Muito calor e pouca luz, por Antonio Machado

É meia verdade atribuir ao ex-tesoureiro do Santander Campos Neto, toda a culpa pela Selic obesa. Ela é gorda desde o nascimento, em 1986.

Muito calor e pouca luz

por Antonio Machado

Ataque aos juros altos com meias verdades dificulta a solução, que não é só cortar gasto público

As falas enfezadas do presidente Lula, os artigos de economistas e os comunicados insossos de entidades empresariais pré e pós cada sessão do Copom, o Comitê deliberativo da taxa Selic formado pelos nove diretores do Banco Central, têm algo comum seja contra ou a favor da decisão sobre os juros: todos eles contam meias verdades.

A diretoria do BC, isto é, o Copom, decidiu na quarta-feira parar a desengorda da Selic. Foram sete quedas desde agosto de 2023, quanto estava em 13,75%, até o patamar atual de 10,50%. O sinal é de que permanecerá assim até, pelo menos, a virada do ano.

Significa uma taxa real, tirando a inflação projetada no último boletim Focus para os próximos 12 meses (3,61%), de 6,6% – nível restritivo para ativar o crescimento movido a investimento e para desinflar o endividamento de famílias e empresas – tão alto que o programa Desenrola, de renegociação de dívida, foi como aperitivo.

Naturalmente, ninguém gostou da parada da Selic. Já não gostava há muitos anos, pois assim tem sido desde que a nossa geração se conhece por gente. E o que se fez e se faz para reverter esta situação esdrúxula, sabendo-se que num país com tudo por se fazer custo acessível do capital privado e público é condição essencial para um ciclo longo, que perpasse décadas, de prosperidade?

Para valer, pouco ou quase nada, estando aí a gênese da baciada de meias verdades sobre o imbróglio dos juros. É como se fosse um trauma de infância, que persegue o indivíduo por toda a sua vida.

É meia verdade, por exemplo, atribuir ao presidente da vez do BC, até o fim do ano o ex-tesoureiro do Santander Roberto Campos Neto, toda a culpa pela Selic obesa. Ela é gorda desde o nascimento, em 1986. Só por curto período, de agosto de 2020 a março de 2021, foi enxuta, de 2% ao ano, implicando sequelas como a rápida subida até 13,75% para tentar frear a disparada da inflação depois do recesso da pandemia da covid, que quebrou as cadeias de produção no mundo.

Buscar vilões por obstáculos que não se consegue ou se desconhece como remover é próprio da política movida a emoções, não da busca de soluções racionais e efetivas. Juro punitivo, carga tributária de 33% do PIB, a montanha de gastos públicos indefensáveis além de jamais avaliados, o emaranhado de desonerações chamadas de “gasto tributário”, são sintomas de um sistema arcaico e disfuncional.

Diretores não são fantoches

O voto do presidente do BC nas reuniões do Copom tem tanto valor quanto o de cada um dos outros oito diretores da autarquia, todos indicados pelo governante da hora e referendados pelo Senado, com mandato de quatro anos e demissíveis só em caso de falta grave.

Seria quase como um processo de impeachment no Senado e não pela canetada do presidente da República. Hoje, Lula já indicou quatro dos nove diretores e ano que vem terá maioria na diretoria do BC.

É certo que Campos Neto nunca escondeu sua afinidade com o então ministro Paulo Guedes e com Jair Bolsonaro. Não foi prudente ao aceitar ser homenageado pela Assembleia de São Paulo por indicação de um deputado radical, seguido de um jantar que lhe foi dado pelo governador Tarcísio de Freitas, aspirante a presidente em 2026.

O ponto não é esse. Que fosse um bolsonarista recluso e nem por isso a Selic seria ao gosto dos que lhe criticam. Achar isso é o mesmo que supor que os demais diretores, incluindo os de carreira do BC e os indicados por Lula, sejam fantoches. Não quer dizer que eles estejam certos, significa que esse é um debate muito malconduzido.

Algo vai mudar depois de Campos Neto? Não, se não cavoucarmos as causas do custo do dinheiro proibitivo. Mas, se mudar, como ocorreu no governo de Dilma Rousseff, o resultado já é conhecido.

