O dinheiro tecido social, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Somente o estado pode manter o tecido íntegro. São as regulações que impedem que os agentes econômicos esgarcem a trama irresponsavelmente, visando apenas aos seus interesses.

O dinheiro tecido social

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Lá por julho de 1994, estávamos na Praça Alexandre de Gusmão, uma amiga e eu, no horário do almoço de uma quarta-feira ensolarada. Ela ficou horrorizada com uma moradora de rua que, depois de tirar o vestido pela cabeça e estendê-lo na grama, ficou a tomar sol totalmente nua. Tentei explicar-lhe que, para aquela moça, tanto fazia se o Fernando era o Collor ou o Henrique, se era quarta-feira ou domingo. Houve uma ruptura entre aquela moça e a sociedade. Ela só compartilhava o espaço físico e os recursos da sociedade humana, mas não fazia parte de seu tecido. Era mais ou menos como um cão de rua ou um rato, que comem o que comemos, vive onde vivemos, mas são invisíveis. Marx chamava esse grupo de lümpen. Não é preciso estar na rua para fazer parte desse grupo, basta que, como se diz hoje, tenha-se ligado o botão do f…-se.

Esse botão está no painel de todos nós, independentemente do que fazemos, ou do que vivemos. Um empresário pode ligar o botão do f…-se a qualquer momento, bastando que suas dívidas excedam o custo para abandonar o ramo em que atua. Ele simplesmente deixa de quitar suas dívidas e larga o negócio, resultando no enorme número de CNPJ falsamente ativos que impregna a economia brasileira. Da mesma forma, uma pessoa física pode ficar sem emprego, ou mesmo dever mais do que é capaz de repor, e aperta o botão. Ao mesmo tempo, há os que, simplesmente, não pagam porque não querem. No último caso, a ruptura se deu porque ele tendia ao lümpen por convicção. Os economistas atribuem o nome de risco e acreditam que isso possa ser mitigado pela diferença entre as taxas de tomada e concessão, estudadas na matéria anterior. Os economistas não cansam de atribuir tipos aos riscos. Aqui consideraremos apenas quatro, o soberano, que corresponde ao que não está ao alcance do devedor; o de negócio, que é o de as transações não ocorrerem satisfatoriamente; o de crédito, que é o de o devedor não ter dinheiro para pagar; e o moral, que é quando o devedor tem dinheiro mas não quer pagar. Assim, quanto maior for a percepção de risco, maior será o spread. Ocorre que, quanto maior for o spread, mais próximo do ponto de ruptura o indivíduo estará, ou seja, maior será a probabilidade de ele ligar o botão do f…-se. A ruptura é, portanto, função direta do spread, coisa com que os gestores de risco dos bancos simplesmente não consideram em seus modelos. Eles se preocupam com a liquidez das garantias.

Digamos que fulano compre dinheiro de um banco para comprar um carro e trabalhar por aplicativo. Se ele der mais de 50% de entrada, o banco sequer vai pedir fiador. Ele crê que, em estando com um bem que vale o dobro do valor emprestado, caso o Fulano  não pague, ele toma o carro e o vende recuperando, com grande probabilidade, o valor emprestado. O com que o banco não conta é que está contribuindo para esgarçar o tecido social, visto que a probabilidade de fulano ligar o botão do f…-se é de quase 100%. Se as relações humanas são a linha, o dinheiro é a trama. Marx, Schumpeter e Keynes trataram de a produção depender do dinheiro. Eles também trataram da ruptura, mas não incluíram o f…-se como variável do modelo. Aí vem o imponderável, como a pandemia, e  a trama do tecido social se desfaz ponto a ponto, até que se torne somente uma linha emaranhada, a que os sociólogos chamam de convulsão.

Somente o estado pode manter o tecido íntegro. São as regulações que impedem que os agentes econômicos esgarcem a trama irresponsavelmente, visando apenas aos seus interesses. Também cabe ao Estado cerzir a sociedade, devolvendo-lhe a resistência anterior. Para isso, ele precisa usar ferramentas que ajustem o spread ao nível de atividade econômica mantendo o valor da moeda, portanto, sua função como reserva de valor que, em último caso é o que impulsiona o acúmulo de capital pela sociedade. A política monetária brasileira, que atua somente sobre a taxa básica de juros é, mais que perversa, ineficiente porque, ao contrário do que era de esperar, ela amplia o spread, pois mantém inalterada a ótica dos agentes financeiros. Como se não bastasse, aumenta o custo de carregamento da dívida pública, impedindo o Estado de cerzir o tecido social.

