Provocações ‘antieconômicas’ de Nathan Caixeta

Com apenas 23 anos, escritor e mestrando da Unicamp lança livro em dupla com Luiz Gonzaga Belluzzo com a proposta de denunciar a falta de pensamento crítico nos meios econômicos

Foto: Nara Quental

do Brasil Debate

Por Paula Quental/ Nara Quental (fotos)

A economia anda perdendo a capacidade de entender o mundo e de encontrar soluções para problemas fundamentais, como a fome. Ou, pelo menos, um segmento dela – justamente o hegemônico –, atolado que está em planilhas e cálculos matemáticos, seguindo cartilhas de fé na forma de tripés macroeconômicos e superávits fiscais… Em resumo, esta é a crítica que faz o economista Nathan Caixeta, que defende uma “antieconomia” para chamar atenção para o desastre que significa abandonar o pensamento crítico e se manter escravo de uma “razão instrumental”, que mais favorece a “dominação político-financeira do capital”.

Graduado pela Facamp, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da Facamp (NEC/Facamp), Caixeta deve lançar, ainda este ano, em coautoria com o seu mestre Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos mais importantes economistas brasileiros, o livro “Crônicas Antieconômicas”.

A publicação, pela Editora Contracorrente, é um conjunto de crônicas, artigos e entrevistas dos dois autores, que têm em comum a opção de abordar a economia com viés crítico, utilizando referências como a música e a literatura. “Uma ferramenta muito mais interessante do que as relações matemáticas”, brinca Caixeta.

Nesta entrevista, ele fala sobre o livro, o curso de economia na Unicamp, Marx, Keynes, economistas ortodoxos, Plano Real, programas de transferência de renda, sociedade pós-capitalista, entre outros temas. Confira!

BD – Conte um pouco da sua história. A escolha por economia, o que te motivou? O fotógrafo Sebastião Salgado, por exemplo, diz que foi estudar economia para entender como o mundo funciona…

Sou de Campinas, fiz graduação na Facamp [Faculdades de Campinas]. Logo de início gostei pra caramba, principalmente a parte focada em história, filosofia, tem essa base de ciências humanas. Gostei e fui me aprofundando. Joan Robinson, aluna do [John Maynard] Keynes, dizia que estudava economia todos os dias para não ser enganada pelos economistas. Essa é uma motivação que eu fui pegar depois. Mas eu sempre fui curioso em entender as coisas se relacionando em múltiplas faces. Gosto muito de fazer poesia… A Facamp, o que me deixou muito impressionado de estar estudando ali, com aquelas ideias, aqueles fundadores e todo o currículo original da Unicamp, foi exatamente isso, poder integrar essa parte universalista com o conhecimento teórico. Então, acredito que tenha uma formação muito sólida em questões que abrangem vários campos. Pra mim, que gosto de escrever, é um deleite.

Toda a teoria econômica ortodoxa depois serviu para criar a teoria das finanças, que acabou formando esse bando de primatas com calculadora que trabalha no mercado financeiro.”

BD – Chegou a pensar em cursar uma faculdade como Letras?

Já pensei. A primeira opção foi fazer faculdade de Filosofia, quando mais novo, quando eu encontrei o [Friedrich] Nietzsche na biblioteca da escola. Falei: Caramba, que legal, né? (risos). Comecei a ler essas coisas, de adolescente mesmo gostava de ler poesia e literatura. Quando os professores começaram a ver que eu gostava de escrever, começaram a me dar indicações, livros, mas eu comecei a pegar gosto, de forma natural.

BD – E o mestrado na Unicamp? Foi uma escolha consciente, pela escola econômica a que se filia a Unicamp, ou porque já estava na cidade?

Tinha muito receio de prestar a prova da Anpec [Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia], tinha pavor de prova objetiva e a prova do mestrado da Unicamp era fazer o projeto e a prova escrita. Achava que tinha mais chance, confio muito mais em escrever um projeto e fazer uma prova escrita. Acho, inclusive, que é uma forma melhor de avaliar. Eu tinha professores que foram da Unicamp, tinha acesso a conversar com eles, e tudo mais, então teve a história de estar ali, mas teve também de saber que havia ali na Unicamp o Cesit [Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho], que foi a área de concentração que eu escolhi, e que continuaria a ter uma formação sólida e espaço para fazer investigações e publicar.

