A “questão do 1% da Fapesp” e a novidade que apareceu na ALESP
por Renato Dagnino
1. Introdução
Organizada para defender o recurso do Estado aplicado em atividades da comunidade de pesquisa, realizou-se em 21 de maio, por iniciativa da Frente Parlamentar em Defesa das Universidades Públicas e Institutos de Pesquisa coordenada pela deputada Beth Sahão (PT), uma Audiência Pública.
O vídeo do evento (https://www.youtube.com/watch?v=hDG_4OxGU9M) é a matéria-prima deste texto. Nele se destaca, do que usualmente é dito por representantes da comunidade de pesquisa, o que é novidade. E se busca proporcionar às pessoas e instituições envolvidas com o ensino e a pesquisa, elementos para pensar o futuro. Em particular, para refletir sobre o que implica essa novidade acerca de como se deve entender a relação entre a universidade pública, o Estado e a sociedade.
2. O usual
Estavam na mesa, além da deputada, autoridades de universidades, institutos de pesquisa etc. e representantes de outras organizações.
Predominaram as intervenções endossando o que eu denomino em https://aterraeredonda.com.br/politica-de-ciencia-tecnologia-e-inovacao/ de orientação “transferencista” da relação universidade-empresa. Elas (e cito livremente) destacaram o meritório papel da Fapesp para viabilizar a “excelência” e a “pesquisa de qualidade” das universidades e seu “patamar de produção necessário para gerar conhecimento para cumprir com sua missão de assegurar o desenvolvimento da nação”. Para justificar porque estavam se opondo à medida do governador, muitos repetiram o conhecido discurso autolegitimador sobre a relevância de suas atividades para atender essa missão.[1]
Para ressaltar a importância da pesquisa universitária, assumiram, como de costume, a existência de uma relação causal entre ciência, tecnologia, crescimento econômico e desenvolvimento social. Isso, embora a existência dessa cadeia linear-ofertista nunca tenha sido argumentada de modo plausível, não deve surpreender. De fato, seu questionamento por pesquisadores latino-americanos dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade há mais de cinco décadas permanece desconhecido. As evidências indutivas mostradas desde então e a informação factual disponível há mais de duas décadas que reforça esse questionamento têm sido sistematicamente ignoradas.
Entre os números para credibilizar o diagnóstico foi citado que “as três universidades estaduais paulistas respondem por 33% da produção científica nacional, e se a elas forem juntadas as federais e os institutos, que igualmente se podem beneficiar do recurso da Fapesp, esta proporção vai a 45%”. E, em relação ao prognóstico, manifestando apreensão sobre o cumprimento dessa missão com a frase “o que nós queremos de São Paulo nos próximos 10, 15, 20 anos?” e aceitando a causalidade linear alavancada pela pesquisa científica, foi dito que “professores novos que estão sedentos por oportunidades na pesquisa” seriam desaproveitados e que “estamos presenciando uma saída de cérebros das Universidades, muito competentes e cheios de energia para buscar oportunidades lá fora”.
Num tom mais politizado, falou-se que iniciativas semelhantes à do atual governador já haviam sido tentadas anteriormente por políticos igualmente citados como adversários da ciência, como o Maluf. E, ainda que de passagem, foi mencionado que essa redução do recurso alocado para a pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, se enquadrava na orientação neoliberal de enxugamento do Estado e de liberação de recurso para clientelas políticas.
Num registro mais pragmático, foi dito que o socorro da Fapesp aos Institutos estaduais de pesquisa “que vivem de chapéu na mão” em função dos reiterados cortes, fusões etc. (que se acentuam quanto mais nos distanciamos da industrialização via substituição de importações e mais avança a globalização neoliberal) é indispensável.
Defendeu-se, ingenuamente, uma ciência “imparcial e neutra” que, ao ser produzida pela pesquisa impulsionaria o desenvolvimento (nesta ordem) científico, tecnológico, econômico e social e resguardaria a sociedade das catástrofes sanitárias e ambientais. O modelo linear-ofertista e sua matriz transideológica, a crença no mito da neutralidade da tecnociência capitalista, foram reiteradamente evocados.
