“Um minuto de silêncio pra você que perdeu esse jogo”
por Marquinho Carvalho
Os ingleses fizeram a Revolução Industrial a partir da segunda metade do século XVIII e, no apagar das luzes do século XX, iniciaram outra revolução, desta feita, no futebol, com a criação da Premier League, na temporada 1994-1995. Até então, o esporte, propalado como uma invenção britânica, era praticado com à base de correria, força, bolas cruzadas na área e muitos gols de cabeça, algo previsível e enfadonho.
A partir da criação da Premier League, no entanto, iniciou-se uma verdadeira transformação no futebol que envolveu diversas mudanças na organização do campeonato: investimentos em segurança; construção de estádios modernos; gramados impecáveis, repartição de 50% do lucro igualitariamente a todos os times participantes do campeonato e, claro, contratação de jogadores oriundos de várias partes do mundo. Foi a partir de então, também, que o fenômeno da “privatização” dos clubes de futebol ingleses ganhou força, o que resultou na entrada de recursos volumosos investidos por seus novos proprietários, milionários que encontraram no futebol mais uma fonte de lucros extraordinários.
No último domingo, a partir das 12h45m (horário de Brasília), assisti a um verdadeiro espetáculo de futebol que contempla todos os aspectos que fazem jus a esse adjetivo. Liverpool x Manchester City se enfrentaram no estádio Anfield, na cidade de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. A cidade entrou no imaginário dos apaixonados por música por ser a terra dos Beatles, a banda de rock’n’roll que revolucionou a cena musical do planeta, a partir do início dos anos sessenta. Com esta referência aos “Fab Four”, vale ressaltar que antes da bola rolar aconteceu o tradicional canto da torcida dos Reds que envolve a ampla maioria do público presente. O cântico do Liverpool é um espetáculo à parte. Um verdadeiro “mantra”.
A partida valia pela 28ª rodada da Premier League, hoje a mais importante competição de futebol do mundo. Outro detalhe importante é que estava em disputa a liderança do campeonato inglês, lembrando que desde a temporada de 81/82 não havia três equipes disputando o título a esta altura do certame. O Arsenal, time de Londres, liderava com 64 pontos. Liverpool em segundo, com 63 pontos, e o City, em terceiro, com 62 pontos. A vitória de qualquer um dos dois protagonistas da partida os colocaria na liderança.
Outra relevante informação é que no banco de reservas dos times estavam os dois maiores treinadores da atualidade: o alemão Jürgen Klopp, dirigindo o Liverpool, e o espanhol (embora ele prefira ser chamado de catalão) Pep Guardiola, no comando do City.
Em campo, várias das maiores estrelas do futebol mundial na atualidade. O Liverpool, com um elenco de ótimos jogadores, com destaque para o egípcio Mohamed Salah, que iniciou o jogo no banco de reservas, porque está em fase de recuperação de uma grave contusão e só entrou em campo quase na metade do segundo tempo. A equipe do City também tem excelentes jogadores: Rodri, Phil Foden, Halland e o craque De Bruyne. Enfim, ali estavam reunidos todos os ingredientes para uma grande partida de futebol. E foi o que aconteceu. Um jogo memorável traduzido de maneira emblemática na frase dita pelo narrador Rogério Vaughan ao final da partida: “Um minuto de silêncio pra você que perdeu esse jogo” e corroborada mais tarde pelo jornalista Celso Unzelte numa mesa redonda da ESPN que debatia o jogo com as seguintes palavras: “Foi um deleite de futebol”.
Não pretendo descrever os detalhes do jogo, mas apenas destacar alguns dados estatísticos relevantes que dão conta da dimensão épica do confronto:
Chutes – Liverpool: 19 – City: 10
Chutes a gol – Liverpool: 6 – City: 6
Posse de bola – Liverpool: 53% – City: 47%
Precisão de passe – Liverpool: 84% – City: 81%
Faltas – Liverpool: 6 – City: 10
Os números relacionados acima são o “espelho mágico” que refletem a imagem do que foi um jogo disputado em altíssimo nível, especialmente na precisão dos passes, número de finalizações e o número total de apenas 16 faltas ao longo dos 90 minutos de jogo e mais 11 minutos de acréscimos somados primeiro e segundo tempos.