BD – Como foi sua aproximação do professor Luiz Gonzaga Belluzzo?

O Belluzzo…Sou um pouco suspeito de falar, ele é uma pessoa tão gentil, extremamente conceituado, respeitado, e ao mesmo tempo tão afável com todos. Como comecei minha graduação cedo, com 17 anos, fui aluno dele no quarto ano, a última turma que ele deu aula, de economia política. Pra nós ali foi uma coisa maravilhosa. A aproximação foi mais ou menos assim: Depois, quando eu estava no mestrado, tive uma disciplina em que a gente estava estudando a tese dele com mais afinco, e eu tive a ideia de fazer uma biografia da tese a partir da experiência dele.

BD – Qual o tema da tese?

A tese [de doutoramento no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp]Valor e Capitalismo. Ele vai falar da teoria de valor, junta o Marx e o Keynes. Ele faz algo muito difícil, que no Brasil era novo, de juntar o Marx e o Keynes e combater uma teoria do valor que estava em voga na época, de achar que o valor era o pressuposto do dinheiro, por exemplo, o pressuposto da circulação e do dinheiro – uma teoria de um marxismo ortodoxo de muito pouca qualidade que visitou o Brasil e queria ficar… E o Belluzzo e outros tantos que a gente teve naquele tempo, mas o Belluzzo especialmente, por ter conseguido uma junção entre os dois economistas, conseguiu fazer uma interpretação, discutir a teoria do valor por uma visão estritamente marxiana.

Então ele pega os marxistas, pega primeiro os clássicos, e depois os marxistas e diz que, no fundo, os marxistas são os novos clássicos Ricardianos. A Joan Robinson, quando ela foi à Unicamp [em 1979], Belluzzo me contou isso, disse que aqui era o único lugar onde se ensinava Keynes de verdade, porque ela assistiu a um seminário sobre Keynes. E foi na época em que o keynesianismo estava assumindo suas formas mais esdrúxulas. No Brasil, numa universidade do interior de São Paulo, ela achou keynesianos de verdade, keynesianos marxistas. Uma coisa muito diferente do que se tinha lá fora.

O método econômico está impregnado do método matemático. E o que supõe a matemática? Não ter contradição. Mas a realidade é extremamente contraditória.”

BD – E como foi fazer esse trabalho? Você entrevistou o Belluzzo?

A ideia foi fazer uma biografia, como ele chegou à tese, a partir do debate à época. Aí e a gente teve a ideia de entrevistar, eu e a minha colega, a Sara Patrocínio, já doutoranda da Unicamp e também da UFES, o Belluzzo, o José Carlos Braga, com quem tenho a honra imensa de trocar mensagens, o professor David Antunes, meu orientador na FACAMP, e o Gabriel Galípolo, para fazer esse mapa. A minha relação com ele foi essa. Escrevemos esse artigo, mas não chegamos a publicar, foi só para a disciplina. Foi uma forma de homenagear uma obra seminal que fundou o pensamento econômico da Unicamp, junto ao Capitalismo tardio [Capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira], de João Manuel Cardoso de Mello, a Raízes da concentração industrial em São Paulo, do falecido Wilson Cano, à tese da Maria da Conceição Tavares, à tese do Braga, Temporalidade da Riqueza [Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo]. Eu achei essa abordagem biográfica algo muito interessante. Recentemente o José Paulo Netto fez a do Marx e achei fantástico. Uma coisa brilhante, que é melhor do que todas as biografias do Marx que eu já tinha consultado. Além de uma erudição impressionante, ele faz o que também o biógrafo do Keynes, o Robert Skidelsky fez, que é tentar tirar a ideia da história de vida do pensador.

