Crédito consignado ao Auxílio Brasil, estaremos a caminho de uma crise subprime?, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A crise do subprime veio da aposta que algumas instituições financeiras fizeram em que os bons pagadores, maioria, sempre compensariam os buracos deixados pelos maus pagadores, minoria.

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Crédito consignado ao Auxílio Brasil, estaremos a caminho de uma crise subprime?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Algumas instituições financeiras estão liberando crédito consignado ao Auxílio Brasil. Quais são os riscos para  nosso sistema financeiro? Durante a primeira década os anos 2.000, nos Estados Unidos, os bancos emprestaram dinheiro irresponsavelmente, causando a maior crise econômica advinda de uma crise financeira desde a de 1929. Segundo Karl Marx, o capitalismo depende de haver sincronismo entre os vencimentos dos empréstimos ao público e o prazo para resgate dos títulos que os capitalistas detêm no sistema financeiro. Traduzindo do economês, é preciso que os bancos, que operam no varejo, tenham o pagamento dos créditos concedidos coincidindo com vencimento dos títulos que eles próprios lançaram para captar recursos entre os poupadores.

A crise do subprime veio da aposta que algumas instituições financeiras fizeram em que os bons pagadores, maioria, sempre compensariam os buracos deixados pelos maus pagadores, minoria. Ocorre que o emprego da maioria depende também do consumo da minoria e, na medida em que esta deixa de pagar, aquela deixa de receber, trocando de lado, até que os maus pagadores tornem-se maioria, quando a economia entra em crise. Ocorre que o número de maus pagadores tem correlação direta com más políticas econômicas e também com externalidades, como uma pandemia. Por imprevidência de nossos governantes, a pandemia veio justamente quando as garantias trabalhistas eram abolidas, tornando o nível de emprego consideravelmente mais volátil do que a segurança social exigia. 70% dos brasileiros estão endividados para manter o nível de consumo, enquanto a metade disso tem contas atrasadas, necessitando renegociar seus débitos com o mercado financeiro.

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Ocorre que bancos pensam na relação risco-retorno, ou seja, quanto maior for o risco de não receber, maior será o prêmio da operação tal que – de novo – os bons pagadores arquem com os calotes dos maus. Por causa disso, a cada nova renegociação de débitos, o banco acrescente alguns pontos percentuais à taxa cobrada. Há devedores que, para negociar suas dívidas, têm que pagar até 8,4% de juros ao mês. É aí que mora a grande contradição. Ora, se o camarada já não conseguiu manter-se em dia com juros menores, como conseguirá quitar o que deve com juros maiores e a resultante elevação das parcelas? Só isso já é motivo para grande preocupação, mas a coisa piorou com a oferta eleitoreira de crédito consignado ao Auxílio Brasil.

Esse crédito pode comprometer até 40% dos R$ 400,00 garantidos por lei, em, no máximo, vinte e quatro meses, em prestações de R$ 160,00, com juros de 3,5% ao mês. Isso significa que o beneficiário poderá pôr as mãos sobre R$ 2.569,00 assumindo uma dívida de R$3840,00, a partir desta semana. Como, ao qualificar-se, o beneficiário garante a permanência no programa por dois anos, o prazo deveria coincidir com o do empréstimo. Ocorre que não há limites para o número de transações, nem data máxima para a concessão do crédito. Isso implica em que, caso o beneficiário seja desqualificado no fim do período e isso ocorra antes do pagamento da última parcela, o débito restante deverá ser negociado com o próprio banco.

Tomemos um choque de realidade. O beneficiário qualificou-se justamente por encontrar-se num estado de penúria em que R$ 400,00 ao mês pode significar comer. Não comer mais ou comer menos, simplesmente, comer ou passar fome. A não ser que que ele ganhe na Megasena, ao sair das condições de miserabilidade que o qualificaram ao benefício, os R$ 160,00 ao mês continuarão fazendo falta. Ele não deixará de ser vulnerável, apenas será menos vulnerável. Assim, passa a representar um enorme risco para o banco, que tentará compensar a probabilidade de perda com juros estratosféricos. Consequentemente, o egresso do programa sai mais endividado do que quando entrou e, pior ainda, com uma chance enorme de tornar-se inadimplente.

Ocorre que não se está falando em umas poucas pessoas. O universo é de mais de vinte milhões de habitantes, ou mais de cinco milhões de famílias elegíveis. A probabilidade de não pagamento, num universo tão grande, pode pôr o sistema financeiro em seriíssimo risco, prejudicando a retomada da atividade econômica em bases saudáveis. Isso se deve ao afogadilho com que se tomam medidas eleitoreiras, mostrando a fragilidade de nosso sistema político, bem como de nossas instituições, que não conseguem garantir o mínimo de racionalidade ao governo.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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