Meritocracia e empreendedorismo, amarga ilusão, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A soma dos dois conceitos, por embricados que sejam, traz distorções que nos saltam aos olhos nas ruas de nossas cidades.

Agência Brasil

Meritocracia e empreendedorismo, amarga ilusão

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Semanas atrás, manifestantes tentaram queimar a horrorosa estátua de Borba Gato que se encontra na Av. Santo Amaro em São Paulo. Poucos sabem que ela servia para deliminar dois municípios, o de São Paulo e o de Santo Amaro, que foram unificados em 1961. O bandeirante era genro de Fernão Dias, este sim caçador de índios para escravizá-los. O mais moço, na verdade, procurava metais preciosos, muitas vezes em companhia do sogro. Passou grande parte de sua vida em Minas. De todos os que descreveram o relacionamento entre escravos e senhores, talvez, Autran dourado tenha sido o mais preciso. Em todo o período escravistas, não houve lugar nem tempo em que senhores e seus cativos trabalhassem tão próximos e com relacionamento mais íntimo. Isso se deveu ao alto valor e baixo volume do produto final, o ouro, assim como as pedras preciosas.

Evidentemente, não se falava em meritocracia, mas já se apregoavam as qualidades que, mais tarde, caracterizariam o mérito como entendido hoje por uma facção conservadora do capitalismo. Correr, como os a que bandeirantes se expunham, riscos é tida como a maior qualidade. Ser “workaholic” é outra, medindo-se o mérito pelas horas dedicadas ao exercício de suas funções, o que também haveria de acometer os bandeirantes. Afinal, um bom escravo lavava de quatro a cinco bateias por dia e seu senhor não poderia ficar atrás, visto que era trabalho que não se poderia delegar sem grande risco de desvio. Ter a coragem de aventurar-se sertão a fora, contando com índios pretensamente aliados e com a perspectiva de encontrar outros aborígenes certamente antagônicos, haveria de caracterizar os bandeirantes como empreendedores. Todas essas qualidades, porém, não impediram que suas personalidades fossem, no mínimo, polêmicas.

As mesmas qualidades podem ser atribuídas aos cangaceiros, com a diferença de que não mineravam, extorquiam; não produziam, roubavam. Mesmo assim, pelo menos entre eles, havia um sentido de mérito que, à luz da lei, ou mesmo da mais simplória noção de moral, não se pode considerar como fazendo parte da norma humana.

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Mas a meritocracia, no sentido que se lhe deu o ultraliberalismo, embute a competição como premissa indissociável. Parte do princípio de que todos tenham nascido com as mesmas capacidades, portanto, as mesmas oportunidades. Trata-se de uma premissa mais que dogmática, religiosa, ou, pelo menos, apoiada em interpretação muito particular das religiões preponderantes no Ocidente. O resultado é que os economistas não se sentem mal em assumir a perfeita mobilidade da mão de obra em seus modelos. Esse economês significa que, para efeito de estudo, considera-se que todos podem exercer todas as funções e que a mão de obra seja fluida, migrando de uma atividade a outra sem obstáculos, seja de ordem física, seja em âmbito educacional ou de treinamento. Daí medir-se a saúde da economia via nível de emprego, reduzindo todos tipos de trabalho a uma mera percentagem.

O conceito, ou melhor, a soma dos dois conceitos, por embricados que sejam, traz distorções que nos saltam aos olhos nas ruas de nossas cidades. São pessoas de meia-idade pedalando bicicletas, hordas de entregadores, exércitos de motoristas por aplicativos pensando serem empreendedores. Há mesmo quem os classifique como empreendedores por necessidade, como um eufemismo atribuível aos subempregados, cujo consumo não enseja aumento do nível de emprego formal. Há dois anos que essa distorção foi institucionalizada no CADE, falseando as estatísticas e subavaliando o desemprego em nosso país. O pior é que os que não podem pedalar, pilotar motocicletas ou carros alugados para uso por aplicativos passaram-se a considerar vagabundos, destruindo-lhes o que poderia restar de autoestima. A reconstrução do país começa por reavaliar conceitos como o de mérito e de empreendedorismo porque nada pode ser mais amargo do que ser visto como café com leite perante a sociedade.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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  1. A desconsideração das relações de força existente na produção e acúmulo de bens que traduzem as formas de riqueza, servem sempre como meio de justificar a razão das desigualdades. Dar superioridade a uns em detrimento de outros, como se não houvesse qualquer outro fator determinante para o modo de vida legado a um e ao outro, sendo apenas a expressão das vocações e vontades canalizadas pela pura e simples ambição de cada um. Existem divisões dentro das sociedades e essas divisões colocam o indivíduo mais próximo de conseguir esse “prêmio”, de obter sucesso em relação ao capital ambicionado. O individualismo é uma característica bastante explorada pela teologia do mérito, que vê o outro como resultante da ausência de ambição, da falta de luta e esforço pessoal. A ideia de que todos podem conquistar independentemente das questões sociais, educacionais, econômicas entre outras coisas, produz uma resignação e a acomodação que leva a sociedade à aceitação do não evoluir. Empreender para evoluir é positivo, quando traduz a regressão da sociedade ao invés de levá-la ao progresso, torna-se apenas ilusão.

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