Alarmismo e gritaria: Lula e os ‘Mercados’, por Davi Spilleir

O 'mercado' está mais preocupado em como manter sua lucratividade enquanto mais de 30 milhões de pessoas passam fome pelo país

Foto: Ricardo Stuckert

Alarmismo e gritaria: Lula e os ‘Mercados’

Por Davi Spilleir*

Desde a eleição do agora-eleito presidente Lula, o Mercado, ou melhor, os Mercados, esses sujeitos coléricos, voláteis e muito opiniosos, demonstram a ferocidade de seus ânimos. Com variações extremas entre felicidade e raiva, os Mercados vivem um momento bastante peculiar de amor e ódio em sua relação com o presidente-eleito.

Tornam-se radiantes quando percebem que nomes importantes do liberalismo econômico, como Pérsio Arida, Pedro Malan e outros, apoiam (e apoiaram) a eleição de Lula. Regozijam-se a cada nova especulação sobre o nome do futuro Ministro da Economia e dos demais sujeitos do primeiro escalão governamental. Quantos mais liberais, mais contentes.

Os sujeitos dos Mercados deitam suas cabeças placidamente para dormir quando estão seguros de que absolutamente nada representará qualquer risco aos fluxos de capital e especulação.

Contudo, no meio de tudo havia algumas pedras e essas pedras eram pessoas. Pessoas estas que possuem necessidades e que conhecem a fome. Realidades distintas destes dos senhores dos Mercados, são as vidas das 33 milhões de pessoas que passam fome, de acordo com os últimos levantamentos da Rede Penssan, o conglomerado formado por entidades que pesquisas as condições da insegurança alimentar no país.

Esse número possui vieses ainda mais fortes, quando são adicionados critérios de raça e gênero, afinal, a fome atinge mais fortemente negros (65% de todos os lares de pessoas pretas convivem com formas generalizadas de fome), e lares chefiados por mulheres (19%, contra 11,9% daqueles chefiados por homens)[1].

A fome vem acompanhada de questões conjunturais bastante severas. Alguns dados ajudam a elucidar as condições de vida do povo. Após anos sem reajustes reais do salário mínimo, com inflação de alimentos nas alturas, altas constantes de combustíveis e as precarizações dos contratos de trabalho, reflexo da dita Reforma Trabalhista, promulgada no Governo Temer, as pessoas encontram um nível quase generalizado de endividamento.

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Dados recentes da Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) mostram que aproximadamente  77% das famílias brasileiras possuem endividamento, sendo esses números mais fortes entre famílias com renda menor que 10 salários mínimos (79,9%), porém também elevado naquele estrato que recebe acima desse valor (75,9%).

Aqui novamente nota-se o recorte de gênero acentuado contra mulheres. O levantamento mostra que 81,9% das mulheres estão endividadas, contra 78,3% dos homens, números que cresceram 7%, quando comparado com as aferições do mesmo período de 2021 [2].

Números e mais números que demonstram parte da herança maldita que está sendo legada, mas, afinal, do que reclamam os patrióticos Senhores dos Mercados? Enquanto a mídia internacional e a política das grandes nações veem em Lula a possibilidade do retorno do Brasil ao xadrez internacional, a grande preocupação destes sujeitos dos Mercados é se haverá ou não estouro do Teto de Gastos e se haverá responsabilidade fiscal por parte do novo governo.

A refutação lógica dessa preocupação e de todo o alarmismo que vem sendo feito em torno deste tema, infelizmente, só pode ser melhor evidenciado com alguns outros números. Afinal, o cenário é preocupante e a devastação que está aí torna tudo ainda mais complicado. A quantidade de dinheiro disponível para 2023 é ínfima para a continuidade da máquina. Só de isenções fiscais, são R$ 400 bilhões previstos, aponta o TCU [3].

Esse valor representa 4% do PIB, sequestrado para suavizar os bolsos dos senhores dos Mercados. Mais, o orçamento (outrora-público-e-que-agora-é-secreto) já recebeu R$ 234 bilhões em propostas de emendas. Considerando-se que a base do governo é menor que a oposição, Lula dificilmente apresentará algum impedimento à continuidade do orçamento secreto, agora chamado pela mídia de propostas do relator.