BD – O que faz todo sentido, porque o pensador é um sujeito histórico, dialoga com as grandes questões do seu tempo…

O pensador está contido no seu tempo. Ao mesmo tempo, ele ultrapassa o seu tempo muitas vezes. O problema é que a grande maioria acaba ficando no século passado, às vezes no milênio passado (risos). Mas a grande questão que vejo aí nesse método de observação, eu li uma vez um livro sobre a vida intelectual de um padre neotomista, Antonin Sertllanges, em que ele dizia uma coisa muito interessante: que a vida intelectual é quase que um apostolado, uma coisa de ascese. E o Max Weber tinha uma ideia parecida a esse respeito. Ele dizia que a diferença entre os intelectuais das ciências humanas e os das ciências físicas é que estes sabem que vão escrever uma coisa aqui que vai ser provada depois ou impugnada. E os das ciências humanas sabem que o que vão escrever valerá por um tempo. O que ele quer dizer? Que as perguntas são mais valiosas que as respostas, elas são eternas. Adquirem várias interpretações. Então esse método achei muito interessante, entrevistar esse pessoal todo foi um divertimento, dali a pouco falando sobre futebol, samba, sobre como era a Unicamp naquele tempo [anos 1980]. Depois até pensei em fazer minha tese de doutorado com base nessa ideia: pegar essa feição do pensamento marxista keynesiano produzido no Instituto de Economia da Unicamp e mostrar como surgiu das discussões e experiências de aula, de debate, ali dentro.

BD – A economia da Unicamp tem sido muito “demonizada” nesses anos de hegemonia do pensamento ortodoxo, dos economistas ligados ao mercado financeiro. Isso pode estar mudando? Pode estar havendo mais espaço para recuperar, por exemplo, Keynes?

O avô do atual presidente do Banco Central, o Roberto Campos, que era um sujeito controverso, muito inteligente, cunhou uma frase que ficou famosa na época: “ou o Brasil acaba com os economistas da Unicamp ou os economistas da Unicamp acabam com o Brasil”. Foi na época do Plano Cruzado. Essa resistência ao pensamento da Unicamp já vem de antes. O Carlos Lessa, em uma participação em um documentário contou que a elite financeira recorreu à Unicamp quando começaram os problemas de dívida externa [nos anos 1980], para saber o que estava acontecendo. Os professores se assustaram: o “pessoal do mercado” está vindo aqui perguntar… A aproximação do Lula, do PT, com esse pensamento se deu de uma forma um pouco orgânica. Porque queria justamente um pensamento que destoasse daquele que se fixou no PMDB depois da morte do doutor Ulysses [Guimarães], que era um grande admirador do plano econômico que havia por ali pelos corredores da Unicamp. Tanto que o Belluzzo, o João Manuel, o Luciano Coutinho foram os grandes pais do programa “Esperança e Mudança” [do PMDB], que foi a base da Constituição depois. De alguma forma, a Unicamp foi mãe da Constituição de 1988.

BD – E depois veio a abertura da economia, o Plano Real, o neoliberalismo…

Os meninos do Real achando que tinham inventado a roda porque pegaram uma ideia do [Hjalmar] Schacht, da Alemanha nazista, e renovaram. Eles acharam que acabaram com a inflação, mas, no fim das contas, o que eles fizeram foi meter uma gambiarra que depois tiveram que ajustar com todas as medidas fiscais draconianas que duram até hoje e foram aprofundadas recentemente. Essa resistência ao pensamento da Unicamp se deve muito a uma resistência à interpretação da economia como uma área de conhecimento moral e também o método de investigação econômico como método histórico, dialético- histórico.