Propugnou-se políticas “de Estado”, como a que teria originado a Fapesp, uma vez que o apoio à CTI não poderia ficar à mercê de governos negacionistas[2]. Intervenções mais politizadas salientaram que o “negacionismo científico estadual estava na contramão do que estava fazendo o governo federal”. Que aqueles “que tem medo da ciência não percebem que o mundo atual é o mundo da ciência e do conhecimento”. E que, por isso, a Fapesp deveria também apoiar mais os “programas sociais que enfrentam a desigualdade, os projetos cidadãos, a universidade inclusiva”.
Foi-se configurando um consenso acerca do fato de que aqueles que se manifestavam contra o corte de recursos da Fapesp eram de esquerda. E que aqueles que o aceitavam, e que não estavam presentes, incluindo alguns que foram convidados, seriam de direita.
3. A novidade
A novidade, não tanto pelo conteúdo, mas pela maneira magistral como ele foi apresentado, e principalmente por que ele expressa uma influente corrente da Fapesp (que denomino no artigo citado de orientação “empreendedorista”), foi a fala da recém empossada pró-reitora de pesquisa da Unicamp, ex-diretora da sua Agência de Inovação (2021-24)[3].
Ela falou depois de dois representantes da USP, de um da Unifesp, do ex-ministro de Educação. E antes dos da UNESP, do IF-SP, e da Fapesp. Embora a maior parte das intervenções não se alinhassem com o expressado por ela, as únicas que, da audiência, questionaram seu conteúdo foram as representantes dos sindicatos docentes da USP e da Unicamp.
A fala clara e precisa da representante da Unicamp se iniciou pela assertiva de que “trazia todo o apoio da universidade a esse movimento de reversão dessa questão do 1%”. Expressão que, pelo fato de me parecer tão sincera e singular, tomei como inspiração para intitular este texto.
Ao explicar que seu “viés mais para o lado da inovação” se devia a ter sido até há pouco diretora da Inova Unicamp (a agência de inovação da universidade), ela enunciou as razões pelas quais trazia esse apoio.
No que segue, como antes, livremente, eu resumo o seu discurso. E, dado a relevância que me parece possuir para explicar a política que, embora não explicitada, está em curso na universidade pública brasileira[4], o faço extensivamente. Ele parece estar condicionando, sem contrapor-se ao discurso linear-ofertista, as atividades de extensão universitária empresarial, e também as de pesquisa e de ensino.
Além de todos os argumentos já colocados sobre a qualidade da pesquisa e dos recursos humanos que nós formamos, o impacto da pesquisa básica, eu trago a visão do impacto da inovação e do empreendedorismo.
Diminuir os recursos da Fapesp interromperá um círculo virtuoso porque parte deles é colocada para o desenvolvimento de empresas de base tecnológica para o nosso pujante ecossistema de inovação de São Paulo.
A região de Campinas tem o maior número de startups por habitantes no país e isso acontece porque grande parte dos recursos, que vêm dos projetos de pesquisas inovativas para pequenas empresas da Fapesp, são colocados para que os alunos de pós-graduação, que tenham pesquisas de base tecnológica, transformem sua pesquisa em produtos para o mercado, em demandas da sociedade que chegam no mercado.
Se esses recursos forem tirados se interromperá um círculo que é muito virtuoso por que a partir do momento que aquela pesquisa se torna uma inovação e vai para o mercado isso se torna também uma empresa que traz uma arrecadação significativa para o Estado.
Nós temos um levantamento de empresas que foram criadas a partir de pessoas que passaram pela Unicamp, que sabem sistematizar o seu modelo de negócio e que levam de uma forma mais sistemática, menos amadora, suas empresas.
O faturamento de empresas de pessoas provenientes do sistema acadêmico da Unicamp é de 26 bilhões anuais. Se a gente colocar uma alíquota média de imposto de 25%, se percebe que 6 bilhões revertem em imposto para Estado. O que é duas vezes mais do que o ele coloca na Unicamp, 3 bilhões.
