Análise das Interconexões Brasileiras
por Fernando Nogueira da Costa
Quando se analisa as transformações da realidade socioeconômica brasileira, nas últimas décadas, um dos pontos centrais é a transição do Brasil de uma economia predominantemente rural para uma sociedade urbana com 87% da população residindo em cidades. Esse processo, impulsionado por fatores de repulsão, como a falta de uma reforma agrária efetiva, e de atração, como a industrialização, resultou em um grande contingente populacional buscando estratégias de sobrevivência em serviços urbanos precários e de baixa produtividade.
A classificação tradicional dos setores econômicos em primário, secundário e terciário se torna cada vez mais limitada para descrever a complexidade da economia contemporânea. A ascensão do setor de serviços, também impulsionada pela desindustrialização e pela nova divisão internacional do trabalho, coloca em evidência a necessidade de rever os conceitos ultrapassados, para entender a dinâmica das cadeias produtivas e a geração de valor.
A crescente demanda por serviços urbanos, como comércio, saúde, educação e transporte contribui para a expansão do setor terciário na economia brasileira. A urbanização acelerada e desordenada resultou em desigualdade social, violência urbana e déficit de infraestrutura nas periferias das grandes cidades.
Diante da ausência do Estado, no caso, governo estadual ou municipal, a fé e o crime organizado emergem como forças ordenadoras. Oferecem soluções e modelos de gestão para as populações marginalizadas.
As igrejas evangélicas pentecostais, em particular, experimentam um crescimento significativo, ocupando um espaço deixado pela esquerda, antes por meio da Teologia da Libertação, e articulando-se politicamente para defender seus interesses. O discurso da Teologia da Prosperidade, aliado à oferta de apoio social e oportunidades de empreendedorismo, atrai um número crescente de fiéis, principalmente, nas periferias.
A Teologia da Libertação católica visava conscientizar os pobres de sua pobreza não ser desejada por Deus, nem ser natural, mas sim consequência de forças sociais e políticas capazes de os explorar para se enriquecer à custa deles, mantendo-os pobres. A Teologia da Prosperidade, por sua vez, é uma doutrina teológica neopentecostal segundo a qual a abundância material é o desejo de Deus para seus fiéis, e a fé, o discurso positivo e, obviamente, as doações para os pastores e/ou os templos irão sempre aumentar a riqueza material do crente.
O crime organizado, por sua vez, consolida-se como um ator econômico relevante, controlando territórios e implementando “modelos de negócios” globalizados, como no caso do tráfico de drogas. A partir de uma estrutura hierárquica e de regras internas rígidas, organizações como o PCC buscam “ordem e previsibilidade” em um contexto de violência e desgoverno, evitando a matança mútua de gangues dos jovens marginalizados.
É necessário também o entendimento da política brasileira para se compreender a complexidade da economia. O “presidencialismo de coalizão”, caracterizado por alianças partidárias e negociações em busca de governabilidade, influencia diretamente a formulação e implementação de políticas públicas em áreas como agricultura, indústria e infraestrutura.
Além da “bancada da bíblia”, a crescente influência do agronegócio na política, por exemplo, ilustra o poder de grupos de interesse, entre os quais, a “bancada do boi”, na definição de agendas e na alocação de recursos públicos. A “bancada da bala”, por sua vez, composta por políticos ligados às forças de segurança, ganha espaço em um contexto de aumento da violência e discurso de “livre armamentismo”.
Há, nesse contexto sociopolítico, diversas interconexões setoriais importantes na economia brasileira contemporânea. Uma das principais se dá entre a produção agrícola e a indústria de transformação. O Brasil se consolidou como uma potência agrícola global, com destaque para a produção de soja, milho, carne bovina e frango. Essa produção agrícola, por sua vez, impulsiona a demanda por insumos da indústria mecânica, como máquinas agrícolas, e de transformação em alimentos.
Além disso, a indústria extrativa, com ênfase na produção de petróleo e minério de ferro, tem papel fundamental no superávit do balanço comercial brasileira. As receitas provenientes da exportação desses produtos primários fornecem recursos para a importação atender à economia como um todo, inclusive de fertilizantes para a agricultura de exportação. A importação de máquinas e equipamentos é parte dos investimentos em outros setores, como a indústria automobilística.