BD – E a economia como economia política…

Exatamente, mas, mais que isso, como a crítica da economia política. Então a resistência deve-se a isso. O problema é esse: como se entende a economia no mainstream? Como uma ciência tal como a matemática, a física. A inspiração do positivismo kantiano, do Descartes, travada ali. O problema é que o Newton e toda a galera que surgiu depois, o próprio Kant, entendiam as limitações daquilo que iriam se tornar as ciências duras. Os cientistas humanos também entendiam, mas os economistas nunca entenderam isso…

BD – Ficaram no meio do caminho…

O Adam Smith ainda tinha a vantagem de que ele era um filósofo moral, e que ele tinha uma tradição do liberalismo jusnaturalista que não o impedia de ver a história. Embora o Marx tenha dado umas boas bordoadas nele dizendo que aquela história que ele estava contando sobre capitalismo parecia uma espécie de teologia. Mas o problema é: o que os economistas fizeram? Eles não construíram uma forma de entender o mundo, eles construíram uma forma de justificação da desigualdade do capitalismo. Depois da Primeira Guerra, depois da crise de 1929, quando o que o Karl Polanyi chamou de A Grande Transformação estava ali sendo chocado, os economistas liberais mais atentos, o pessoal d’ O Colóquio Walter Lippmann e a gênese do neoliberalismo, um livro muito interessante que conta essa história, sobre a origem do neoliberalismo – ali estavam o Walter Lippmann, o [Friedrich] Hayek, depois o Milton Friedman – qual era a preocupação fundamental? O que esses caras erraram que agora a gente está contestando? Eles tiveram que reembalar aquele negócio e em vez de falarem contra o Estado, transformaram o Estado em um uma espécie de guichê regulatório e de estímulo à concorrência. Essa resistência nasce desse problema de método, de os economistas quererem ser uma espécie de físicos mal qualificados, atrás de verdades únicas e fórmulas universais.

O problema é que quando não sai do jeito que eles querem, ao contrário do Zeca Pagodinho, eles se desesperam muito, eles ficam sem explicação. A Rainha da Inglaterra perguntou, quando entrevistada na época da crise de 2008, como os economistas não haviam previsto a crise. O Robert Lucas, que é o pai da teoria das expectativas racionais, respondeu que os economistas não tinham previsto porque não estava na teoria. Porque o método utilizado pelos economistas é o método no qual está implícita sua falha. Esse é o problema. Por quê? Eles olham o seguinte: o fato econômico é tal como a observação das estrelas, o fato está contido no momento, o momento se repete, então a gente constrói a partir de uma matemática de quinta categoria, como o Belluzzo costuma brincar, uma série de postulados, postulações, que sobreviveram em Davis Ricardo, Adam Smith, até hoje.

BD – E a partir de hoje?

Aí nós temos que pensar. A questão é que ficou muito evidente principalmente a partir dos marginalistas, do pessoal pós Ricardo e pós Marx, que isso [o método dos economistas]aqui tem sérios problemas, filosóficos e teóricos, em termos práticos. Sabia-se que era preciso afirmar isso como uma forma, digamos, de poder. Foi obviamente muito bem absorvido por quem estava ganhando dinheiro com isso. Tanto que boa parte dos esforços de pensamento liberal das universidades americanas, alemãs mais tarde, foram financiados pelas fundações Rothschild, Ford, Rockefeller. Toda a teoria econômica ortodoxa depois serviu para criar a teoria das finanças, que acabou formando esse bando de primatas com calculadora que trabalha no mercado financeiro. Isso não é economista.

A minha concepção de economista não é o sujeito que fica necessariamente preocupado com grandes questões sociais, mas é o sujeito que vê a questão social antes mesmo de formar opiniões que adentram a esfera política. Então é partir do social para o político, do político para o econômico. Essa ideia que está implícita, por exemplo, no que o pessoal da Unicamp pensou para o programa Esperança e Mudança. E é o que está na Constituição. Partir do social para o político e depois para o econômico.

O que eles fizeram depois? Ó, a gente precisa ajeitar a inflação e também as contas externas que estão indo pro espaço, nos anos 1990. Olha, vamos mudar a lógica, vamos subordinar o social ao político e o político ao econômico. Então você vê que essa dimensão do poder é muito mais forte do que a dimensão das ideias. É por isso que os economistas veem a si mesmos como sancionadores dessa verdade quase santificada e que acabam produzindo desastres com isso. Tanto os economistas que vão para o governo, como os economistas que escrevem nas universidades, como os economistas que vão para o mercado, e acabam produzindo uns verdadeiros monstrengos.