O detalhe mais relevante nesse grande jogo de futebol, como são a maioria das partidas da Premier League, é a dinâmica arrojada dos dois times durante toda a peleja. Nos gramados ingleses não vemos as constantes interrupções dos jogos geradas por faltas que lá são ínfimas em comparação com o futebol praticado no Brasil. Também não assistimos aos espetáculos patéticos de simulações de contusões, como acontece nos gramados tupiniquins e raramente assistimos aos jogadores dos dois elencos cercando e pressionando os juízes após qualquer marcação de falta. O tempo de bola rolando é outra marca da competição. Creio que não é preciso fazer comparação com os jogos de futebol no Brasil.
Não posso deixar de destacar o alto nível das arbitragens na Premier League. Os árbitros deixam o jogo correr e não cometem os equívocos bizarros que vemos cotidianamente nos gramados brasileiros. Mas é fundamental destacar também como a arbitragem eletrônica na Inglaterra é eficiente. O chamado VAR dos ingleses é ágil e não interfere tanto nas decisões da arbitragem de campo e, quando o faz, é muito preciso.
Os apitadores ingleses também não sofrem do complexo de autoridade observado entre seus congêneres tupiniquins. Por aqui, eles fazem questão de apitar para mudar o local de cobrança de uma infração em poucos centímetros; caminham vagarosamente para advertir técnicos e outros membros de comissões técnicas, atraindo para si toda a atenção; perdem tempo ao ensinar missa ao vigário ao pedir para os jogadores não se agarrarem ou se estapearem na área antes da cobrança de escanteios e outras demonstrações infantis de que “aqui que manda sou eu, sou ‘toridade’”. Na Europa a prioridade é outra, é agilidade, dinâmica, bola rolando.
Todos esses aspectos técnicos associados à grande quantidade de jogadores talentosos atuando na Premier League, inevitavelmente, me conduzem ao futebol praticado no Brasil na minha infância, quando me apaixonei pelo esporte bretão.
No final desta partida histórica, Liverpool 1 x 1 Manchester City, embora com um placar “magro”, foi um espetacular jogo de futebol que foi disputado até o último minuto dos acréscimos.
Uma das imagens mais marcantes do confronto aconteceu após o apito final e, certamente, entrará para a história, até porque Klopp deixará o comando do Liverpool no final da temporada. Refiro-me ao abraço afetuoso entre Jürgen Klopp e Pep Guardiola, que, somado à rápida conversa ao pé de ouvido, exaltou o respeito mútuo entre esses dois gigantes treinadores que foi traduzido num belíssimo espetáculo de futebol.
Todo esse cenário revela a essência do que sempre amei no futebol e, lamentavelmente, só posso ver na Premier League.
Marquinho Carvalho (Marco Antônio Gomes de Carvalho) é formado em História pela Universidade Federal de Goiás, professor do Instituto Federal de Goiás, desde 1994, e militante na área cultural e ambiental. Foi secretário de cultura da cidade de Jataí-Goiás por dois mandatos, no período de 2009 a 2016. Criador da Rádio Web Boca Livre que está na rede desde 2005. Produtor e apresentador de 34 episódios do programa Almanaque do Vinil, dedicado à música brasileira lançada nos LPs, exibido na TV GGN. É pesquisador de música brasileira e “curador” de um acervo de discos de vinil também voltado para a música produzida no Brasil. Na área ambiental, foi o idealizador e mobilizador de um grupo de amigos que, no ano 2000, adquiriu uma área de 171 hectares de cerrado no sudoeste do Estado de Goiás para a criação da Reserva Ecológica Porto das Antas.
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