A crescente importância da bioeconomia no Brasil tem potencial para gerar novas interconexões setoriais. O país possui uma grande biodiversidade e expertise em agricultura tropical, abrindo oportunidades para o desenvolvimento de novos produtos e tecnologias na área de biocombustíveis, biomateriais e biofármacos.
Outro aspecto importante é a crescente financeirização da economia brasileira, com o fluxo de capital financeiro interligando diferentes setores, entre os quais, o agronegócio e a indústria extrativa. O papel do crédito rural subsidiado e a crescente participação de empresas estrangeiras no agronegócio brasileiro é outra chave de entendimento. Isso sem falar na acumulação de reservas financeiras.
Embora o Brasil tenha um superávit comercial, quase atingindo US$ 100 bilhões, ele não é suficiente para cobrir o déficit na conta de serviços do balanço de pagamentos. Esse déficit é impulsionado principalmente por:
1. Remessas de lucros e juros: as empresas multinacionais operantes no Brasil enviam lucros e pagam os juros de empréstimos inter companhia – carry trade onde internaliza capital de juros baixos para ganhar com juros elevados –, para suas matrizes no exterior, usando o superávit comercial para a saída de dólares.
2. Royalties de patentes: a dependência do Brasil em relação a tecnologias estrangeiras, em setores como o automobilístico e o farmacêutico, entre outros, resulta em pagamentos de royalties de patentes para empresas multinacionais, exigindo maior superávit comercial para a saída de dólares do país.
Nesse encadeamento internacional, o Brasil vende produtos primários e industriais para o exterior, gerando um superávit comercial. Os lucros gerados por empresas multinacionais, operantes nesses setores, juntamente com pagamentos de juros e royalties, são repatriados para o exterior, resultando em um déficit na conta de serviços. O déficit no balanço de transações correntes é coberto por Investimento Direto Estrangeiro (IDE), em espécie de “círculo vicioso” desnacionalizante, dentro da atual divisão internacional do trabalho.
Os fluxos globais de IDE incluem três componentes:
- Capital social (equity capital): a compra, por um investidor direto estrangeiro, de ações de uma empresa em outro país.
- Empréstimos intraempresa: empréstimos de curto ou longo prazo entre a empresa matriz e a empresa afiliada.
- Lucros reinvestidos: os lucros retidos em afiliadas estrangeiras por empresas multinacionais, compreendendo a parte do investidor estrangeiro (na proporção da participação direta no capital social) dos ganhos não distribuídos como dividendos pelas afiliadas, ou os ganhos não remetidos à matriz no exterior.
Existe o exemplo da China para ilustrar como um país com um Estado desenvolvimentista, senão em Socialismo de Mercado, pelo menos em Capitalismo de Estado, é capaz de planejar uma economia de mercado em longo prazo e superar esse ciclo. A China, antes das reformas no fim dos anos 70s, dependente da importação de bens industriais, implementou uma política industrial focada na atração de multinacionais com compromisso de transferência de tecnologia.
Essa estratégia, combinada com investimentos em infraestrutura e mão de obra qualificada, permitiu-lhe se tornar uma potência industrial global, capaz de competir em termos de custos e tecnologia no comércio internacional. Por carência de educação, ciência e tecnologia, além do distanciamento geográfico (e custo de transporte), o Brasil está mais afastado das Cadeias Globais de Valor.
A economia brasileira contemporânea é caracterizada por interconexões setoriais complexas e dinâmicas, com destaque para os setores agrícola, extrativo e industrial de serviços. É necessário compreender essas interconexões para a formulação de políticas públicas estratégicas para o desenvolvimento do país.
Para tanto, exige uma análise transdisciplinar abrangente e crítica, destacando a interdependência entre os fatores econômicos, sociais e políticos. A urbanização acelerada, a ascensão do setor de serviços, a influência da fé e do crime organizado, e a complexidade da política brasileira também são elementos fundamentais para se compreender as perspectivas para o futuro do país.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].
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