Os economistas veem a si mesmos como sancionadores dessa verdade quase santificada e que acabam produzindo desastres com isso.”

Estava lendo esses dias em Mentes Brilhantes, Rombos Bilionários [do jornalista Scott Patterson]como o pessoal formado nessa tradição das finanças construiu os mercados financeiros que deram na crise depois. Como essa ideia da economia como ciência, da economia como verdade, acabou entrando tão fundo neles que eles acabaram se tornando portadores realmente de uma verdade que se revelava apenas numa coisa: no preço que eles estavam vendo na telinha do computador. Eles ficavam com os egos inflados quando acertavam quando subia e quando descia o preço de uma ação, do PIB, da inflação. Algo semelhante acontece com um acadêmico que acha muito importante a tese dele porque provou pela enésima vez que existe uma relação entre x e y.

Para as demais ciências sociais, existe aquela percepção que falei de que vai vir outro que vai melhorar o que eu estou fazendo, mas os economistas não… Na economia, por mais que as teorias mudem ao longo do tempo, elas sempre reembalam postulados que o Belluzzo e o Galípolo expõem em A escassez na abundância capitalista, com impressionante erudição. Li esse livro na prévia ainda, fiquei encantado com a forma como eles espremem a teoria econômica desde a paternidade smithiana até os modelos modernos de equilíbrio geral, para mostrar que em tudo isso existem quatro pressupostos: o naturalismo, o racionalismo, a individualidade, o equilíbrio. Um sustenta o outro. Se você quebra um deles, já era. No fundo, os três primeiros já são quebrados. Aí escondem isso e dizem ó: está tudo em equilíbrio. E o que atrapalha? O que atrapalha é o governo que gasta demais, é se preocupar com os pobres, é tentar reduzir o desemprego, é tentar reduzir a fome que vai gerar inflação…É toda a discussão que está aí agora.

BD – Há uma discussão de dois projetos econômicos bem claros, no país. Eu diria que são visões de mundo opostas…

Vou citar algumas coisas que me chamaram muita atenção no debate sistêmico. O nosso amigo formado aqui [na USP], o Samuel Pessôa, ficou impressionado ao descobrir, depois de 200 anos de capitalismo, que existe distribuição de renda antes da tributação. Ele achou, como a grande maioria acha, que só se distribui renda reduzindo imposto. Outro, o Gustavo Franco, esses dias ficou alardeando que a “nova matriz macroeconômica” está vindo aí com o Lula, que o Banco Central deve subir mais ainda a taxa de juros, senão não vai aguentar… Aí você olha para os dados concretos. Esses camaradas estão tão aferroados a essas concepções que eles veem um único remédio que vai resolver tudo. Você tem uma escolha entre inflação e desemprego, criada por certa estabilidade natural da taxa de juros. A ideia do naturalismo de novo, teológica da coisa, e também científica, que existe uma ciência tal qual a física, a biologia. O problema é que essa relação que se tenta estabelecer não é sequer um fato, é uma aleatoriedade estatística, que é tentada n vezes, até se conseguir estabelecer certa correlação.

Só que quando não dá certo é porque o governo pressionou o BC para subir a taxa de juros, porque estava sendo clientelista, porque estava querendo ajudar os pobres, reduzir o desemprego, aumentar salário. É o que eles reclamaram da Dilma, eles reclamaram do Lula quando ele começou a reajustar o salário mínimo. O método econômico está impregnado do método matemático. E o que supõe a matemática? Não ter contradição. Mas a realidade é extremamente contraditória. O desemprego é o que, fundamentalmente? Falta de investimento. É uma dificuldade na distribuição da riqueza da sociedade. Porque um tem capacidade de investir e outro só tem como trabalhar. E o que investe determina a renda do que trabalha…

BD – Fale um pouco sobre sua dissertação com foco nos programas de transferência de renda. Como escolheu esse tema? Quais são os principais pontos abordados?

