PL do governo que “incentiva” indústria a trocar máquinas é uma excrescência, por Álvaro Nascimento

Lindas palavras que escondem mais uma cavalar transferência de renda dos cofres públicos para a nossa elite econômica

Agência Brasil

PL do governo federal que “incentiva” indústria a trocar máquinas é uma excrescência

por Álvaro Nascimento

O termo “excrescência” traduz algo extremamente negativo, uma ação a ser rejeitada, coisa inaceitável, uma exorbitância. E é exatamente este o termo que deve ser aplicado ao Projeto de Lei 2/2024 enviado pelo Governo Federal ao Congresso (já aprovado pelo Senado e seguiu para sanção presidencial) que “incentiva” a troca de máquinas com vistas a “modernizar o parque industrial brasileiro”. Lindas palavras que escondem mais uma cavalar transferência de renda dos cofres públicos para a nossa elite econômica, seja a industrial, a financeira ou a do agronegócio.

O programa permite a empresa deduzir do que deveria pagar de Imposto de Renda (IRPJ) e da Contribuição sobre Lucro Líquido (CSLL) o total do valor investido em máquinas e equipamentos, adquiridos até 31 de dezembro de 2025, para o desenvolvimento de atividades a serem definidas por decreto. Sequer uma lista dos setores a serem beneficiados com a excrescência está definida.

Para dourar a pílula o projeto estipula que a transferência direta de dinheiro público, via mais esta isenção, deverá ter como limite 50% do valor dos equipamentos no ano em que ele for instalado e 50% no ano seguinte. Quaisquer novos equipamentos terão seus custos integralmente ressarcidos com o nosso dinheiro.

Tem mais. O projeto diz que o preço a ser pago por nós todos fica limitado a R$ 3,4 bilhões em dois anos, mas o Poder Executivo pode ampliar este limite, também por decreto. Imaginem isto sendo negociado fora do Congresso e de olhares minimamente públicos.

Algumas considerações:

