustentação a um ritmo mais robusto para a atividade econômica, supostamente acima da capacidade de produção de bens e serviços em toda a economia. “A desancoragem das expectativas de inflação é um fator de desconforto comum a todos os membros do comitê e deve ser combatida”, reforça a ata divulgada pelo BC.

Para usar a mesma terminologia, o que parece estar em curso é uma real e efetiva “desancoragem” da maioria das análises frente aos dados disponíveis sobre o lado real da economia. A começar pelos tais “riscos inflacionários”. Em retrospectiva, apenas para relembrar, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a acumular variação de 12,13% nos 12 meses terminados em abril de 2022 e fechou os 12 meses do ano seguinte em 4,62%. Neste ano, a taxa acumulada em 12 meses havia alcançado 4,87% em novembro, mas com boas perspectivas para dezembro, a despeito da escalada do dólar (numa jogada meramente especulativa conduzida por setores do mercado, parte de uma orquestração maior destinada a forçar a alta dos juros e desestabilizar a economia).

Focos debelados

A inflação mensal passou a registrar tendência mais altista a partir da segunda quinzena de setembro, sob efeito principalmente da estiagem severa que atingiu o País neste ano, causando altas nos preços dos alimentos e sobretudo das carnes, sancionadas ainda pela exportação crescente naquela área. Os embarques de carne bovina saltaram 29,43% nos primeiros dez meses deste ano, atingindo 2,386 milhões de toneladas, diante de 1,843 milhão em igual período do ano passado. Outra parte da inflação, igualmente relacionada aos efeitos da seca, veio pelo encarecimento das tarifas de energia, com a adoção das bandeiras vermelha e amarela entre setembro e outubro.

Com a retomada das chuvas, a oferta de animais para abate tende a ser normalizar, contribuindo para segurar os preços naturalmente. No setor de energia, a aplicação da bandeira verde neste mês, sem a cobrança de taxas adicionais na tarifa cheia, já vem causando redução de custos, o que tem empurrado a inflação para baixo, mostrando o caráter passageiro das altas ocorridas entre setembro e outubro.

A tendência de melhoras no horizonte vem sendo confirmada, por exemplo, pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), assim como pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade de São Paulo (Fipe/USP). O Índice de Preços ao Consumidor Semanal (IPC-S), calculado pelo Ibre, saiu de 0,15% ao mês na segunda quadrissemana de novembro para literalmente zero na primeira quadrissemana de dezembro, registrando variação mensal de 0,08% nas quatro semanas finalizadas em 15 de dezembro.

O Índice de Preços ao Consumidor (IPC), da Fipe, havia anotado alta de 1,17% nas quatro semanas de novembro e recuou para uma taxa mensal de 0,76% ao longo das duas primeiras quadrissemanas de dezembro (quer dizer, nos 30 dias encerrados ao final da primeira quinzena deste mês). O índice do Ibre acompanha os preços em sete capitais (Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo), enquanto o IPC da Fipe acompanha a evolução do custo de vida na capital paulista. Os indicadores corroboram a melhora no cenário no último mês do ano e antecipam variações de preços igualmente mais contidas para janeiro, a se considerar a expectativa de uma safra histórica em 2025.

E mais “desancoragem”

Em outra versão apresentada pelo Copom, seus membros temem que um “esmorecimento no esforço de reformas estruturais e disciplina fiscal”, combinado com o crescimento do crédito direcionado e incertezas em relação à “estabilização” da dívida pública gerem “impactos deletérios sobre a potência da política monetária”. Quer dizer, exigiriam que os juros fossem ainda mais altos para conter a inflação.

As avaliações parecem novamente bater de frente com os dados da realidade. Os dados do BC mostram que o superávit primário do setor público como um todo (ou seja, a diferença entre receitas e despesas, excluídos gastos com juros) saltou nada menos do que 149,2% em outubro, saindo de R$ 14,798 bilhões no mesmo mês de 2023 para R$ 36,883 bilhões. Diante desses números, o déficit primário acumulado entre janeiro e outubro despencou de R$ 82,281 bilhões no ano passado para R$ 56,678 bilhões no mesmo intervalo de 2024, correspondendo a um corte de R$ 25,603 bilhões. No governo central, a queda chegou a 32,26%, representando redução de R$ 31,625 bilhões.

No caso do crédito, parece ser o caso nítido do rabo que balança o cachorro. No período entre janeiro e outubro deste ano, as concessões de novos empréstimos e financiamentos pelos bancos aumentaram de R$ 5,079 trilhões em 2023 para R$ 5,882 trilhões nos mesmos 10 meses deste ano, subindo 15,8%. A participação das concessões do crédito direcionado naquele total, na verdade, recuou de 11,59% para 10,95%, refletindo elevação de 9,37% do valor das operações naquela área, avançando de R$ 588,844 bilhões para R$ 644,005 bilhões. A contribuição do crédito direcionado para o crescimento das concessões totais ficou limitada a 6,87%.

Em tempo: o saldo do crédito não impacta diretamente a demanda total na economia, já que refletem também operações contratadas lá atrás e já realizadas. A demanda sobre mais diretamente a influência das concessões, ou seja, do volume de novos empréstimos e financiamentos que passam a alimentar os negócios em geral.

Investimentos cresciam

Em nota final, mas não menos relevante, a ata menciona os riscos de um aquecimento da economia gerar pressões adicionais sobre a inflação diante de um suposto esgotamento da capacidade instalada nas fábricas de atender à demanda crescente. Os dados desagregados do Produto Interno Bruto (PIB) mostram que as empresas vinham investindo mais, o que tenderia a criar as condições necessárias para sustentar taxas de crescimento mais alentadas (não fosse a alta absurda dos juros). No semestre terminado em setembro deste ano, enquanto o PI e o consumo das famílias cresceram 3,69% e 5,32% em relação ao mesmo período do ano passado, o investimento chegou a experimentar incremento de 8,31%.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

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1 Comentário

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  1. Do comentário ressalta a incapacidade de o governo petista indicar quadros vinculados a uma visão realista e não catastrofista da economia. Os dados expostos desmontam o uso continuado do “quanto pior melhor”. Tudo é aprovado, via de regra, por todos os integrante do COPOM. Esta unanimidade expõe claramente que o “espírito de corpo” – ou interesses futuros ? – supera a racionalidade. A prova escarrada de más indicações. Ou é espírito de corpo – a degradação da individualidade/honestidade intelectual – ou interesses inconfessáveis. Há outras opções ?

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