Eu queria fazer no começo uma dissertação sobre a renda básica universal. Eu achava muito interessante a ideia, acho que é um programa que vai crescer muito… Só que tem muitas complicações, os teóricos dão uma viajada… O [Eduardo] Suplicy ser mais utópico, eu entendo, é um político. Fala disso há muito tempo, desde antes dos anos 1990. Eu fico preocupado quando os acadêmicos vêm com aplicações completamente desmesuradas dessa ideia. Um dos maiores debatedores disso, [Philippe] Van Parijs, chega a falar em rota do capitalismo para o comunismo. Acho que é forçar a mão. Para se transformar isso em política é um esforço global e nacional muito forte que tem que romper com a atual forma de transferência de renda que surgiu por influência do neoliberalismo, que são as políticas localizadas, focalizadas. É uma coisa muito óbvia, eu diria, que isso é o futuro. Porque você tem um relaxamento, um descasamento entre a renda do trabalho, que as pessoas conseguem ao trabalhar, e a renda geral da sociedade. Primeiro, porque as pessoas estão ficando sem trabalho, e, segundo, a renda está concentrada com quem ganha dinheiro no setor financeiro. Então esse descasamento é difícil, tem que haver uma forma de distribuição de renda que seja diretamente pelo Estado, não apenas pelo sistema de serviço público e não apenas pela tributação. Tem que ter políticas de renda mesmo, não é só pobre, é pra todo mundo.

BD – Para todo mundo até porque barateia a própria engrenagem do programa, que se torna mais complexo, burocratizado e ineficiente quando há muitos filtros e triagens…

Exatamente. Durante a pandemia teve o auxílio emergencial, que foi um protótipo de renda básica forçado pelo setor progressista ao [presidente Jair]Bolsonaro, e como ele estava liberado do teto de gastos, era o orçamento de guerra, ele foi lá e fez. Muito bem. O que o auxílio provou? No Brasil, a questão do desemprego e da fome não é uma questão só de número. Quando o auxílio emergencial estava em vigor, a taxa de rendimentos do trabalho mais transferência de renda subiu absurdamente. As pessoas foram acalentadas da situação de fome e ainda conseguiram consumir alguma coisa.

BD – Seria a prova de que é acertada a proposta do PT de que “o pobre é a solução, não é o problema” e que precisa ser incluído no orçamento?

No caso do Lula, o que me preocupa é o quanto disso vai ficar no discurso eleitoral e o quanto disso vai ser feito. A atitude dele de dialogar com o mercado tem sido muito vacilante, do meu ponto de vista. Porque ele dá acenos, indicações, não vou mexer nisso, naquilo, estou preocupado com isso, com aquilo. Porém, falta ele olhar pra frente. As políticas que ele fez lá atrás, de política econômica e, principalmente, as voltadas para o social, foram excelentes, foram históricas.

BD – Esse é o foco da sua dissertação?

Exatamente. [O Programa] Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, as políticas de inclusão social, a questão do crédito para consumo – isso foi essencial para colocar o pobre para consumir. Você não eliminou a condição de pobreza. Essa é a grande questão. Você mexeu na distribuição de renda, de uma forma, digamos, leve, porém, dado o problema da pobreza no Brasil, se você faz um programa como o Bolsa Família, focalizado, ele acaba sendo universal, porque a pobreza é muito grande! Essa é a grande questão, e esse foi o grande mérito do Lula. Porém, qual Lula vai ser? O mesmo que permitiu a concentração de riqueza? Qual Lula vai estar aí? Você pode fazer um modelo de crescimento baseado nisso aí.

Porém, se não combater a concentração de riqueza, isso vai ser importante, mas vai ser limitado. O fundamental, e isso vem de antes, é recuperar a indústria, o emprego industrial. O que aconteceu no período Lula? O pessoal começou a consumir, a economia começou a crescer e aí a oferta de empregos no setor de serviços aumentou. Quem perdeu emprego porque a empresa virou importadora, já que ficou mais barato importar, foi prestar serviços, em qualquer área. O trabalhador que ganha o Bolsa Família, ao contrário daquele que recebe mais de cinco salários mínimos, gasta totalmente a sua renda, o que reverbera, se multiplica pela economia como um todo. Porque tirou pessoas da pobreza mesmo.