Ou seja, além de toda formação de recursos humanos qualificados, a gente tem também o retorno financeiro que volta via ICMS para o Estado oriundo desses 26 bilhões gerados pelas startups das empresas que foram criadas por pessoas que saíram do sistema acadêmico da Unicamp.
Isso tem que pautar o debate porque é concreto, exato. É um levantamento que está nos relatórios da agência de inovação da Unicamp.
Interromper esse círculo virtuoso extremamente impulsionado por verbas da Fapesp, cortar o investimento da Fapesp, é cortar a própria arrecadação de ICMS que vem para o Estado: é tão simples quanto isso.
E além disso, ao criarmos esse sistema de empreendedorismo a gente está criando espaço para absorção de doutores que são formados na academia. Nós estamos cansados de formar recursos humanos qualificados e perdê-los para o exterior. Fazer um estágio no exterior é positivo para todo mundo, mas essas pessoas têm que voltar e compor o nosso sistema para que o país possa realmente se desenvolver com renda, empregos qualificados.
4. A conclusão
A multifacética novidade pode ser assim sintetizada: não se deve reduzir o recurso da Fapesp porque ele torna possível que “empresas de pessoas provenientes do sistema acadêmico da Unicamp” aportem ao Estado, mediante o pagamento de impostos, um valor duas vezes maior do que aquele nela aplicado.
E mais, que caso esse recurso vier a ser interrompido, os doutores formados, além de não poderem criar novas empresas que pagam impostos (além de, por transbordamento, gerarem um “círculo virtuoso” de bem-estar), não encontrariam postos de trabalho no País e tenderiam migrar gerando prejuízos para o País[5].
Poder-se-ia concluir do que foi dito que o caso da Unicamp estaria assinalando para as universidades públicas um promissório caminho de autonomização em relação ao Estado que até agora as mantém. De fato, uma vez que empresas criadas por seus professores e alunos (capacitados através das costumeiras atividades de ensino, pesquisa e extensão agora fortalecidas pelo “sistema de empreendedorismo” da agência de inovação) seriam capazes de gerar um imposto duas vezes maior do que o seu orçamento, elas deveriam concentrar seus esforços para emular o “círculo virtuoso” logrado pela Unicamp.
Coisa que, especialmente numa conjuntura de greve das universidades federais que explicita a escassez de recursos para sua operação, poderia ser interpretada com uma sugestão[6]. Ou seja, de que elas devessem se tornar uma espécie de OSCIP que, recebendo aquele montante de impostos os administrassem de modo semelhante para livrar-se dos vícios e irracionalidades estatistas que estariam entravando a pesquisa e, por consequência, o desenvolvimento nacional.
É impossível deixar de observar que os benefícios dos impactantes números apresentados sobre as “filhas da Unicamp”, enunciado como “concreto, exato… [dado que originados de]… um levantamento”, nunca foram respaldados por análises de custo-benefício e de custo de oportunidade sistemáticas, empírica e metodologicamente sustentáveis. Nem as universidades nem as instituições de fomento às centenas de iniciativas semelhantes que existem no País disponibilizam informação que permita uma avaliação pela comunidade universitária e pelo restante dos interessados.
Como exemplo desse procedimento de tipo magister dixit ocorrido na Audiência, tomo o declarado pelo representante da Fapesp: “parte dos investimentos que ela faz se dá em concordância ou em colaboração com empresas privadas que aportam recursos. Se de um lado nós ajudamos as startups a se desenvolverem, as grandes empresas acreditam na Fapesp e têm colocado recursos”.
Para concluir e antes que quem me lê pergunte, esclareço algo sobre o procedimento que tem conduzido à “solucionática” que vem propondo a corrente dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade à qual me filio. Ele se inicia pelos momentos descritivo e explicativo da consagrada metodologia de Análise de Política (que iluminam, respectivamente, o que é, e o porquê é deste jeito, a realidade que se está tratando) e que precedem o momento normativo (em que o ator que atua sobre a realidade formulando a política declara como é que ele deseja que ela fique).
