O Brasil dançou. E “dançou”
por Marquinho Carvalho
Terminada a participação do Brasil na Copa do Mundo do Qatar, muitos debates estão sendo travados sobre diversas questões que surgiram após a eliminação da seleção brasileira.
Já durante Copa o tema das dancinhas dos jogadores após a marcação dos gols do Brasil veio à tona. Eu mesmo o promovi em nosso programa “Gol de Letra”, na TV GGN, que contou com a participação do convidado Celso Adolfo, grande cantor, compositor e violonista mineiro, e os membros fixos do programa: Francisco Cabral e José Luis Suzigan.
Como dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. Então, fui o único que apresentou argumentos contrários às tais coreografias ensaiadas pelos jogadores do Brasil e colocadas em cena após os gols da equipe.
Lembro que fui detonado por uma internauta que me chamou de careta e chato. Novamente fazendo alusão e parafraseando um verso da belíssima canção “Fado Tropical”, de Chico Buarque e Rui Guerra: “todos nós herdamos do sangue lusitano uma certa dosagem de caretice, além da chatice, é claro”.
Mas eu creio que não fui muito bem compreendido. A princípio deixo muito claro que não sou contra as coreografias, ainda que esteticamente não me pareçam bonitas, porém, acredito que elas fazem parte desse caldo cultural midiático virtual promovido especialmente pelo aplicativo Tik Tok. Para tanto, basta reparar em dois grandes anunciantes nos intervalos dos jogos que tinham essas coreografias de gosto duvidoso, pelo menos para mim, e que traziam como protagonistas Lucas Paquetá e Neymar.
O fato é que as tais dancinhas foram apresentadas ao mundo após a marcação dos gols brasileiros nesta edição da Copa do Mundo e logo que elas surgiram, como eu mencionei logo no início desse texto, suscitaram um grande debate. A maioria da crônica esportiva brasileira defendeu as dancinhas. Mas surgiram algumas críticas vindas de comentaristas e ex-jogadores do exterior. A mais contundente delas foi do Roy Keane, ídolo do Manchester United, que declarou: “Acho desrespeitoso dançar assim toda vez que eles marcam. É desrespeitoso. Até o treinador deles se envolve. Eu não gosto disso”.
Afirmo de maneira categórica que discordo do Roy Keane e penso até que seja um absurdo sequer imaginar que uma manifestação cultural como a dança possa ser desrespeitosa. Creio que o depoimento do ex-jogador irlandês revela apenas a sisudez e a falta de humor típica dos britânicos.
Então, em que ponto entra a minha discordância com as danças?
Insisto que a questão central para mim não são as coreografias e sim a falta de espontaneidade dos jogadores logo após o momento mágico do futebol que é exatamente o “Gol”.
Creio que aqui preciso mencionar as comemorações de gols que se tornaram marcas registradas de grandes craques do futebol mundial. A principal delas foi criada pelo Pelé, o rei do futebol, no dia 2 de agosto de 1959, na Rua Javari, em São Paulo, quando Pelé ‘chapelou’ dois defensores e o goleiro do Juventus da Mooca e marcou, pelo Santos, um dos gols mais bonitos de sua carreira. O gol, porém, ficou em segundo plano na história do futebol, pois o Rei do Futebol eternizou ali, após ser aplaudido por balançar as redes, a comemoração mais famosa do futebol: o soco no ar.
A forma de celebrar a maioria de seus 1281 gols ficou eternizada mundialmente na Copa do Mundo de 1970, no México, quando o Brasil empatava na estreia com a Tchecoslováquia em 1 a 1. Aos 14 minutos do segundo tempo, Pelé recebeu um lançamento na grande área, matou no peito e mandou para o fundo da rede. O soco no ar na comemoração foi televisionado mundialmente e tornou-se uma febre no futebol.
Curiosamente, outra celebração de gol que entrou para a história foi também de um rei: Reinaldo, centroavante do Atlético Mineiro nos anos setenta e oitenta. O Rei, como é chamado pela torcida do “Galo Mineiro”, marcava seus gols em plena ditadura militar brasileira (1964 a 1985) e cravava os pés no chão com o braço esquerdo dobrado nas costas, o direito erguido com o punho cerrado. Gesto emblemático dos Panteras Negras dos Estados Unidos em sua luta contra o racismo e em favor dos direitos civis dos negros naquele país. E para aqueles “idiotas da objetividade”, como muito bem definia Nelson Rodrigues, que insistem em querer separar a política do esporte, esse gesto se tornou mundialmente conhecido justamente quando Tommie Smith e John Carlos, cabeça baixa, luva na cor preta, punho cerrado e mão para o alto, eternizaram o movimento dos Panteras Negras em um 16 de outubro, no México 1968, em pleno pódio dos Jogos Olímpicos. Os dois atletas norte-americanos haviam acabado de conquistar respectivamente as medalhas de ouro e de bronze nos 200 metros do atletismo das Olimpíadas na Cidade do México.
Reinaldo também deixaria a sua marca na Copa da Argentina de 1978, que assim como o Brasil vivia sob uma ditadura militar sanguinária. O “Rei” chegou à Copa como camisa 9 da seleção brasileira, que estreou no torneio em 3 de junho daquele ano, contra a Suécia, em Mar del Plata. O time escandinavo abriu o placar. Mas, aos 45 minutos do primeiro tempo, Toninho Cerezo cruzou da direita, Reinaldo se antecipou ao zagueiro Roy Andersson e empurrou para as redes. O ato que se seguiu ao gol foi encarado como uma afronta aos governos militares espalhados pela América do Sul. Reinaldo mais uma vez repetiu o gesto dos Panteras Negras que se tornara sua marca. Uma decisão por impulso e muita coragem, já que ele fora avisado pelo próprio presidente assassino, Ernesto Geisel, que se dedicasse ao futebol e deixasse a política com os militares que estavam no poder.