É sobre o crédito que o Estado deve atuar, não como concessor, porém, como segurador, regulando o fluxo econômico pelo crédito disponível, fazendo com que os agentes financeiros tenham o medo de perder sob o controle do Estado para que a vontade de ganhar o suplante.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

1 Comentário

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  1. A oferta de crédito ao consumidor pessoa física é, no Brasil, pura e simplesmente, uma arapuca.
    O prof. Ladislao Dowbor contou, certa vez, que levou a filha para que esta comprasse seu primeiro veículo, tendo prometido a ela dar a entrada; a vendedora, empolgada, começou a expor as formas de pagamento, e quando chegou naquela indefectível parte do “tantas prestações, sem juros”, o prof. Dowbor a interrompeu, delicadamente, e disse, ‘minha filha, eu sou economista, você pode pular essa parte do sem juros’.
    A prestação cabe no salário? Então venha. Em pouco tempo, o que não caberá será o salário, as contas, a escola das crianças, etc.,etc.,etc. Como diabo isso foi acontecer?
    O que me custa a crer é aceitar que há perda, por parte de quem vende a crédito. Se é verdade, e é, que o risco de inadimplência é alto, e que o aumento do spread, no longo prazo, sufoca o consumo, por que manter esse sistema disfuncional? Em determinado momento, o lojista perderá venda, a indústria dimnuirá a produção, o sistema de crédito…ops!
    O banqueiro perde alguma coisa nessa história? Não. As garantias oferecidas, por industriais e lojistas, valem a pena, ao contrário do que industriais e lojistas podem reaver de seus inadimplentes.
    Alguém aí lembra da garantia estendida, na compra de eletrodomésticos? (Não compro eletrodomésticos há tanto tempo que nem sei se essa embromação ainda existe).
    Há alguns anos atrás, comprei um eletrodoméstico. Batedeira, liquidificador, algo do gênero, eu realmente não lembro. O diabo do aparelho deixou logo de funcionar, e lá vou eu, do alto da minha ingenuidade, aparelho numa sacola, à loja em que o comprara, efetuar a troca. A moça que me atendeu, creio eu, teve que segurar o riso. Não, pode levar de volta seu aparelho, o fabricante vai mandar buscá-lo em sua residência. E lá vou eu de volta para casa, desta vez carregando dois aparelhos. Resumindo, uns dois ou três anos depois, cansado de esperar o fabricante recolher o eletrodoméstico, joguei-o fora, para tristeza de duas ou três baratas que lá haviam se instalado.
    E é essa é, creio, apenas a mais insignificante das 1001 formas de que essa gente dispõe para sugar nossos cada vez mais combalidos bolsos.
    De crédito bancário direto, nem vou falar.
    A picaretagem aí é exponencial, fazem industriais e lojistas parecerem noviças em um convento. As garantias de que dispõem, em comparação com àquelas a que industriais e lojistas tem acesso, são mera formalidade. E não porque sejam ‘grandes demais’ para cair; são buracos negros, deles nada escapa. Inclusive, e principalmente, governos. Que é quem emite a moeda que circula nos…bancos!
    Se isso não for o paraíso – para os banqueiros, bem entendido – então eu não sei de mais nada.
    Meu pai dizia, use o cartão de crédito e pague em dia, e eles ganham; use e não pague, e eles não perdem. Só você perde. Entende? Só nós perdemos. És assalariado? Sinto muito. Estás perdido no mundo deles, que é o único que existe.
    Estamos no mundo da mesma forma que a moradora de rua cujo significado a amiga do Melchert não pôde compreender. Nus, expostos, e entregues à própria sorte. E não incomodamos banqueiros, porque não somos visíveis a eles.
    No dia que o homem comum perceber que a verdadeira corrupção que atrasa nossas vidas é a corrupção dos bancos, do dinheiro virtual dos títulos e da ciranda financeira, e não da propina ridícula – uma esmola, um trocado para o fim de semana – que essa gente paga para políticos, aí pode ser que…
    Eu já nem sei o que pode ser. Talvez porque já não creia que esse dia virá. Vão continuar fazendo o que fazem, nos seduzindo com dinheiro e bens de consumo como se estivessem atraindo uma criança de colo com um chocalho colorido, fascinante…e nós não sairemos dessa infância, de sua esfera de influência.

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