Um esforço conjunto de delinear a “solucionática” demanda a disponibilização, pelos que na universidade e nas agências de fomento elaboram a atual política de CTI, de uma informação séria acerca daqueles momentos descritivo e explicativo. Só a partir daí será possível promover, incorporando uma parcela maior da comunidade de pesquisa, o aumento de sua eficácia que todos nós desejamos.
[1] A ausência de qualquer referência às inúmeras manifestações especificamente relacionadas à Fapesp (como as contidas em https://adusp.org.br/defesa-da-universidade/privatizacao/empr-fapesp/ e https://adusp.org.br/universidade/esquecendo-se-da-destruicao-que-iniciou-na-usp-zago-agora-profetiza-risco-de-irrelevancia-de-universidades/), que contrariam essas visões, parece mostrar sua pouca disposição a discuti-las.
[2] É curiosa a expectativa de que uma política (policy) “de Estado” possa existir sem antes ser proposta por um governo cujo projeto político (politics) a torne necessária. E que, no que tange à Fapesp (que durante muito tempo se manteve como o único caso mundial de organização de apoio à pesquisa com porcentagem fixada de recurso governamental), sua permanência no tempo não esteja ancorada num projeto político como o até agora referendado pela classe proprietária paulista.
[3] Sua maneira assertiva provavelmente se deva ao papel da organização à qual esteve ligada para materializar a energia que a Unicamp vem dedicando há mais de quatro décadas ao aumento da eficiência empresarial. Como se sabe, isso resultou numa consolidada e paradigmática plataforma institucional de apoio cognitivo, programático e organizacional às atividades de ensino, pesquisa e extensão da Universidade. E, também, à influência da visão inovacionista (hegemônica na definição do conteúdo dessas aditividades), que se irradia intelectualmente, através do Instituto de Economia e do Departamento de Política Científica e Tecnológica. E, operacionalmente, por intermédio dos órgãos responsáveis pela “política de inovação” que, cinco anos atrás, foi codificada pela Inova Unicamp.
[4] De fato, mesmo em situações onde os que defendem a atual orientação dessa política buscaram manifestar-se com maior clareza, como em https://www.jornaldaciencia.org.br/ou-as-universidades-se-reestruturam-ou-correrao-o-risco-de-se-tornarem-irrelevantes-alerta-presidente-da-fapesp/, eles ficaram muito aquém do que é aqui reproduzido.
[5] Retoma-se aqui a preocupação legitimadora do brain drain ora em uso pela elite científica que parece desconhecer o que é de conhecimento geral. Nossas empresas atendem um mercado imitativo cujos bens e serviços já foram engenheirados no Norte e, por contarem com insumos materiais e humanos baratos, seguem uma irrepreensível lógica pouco propensa à inovação e menos ainda à P&D; a compra de máquinas e equipamentos é de longe a atividade inovativa que preferem. E que, em consequência, ao contrário do que lá ocorre, onde mais de 50% dos doutores em ciência dura vão fazer P&D empresarial, as nossas empresas contratam menos de 1% para isto. O que implica que iniciativas de gerar oportunidades alheias à dinâmica empresarial, como alocar recurso público para que trabalhem em empresas (que deles pouco necessitam) ou para que criem unicórnios capazes de serem compradas pelas multinacionais que dominam nossos setores intensivos em tecnologia ou ainda para que se transformem em empresários bem-sucedidos, muito dificilmente poderão alterar o quadro estrutural traduzido por aquelas porcentagens.
[6] Minha opinião de que uma das causas estruturais da disfuncionalidade que leva às greves é o comportamento dos pesquisadores-empreendedores que na Audiência foi saudado, se encontra em https://68naluta.blog/2024/05/23/ciencia-tecnologia-e-inovacao-e-greve-na-universidade%c2%b9/.
Renato Dagnino – Professor Titular na Universidade Estadual de Campinas (professor visitante em várias universidades latino-americanas) nas áreas de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e de Política Científica e Tecnológica. É engenheiro, estudou Ciências Humanas e Economia no Chile e no Brasil, onde se doutorou. Realizou pós-doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra.
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