BD – A nova realidade do mundo, com a tendência de redução dos empregos, vai facilitar a abertura para essas ideias fora dos paradigmas da ortodoxia?

Ah, sim… Voltando à economia como método de justificação, científica, é muito a ideia do seguinte: se eu tenho, e você não tem, é porque eu mereço e não porque eu tirei de você. Se eu sou o capitalista que ganha 1000 e você o trabalhador que ganha 100, por que cada um não ganha 500? Tem alguma coisa aí. Eu mereço mais do que você ou existe uma relação de poder, de exploração? Falar em exploração está meio proibido, até nos meios marxistas. Esqueceu-se um pouco desse termo. Quando o pessoal foi buscar mais-valia até debaixo da cama, começou a ver que esse negócio estava desaparecendo, e que o Marx tinha razão ao falar que o trabalho virava uma base miserável de valorização, que o que fundamentava o sistema capitalista era o dinheiro. Começaram a se assustar: onde está a exploração? Ela é ocultada ao trabalhador pelo o que Marx chamava de fetiche da mercadoria, pela existência do dinheiro. É o cara ter que trabalhar para comer, é o cara despossuído de sua propriedade ter de trabalhar para comer.

BD – Você se considera marxista?

Eu tenho as minhas raízes que são um pé no Keynes e outro no Marx. Mas a minha grande raiz sociológica e filosófica é Hegel, o filósofo a quem o Marx deve muito, o Nietzsche e o Freud também. São os grandes filósofos que pensaram a modernidade. Daí eu peguei essa veia de entender as coisas através da crítica. Por isso que a ideia da antieconomia é provocativa, mas ao mesmo tempo é uma forma muito legal de se pensar, de repor a crítica à economia política como pressuposto.

BD – Você é um antieconomista, é isso?

Sou mais um provocador. Porque é o seguinte, olho os economistas e penso: não tenho talento pra isso, tenho talento pra provocar. Claro que tenho essa herança marxista, mas sem ser dogmático.

A ideia da antieconomia é provocativa, mas ao mesmo tempo é uma forma muito legal de se pensar, de repor a crítica à economia política como pressuposto.”

BD – Me conta como vai ser o livro…

Esse livro surgiu das nossas conversas, das nossas brincadeiras, trocadilhos. A gente tem a mesma ideia de provocação mesmo, é uma coleção de crônicas, vários temas que abordam a economia a partir do aspecto crítico, e colocada aí a questão da cultura, da música. Interessante utilizar essas dimensões para poder explicar a economia, e é uma ferramenta de explicação muito mais interessante do que as relações matemáticas…

BD – O espírito do livro é a antieconomia?

Exatamente, o livro se chama Crônicas Antieconômicas, vai sair pela Editora Contracorrente. A gente está terminando, mas editar um livro com o Belluzzo é quase que uma autoconfissão de que você não leu nada na vida. É uma forma de aprendizado muito grande, ele orienta as coisas que estão ali. O que às vezes eu não entendo, quero entender melhor, ô professor, me explica isso daqui, tudo mais. Ter um interlocutor desse nível, é claro, é um desafio muito maior, você sempre está pensando, escrevendo, debatendo os assuntos.

BD – A ideia do livro foi sua?

A ideia do livro foi dele, de juntar as coisas. Ele comprou a loucura. Estamos a cargo dos esforços de edição, mas estamos fazendo com calma também, para poder incluir a coisa ao mesmo tempo da discussão da teoria, imposturas dos economistas e também questões muito atuais, desde a pandemia até esses distúrbios gerados pela guerra. Então, tem essas várias dimensões, artigos que tratam de vários temas, são formas diferentes de olhar o mesmo problema. Que fundamentalmente o problema é repor a crítica da economia política.

BD – Existe um mundo pós-capitalista? O que seria? Um novo socialismo?