Como baixar a bola do BC

O que pode ajudar a baixar a bola do BC é o governante entender o que lhe cabe exatamente e o que é próprio de uma agência autônoma, e a caminho de se tornar independente caso prospere no Congresso proposta em discussão no Senado de lhe dar alforria completa, com seu custeio vindo de uma taxa sobre a base monetária. Piro total!

A taxa Selic é regulada pelo BC, e só para isso tem autonomia, a partir da meta de inflação medida pelo IPCA, hoje de 3%. Quem fixa tal meta é o Conselho Monetário Nacional, composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e mais o presidente do BC. O governo, portanto, é quem forma o princípio da taxa. O BC busca alcança-la com uma série de exercícios econométricos e consultas ao mercado – uma metodologia que também poderia ser debatida no fórum do CMN.

Há outras formas de o governo abrir divergência, mesmo sem ferir a autonomia operacional do BC nem mudar a meta de inflação (quanto menor, maior o rigor monetário contracionista via juros). Políticas cambial e de crédito, por exemplo, são dadas pelo CMN.

Na Inglaterra, a pasta de finanças participa de reuniões do Copom local com direito de fala mas não de voto. Também não é ofensivo à ordem política dirigentes abertamente partidários. Nos EUA, todos os últimos chefes do Fed são afiliados ou ao Partido Republicano de Trump (caso do atual, Jerome Powell) ou ao Democrata de Biden.

O Fed, entre os bancos centrais, é o que mais influencia decisões dos demais devido à dominância do dólar no mundo. Então, não custa entender por que se discute lá a criação de um índice que capte as altas de preços derivadas do poder de mercado de empresas, com a ideia de que tais ocorrências não são da alçada de juros.

Conversa para mentes abertas

Enfim, juro baixo também é meta permanente e não só a inflação. O nexo dessas metas com a dívida nacional está no custo do estoque, função do juro cuja referência parte da Selic, e em sua dinâmica, função do déficit primário (que abate o custo da dívida, portanto, é a parcela do orçamento que excede a arrecadação tributária).

Só que a relação entre juro, inflação e dívida como proporção do PIB tem uma sutileza. Por ser grande, ela atrai o grosso do caixa líquido de bancos e empresas, apropriando-se, num caso, de fundos destinados ao crédito, e, no outro, de gastos com investimentos. Dá-se a estagnação que nos faz crescer a reboque do mundo.

Esse é o trauma do atraso. A população cresceu 2,8% ao ano entre 1950 e 1980, a economia, 7% anual, e a renda per capita, 4,2%. Tal desempenho nunca mais aconteceu nem por períodos curtos. De 1981 adiante, a economia cresce ao ritmo de 2% ao ano, enquanto o PIB mundial quadruplicou desde então ao ritmo anual de 3,5%. Isso é o que temos de passar a limpo. A febre, ou seja, o juro, é sintoma.

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5 Comentários

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  1. O Roberto Campos,é apenas mais um dos sacerdotes-economistas a serviço do deus mercado, com o agravante de ser o atual presidente do BACEN. Não se pode negar o mérito do plano real no controle da inflação, mas também não podemos esquecer que o controle do BACEN pelo mercado finaceiro, veio junto com ele ou até por causa dele. Uma vez de posse da chave do cofre, a onda especulativa por que passa o Brasil, objetiva enfraquer o goveno Lula e obrigá-lo a indicar um pistoleiro da inteira confiança do deus mercado.

  2. Teoricamente a coceira acaba em dezembro deste ano.

    Mas nos Lula I e II tinha o mesmo problema e quem reclamava era o vice.

    Seu Geraldo vai ter trabalho.

    Fiz um gráfico outro dia quase por acidente , IPCA acumulado 12 meses, a curva mostrava como a inflação recuou, trabalho do BC, não podemos esquecer que a inflação é pior para os mais pobres.

      1. Não explico.

        A inflação recuou.

        Se teve outras consequencias, e deve ter tido, são outros 500.

        Mas em janeiro.25 Guido Mantega toca o circo, veremos.

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