Ademais, os gastos com a dívida pública apresenta trajetória ascendente há anos, tendo praticamente dobrado de 2019 – 2021. O último dado consolidado mostra que os gastos do governo em 2021 com a dívida pública havia sido de R$ 1,96 trilhão [4]. Para 2022 o valor previsto é de R$ 2,2 trilhões e, para 2023, R$ 3,2 trilhões [5].

A formatação financeira do Brasil atual coloca em risco a perenidade dos valores do Bolsa Família, em R$ 600,00. A proposta do governo Lula é a de que este benefício seja considerado fora da contabilizado dos gastos do teto, ou mesmo que talvez possa contar com um teto próprio.

Em realidade, não é primeira vez que o teto de gastos é furado, só nos últimos dois anos foi rompido pelo menos 5 vezes, com um rombo de quase R$ 800 bilhões, que deverá ser administrado pelo novo governo.

O Bolsa Família não é o único programa social em risco, os repasses para assistência social foram cortados em 70%, bem como as reservas para políticas públicas direcionadas a mulheres, esvaziadas em 99% [9] [10].

Ora, mesmo tendo em vista as dificuldades que o orçamento deve impor à máquina e à habilidade de negociar, é a história quem melhor lastreia o apreço lulista pela questão fiscal. Seus governos foram marcados pela queda da relação dívida – PIB (28,9% de 2003 – 2006), com superávits primários de 2,2% a.a. de 2003-2010.

Além disso, o acúmulo de reservas que ainda hoje servem de âncora à economia também foram conseguidas neste período [11]. Lula importou-se com o pagamento da dívida que o país havia contraído com o FMI e tornou o país seu credor.

Lula é herdeiro de um orçamento contingenciado como nunca visto, que deve fazer escolhas difíceis e que deve lidar com pesadas máculas que afligem os brasileiros, como a fome, o endividamento e o backlash de direitos conquistados com anos de luta.

Em um país ainda combalido dos efeitos da pandemia de coronavírus que, para além de haver vitimado quase 700 mil pessoas, ainda gerou desbalanços macroeconômicos titânicos, é de se esperar que, a fim de que a máquina possa girar e atender àqueles que mais necessitem, exceções devam ser consideradas.

Há urgências maiores do que atender às expectativas de lucros astronômicos dos senhores dos Mercados. O ronco da barriga vazia urge respostas, o resto é alarmismo e gritaria.

Referências

[1] https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/

[2] https://static.poder360.com.br/2022/09/endividamento-familias-dividas-cnc-5set2022.pdf

[3] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-apresenta-ao-gabinete-de-transicao-documentos-para-aprimorar-politicas-publicas-no-pais.htm

[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/11/16/orcamento-2023-ja-recebeu-r-234-3-bi-em-propostas-de-emendas

[5] https://iela.ufsc.br/noticia/gasto-com-divida-publica-quase-dobrou-de-2019-2021

[6] https://www1.siop.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=IAS%2FExecucao_Orcamentaria.qvw&host=QVS%40pqlk04&anonymous=true

[7] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2022/11/16/lula-e-pacheco-discutem-pec-deixar-bolsa-familia-fora-do-teto-por-4-anos.htm

[8] https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/17/com-pandemia-e-beneficios-em-ano-eleitoral-bolsonaro-furou-teto-em-quase-r-800-bilhoes.ghtml

[9] https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/gestao-bolsonaro-cortou-em-mais-de-70-repasses-para-assistencia-social/

[10] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/governo-bolsonaro-corta-verba-de-acoes-para-mulheres-em-ate-99-no-orcamento-de-2023.shtml

[11] COUTO, J.M.; PEREIRA, B.F. Superávit primário e déficit nominal: as contas do governo central brasileiro (1995-2012). A Economia em Revista, v. 23, n. 2, julho de 2015.

*Davi Spilleir – Mestre em Sustentabilidade, pesquisador de Economia Solidária pelo CIRIEC e pela ABPES

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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