  1. A sociedade pagará duas vezes pelas mesmas novas máquinas e equipamentos. Afinal, um estagiário de administração recém formado sabe que qualquer empresário insere nos preços de seus produtos a chamada obsolescência de materiais, um conceito contábil que considera o desgaste natural do bem. Até um dono de padaria que adquira um novo forno coloca no preço do seu pão o ressarcimento daquele gasto. Se não o fizer, pode falir, dependendo do investimento feito. Cada máquina, equipamento e até programas de informática tem um valor e, óbvio, ele é considerado nas planilhas de custo de cada empresa, já sendo devidamente ressarcido por quem consome os produtos daquela linha de produção. Agora pagaremos, todos e de novo, o mesmo valor, o que fará com que as empresas sejam ressarcidas duas vezes.
  2. O que está sendo exigido das empresas que se beneficiarão da excrescência? Absolutamente nada. Sequer da manutenção dos empregos o Projeto de Lei trata. Resultado: um empresário pode, com o nosso dinheiro, comprar uma máquina-robô moderna que venha a substituir um empregado ou até mais de um. Ninguém pensou nessa possibilidade? Não caberia um parágrafo ou alínea no texto assegurando que nosso dinheiro não poderá servir para promover desemprego?
  3. Como uma boa excrescência não tem limite, tem mais. Os constituintes do campo progressista de 1988 criaram a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL) já prevendo a acelerada robotização e informatização das linhas de produção na indústria e serviços (como o bancário), o que provocaria uma queda vertiginosa (como ocorreu de fato) nas contribuições à Previdência Social que tinham como base quase exclusiva a folha de pagamentos. Ao taxar o lucro líquido via CSLL, os constituintes determinaram que mesmo empresas ultra robotizadas e com pouco pessoal contribuiriam com base em seu lucro. Uma ideia genial. Quando se isenta da CSLL contribuições que iriam diretamente para o Fundo de Seguridade Social (que sustenta Previdência, Saúde e Assistência Social) está se metendo mais uma faca no peito do financiamento deste sistema, que já sofre com a tunga de 30% de toda a sua arrecadação pela famigerada DRU (Desvinculação de Receitas da União), parida ainda em 1994 pela trinca Malan – Serra – FHC (então sob a alcunha de Fundo Social de Emergência) com a justificativa de “estabilizar o Plano Real”. Essa tunga é mantida até hoje, lá se vão 30 anos. Vários estudos comprovam que estes 30% que deveriam ir para a Seguridade Social são injetados diretamente no pagamento da dívida pública com os bancos.
  4. Para dar ares de seriedade ao Projeto de Lei recém aprovado, o site “PT no Senado” comemora a aprovação e sustenta a iniciativa do governo informando, textualmente, que ela “é o resultado de um recente estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que aponta para um cenário de atraso tecnológico do parque industrial brasileiro”. Traduzindo: o governo federal decidiu presentear a indústria com uma excrescência, transferindo bilhões de reais dos cofres da Previdência, com base em um estudo feito … pela própria indústria. Na minha terra isso já nem é considerado conflito de interesse, pois se assemelha mais a algo como “legislar em causa própria”.
  5. A excrescência não é danosa apenas aos cofres públicos, principalmente o da Previdência, já que a CSLL é um imposto “carimbado” como pertencente à Seguridade Social. Os tentáculos nocivos da iniciativa impactarão até a política ambiental. O site “Mundo do Plástico”, porta-voz da ONG “Plástico Brasil”, que reúne associações e empresas da grande indústria fabricante de um dos produtos que mais gravemente poluem o ambiente, comemorou o projeto rasgando elogios ao governo federal. O site diz que “o programa de incentivo contará com R$ 3,4 bilhões entre 2024 e 2025, mas já há previsão de uma segunda fase que será agraciada com mais dinheiro”. Tudo indica, portanto, que a sede para abocanhar mais recursos da Previdência não terá fim, a exemplo das demais isenções já existentes.
  6. Claro que o mercado financeiro não poderia deixar de se posicionar favoravelmente à iniciativa. E no próximo parágrafo veremos o porquê. O Bradesco BBI (Banco de Investimento da holding Bradesco) divulgou um comunicado com a previsão de que a excrescência pode resultar em investimento adicional de R$ 20 bilhões. De onde o Bradesco tirou esta cifra não ficou explicitado no comunicado.
  7. Mal o forno que pariu a excrescência esfriou, uma das principais porta-vozes do conservadorismo brasileiro, a revista Veja, publica, na sua edição de 27 de maio de 2024, matéria intitulada “Números da Previdência pioram e indicam urgência de nova reforma”, com o subtítulo “Se as regras não forem alteradas, as contas públicas inevitavelmente entrarão em colapso”. Na foto que ilustra a matéria, um Fernando Haddad com a mão no rosto demonstrando enorme preocupação é sustentada pela legenda: “Haddad: ministro compartilhou texto que defende a revisão urgente das despesas com aposentadorias”. E qual mesmo o setor da economia que mais se favoreceria com outra leva de perdas de direitos da Previdência pública, capaz de fazer migrar novos clientes para a previdência privada? Os mesmos bancos – como o Bradesco BBI – que acabam de aplaudir a excrescência que rouba recursos dos cofres que sustentam o regime previdenciário público que estaria, segundo a Veja, entrando “em colapso”.
  8. É sempre bom dar nome aos bois. O grande patrocinador da excrescência é o Vice-Presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin. Ao defender o projeto, sua excelência cometeu um verdadeiro salto triplo carpado digno da nossa espetacular ginasta Daiane dos Santos. Ele disse que não se pode chamar de isenção tributária o que foi patrocinado por ele e sua equipe: O governo deixa de arrecadar agora, mas recupera lá na frente. É medida de incentivo à modernização de nossas indústrias, de aumento da nossa competitividade. O que muda é o fluxo de caixa”, afirmou.

Entendi, senhor vice-presidente. O senhor está preocupadíssimo com o fluxo de caixa, mas não é com o fluxo de caixa da Previdência, mas exclusivamente com o fluxo de caixa das empresas que o senhor representa. Geraldo Alckmin, você nunca me enganou.

Álvaro Nascimento é jornalista (UFF 1979), Mestre (2003) e Doutor (2007) em Política, Planejamento e Administração em Saúde pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. Tecnologista aposentado da Fundação Oswaldo Cruz. Escritor.

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2 Comentários

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  1. Parabéns pelo artigo Álvaro. Com essas e outras decisões sobre o uso dos recursos da Previdência social estamos eternizando a cristalização das mesmas e já bem conhecidas iniquidades.

  2. Adoro a clareza com que o autor explica detalhadamente a excrescência que tira de onde não se deveria tirar recursos, e se aprofunda a ja absurda desigualdade deste país.

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