Não é porque a proposta é nova que é boa. Você pega a MMT (Teoria Monetária Moderna): é a teoria do caixeiro viajante aplicado à moeda, então é uma coisa assim que tenta ser revolucionária, tenta ser nova, mas no fundo fica chafurdada no mesmo passado. As inclinações socialistas que têm surgido são interessantes, mas o seguinte, se você está sendo meramente utópico, não tem problema de ser utópico, mas tem que declarar que é uma utopia. Agora acreditar na utopia como visão de mundo realizável, aí você tem que combinar com quem faz o poder, no fundo é a conurbação entre o poder e o dinheiro. O cara que tem poder e faz dinheiro e o cara que tem dinheiro e compra o poderoso. Essa dimensão política é que é muito mais complicada quando se pensa num pós-capitalismo. Todas as teorias do pós-capitalismo deram muito errado…

BD – Até agora…

Essas proposições têm surgido há muito tempo, há sugestões interessantes, a renda básica universal, todo o pessoal que fala do desenvolvimento sustentável, o pessoal da economia solidária, tem uma base muito forte de questionamento…

BD – Anticapitalista, mas não pós-capitalista?

Exatamente. E esse anti não é exatamente oposição, não se trata de falar nem mal nem bem, mas entender aquilo – dentro desse esquadro, o que a gente pode fazer para mudar a situação fundamental. É o que o Keynes pensou naquele artigo pequenininho Possibilidades econômicas para os nossos netos. O Keynes está longe de ser um marxista, um socialista, ao contrário, é um liberal político dos melhores. Mas ele entendia o seguinte: qual o grande problema econômico? São as necessidades básicas, são as necessidades de o cara de comer. É a necessidade de o cara ter as condições mínimas de vida e isso deve ser garantido por toda a sociedade. Isso que no Keynes é tão interessante é porque ele baseia a sua teoria nessas concepções morais. Ele era aluno do Alfred Marshall, que foi um economista ortodoxo importante, marginalista, e importante para o Keynes porque o introduziu na economia. Ele era cercado da melhor cultura europeia da época e também era discípulo do Aristóteles e tudo mais, então ele tinha essa dimensão moral da sociedade como uma questão de todos a favor de todos, não de todos contra um.

BD – Gerações de economistas anteriores à sua se debruçaram prioritariamente sobre questões de política monetária, inflação, endividamento. Qual o desafio da sua geração de economistas?

Existem alguns temas que nos pegam bastante, que têm sido muito abordados e que fazem muito sucesso. Eu vejo as minhas colegas que estudam economia feminista, acho uma coisa impressionante a Nancy Fraser, eu acho espetacular o que as minhas colegas têm escrito. Há também as discussões sobre o papel da China no século 21, a China podendo ser os Estados Unidos do século 21. A grande questão é a seguinte: os Estados Unidos pegaram o seu sonho e tentou exportá-lo ao mundo através das formas mais abruptas e pintando isso de democracia. A questão é o que a China vai fazer depois. Essa atual contestação do dólar é um passo muito importante. E é uma coisa similar ao que aconteceu na passagem da hegemonia britânica para a americana. Primeiro foi a indústria, depois a tecnologia e as armas, aí o jogo está empatado, e depois foi o dinheiro. O grande poder dos EUA hoje é o dinheiro, porque o resto… Já perdeu. Muito em função da desintegração daquele sistema econômico baseado no bem-estar social e a adoção do neoliberalismo como cartilha de fé.

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  1. Quando Quesnay afirma que a França ficou reduzida a três classes, tal afirmação tem um profundo conteúdo histórico. O nosso mundo foi extremamente simplificado, também historicamente. O que isto significa? Significa que tem farinha pra todos, portanto o pirão, ou seja, medicina, escola, alimentação, moradia, roupa, e todos os etcs. possíveis. Isto começou a ser escrito, ou seja, produzido há 2 séculos. E isto significa o fim do antagonismo de classes. Isto é Marx, e este Marx nada tem de comum com Keynes. Pirão pra todos é o fim de um modo de produção chamado capitalismo. Como afirma o sociólogo Jean Ziegler em seu último livro, “O Capitalismo precisa ser destruído”.

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