Eu poderia fazer uma enorme relação de grandes atacantes que criaram marcas registradas nas comemorações dos seus gols, mas creio que esses dois belos exemplos sejam suficientes para que eu apresente a minha tese, a princípio óbvia, de que o gol, esse momento supremo de uma partida de futebol, é uma verdadeira explosão de alegria, êxtase e transcendência, e que, dependendo da importância da partida e da competição que está sendo disputada, é um momento de transe do jogador que marca o gol e de sua equipe. Portanto, prefiro a espontaneidade nas comemorações dos gols. Confesso que acho até mesmo inimaginável a possibilidade de marcar um gol e na sequência participar de uma dança coreografada.
A Copa do Mundo da Espanha em 82 me marcou profundamente. Jamais vou esquecer o grande lateral esquerdo Júnior sambando em frente à bandeirinha de escanteio do ataque brasileiro após marcar o terceiro e belíssimo gol contra a Argentina, que sacramentou a vitória brasileira naquele jogo. Foi uma dança, sim, mas foi totalmente espontânea.
Nas Olímpiadas de 1996 de Atlanta, nos Estados Unidos, o mundo foi apresentado à “dancinha nigeriana” na histórica virada da Nigéria – 4 a 3 sobre o Brasil nas semifinais da competição em que o atacante Kanu marcou o quarto gol e correu pra galera executando uma dança típica da cultura de seu país.
Diante das narrações de algumas comemorações de gols históricos enfatizo que não tenho nada contra as danças no momento das comemorações dos gols, apenas reitero que prefiro as comemorações espontâneas e o contrário me parece caricatural e sem alma. O momento do gol é um êxtase total e acho contraditório tentar coreografar uma comemoração num momento tão mágico e transcendente.
Tenho um grande arrependimento em minha vida. No dia 31 de julho de 1977 eu estava prestes a completar 12 anos de idade e joguei uma partida na preliminar do time da minha cidade, a Jataiense, que jogaraia contra a Anaplina, time da cidade Anápolis, partida valendo pela 1º divisão do campeonato goiano. O Estádio Jerônimo Ferreira Fraga estava lotado. Marquei o primeiro gol da partida com um chute por cobertura da entrada da grande área. Um golaço! Sai correndo enlouquecido em direção à arquibancada. No meio do percurso eu pensei em escalar o alambrado, movimento característico de muitos atacantes naquela época em momentos de êxtase depois de marcar gols lindos ou importantes, mas acabei desistindo, certamente com receio de cometer o conhecido “mico”. Daí o meu arrependimento. Como foi algo muito marcante em minha vida até hoje, fico imaginando como teria sido maravilhoso se aquele garotinho de um pouco mais de um metro e cinquenta de altura tivesse se dependurado naquele alambrado em completo êxtase.
Por falar em alambrados, eles praticamente desapareceram dos estádios. Recordo-me que a última vez que vi um atacante escalar um deles foi o Ronaldo Nazário, o Fenômeno, depois de marcar seu primeiro gol pelo Corinthians, empatando a partida justamente contra o Palmeiras. O Fenômeno não se conteve e pulou no alambrado do estádio Eduardo José Farah, em Presidente Prudente, para festejar com a torcida. Outros jogadores do Corinthians repetiram o ato e a estrutura não aguentou o peso dos atletas e dos torcedores e cedeu. Felizmente, ninguém se feriu. A partida pelo Campeonato Paulista realizada no dia 9 de março de 2009 terminou empatada em 1 a 1.
Concluindo, reitero que não sou contra as “dancinhas”, mas que sou de um tempo em que os craques e gênios da bola não faziam danças coreografadas nas comemorações e sim “tiravam os adversários para dançar” dentro de campo com a bola em jogo. Vi coreografias lindas de Garrincha, Pelé, Maradona e Messi. Uma especial que eu lembro de cada movimento: Tostão tirando a zaga inglesa para dançar na Copa de 70 e, depois de criar uma coreografia maravilhosa de dribles lindos dentro da grande área adversária, cruzou para o primeiro e único gol daquele que foi o jogo mais difícil Copa do tricampeonato brasileiro.
Uma pergunta que não quer calar: por que não teve “dancinha” depois do gol do Brasil contra a Croácia?
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Eu tb acho ridículo as dancinhas ” coreografadas”, típicas da breguice dos jogadores bregas dos últimos tempos. Com todo o respeito a quem gosta, mas neymar e outros foram os responsáveis por difundir o pior da música brasileira no mundo, através de suas preferências musicais de péssimo gosto e com isso as dancinhas. Me lembro perfeitamente de Júnior sambando em comemoração ao gol, citado por vc no texto, e naquele momento me senti representando em minha brasilidade. Foi genuino e emocionante. Inesquecível. Ao contrário das tais dancinhas da atualidade às quais simbolizam a breguice dessa gente, mas que por isso mesmo não perdurarão no tempo, como foi o caso do belo samba no pé de junior, um dos grandes craques do passado da seleção brasileira de futebol. Parabéns pelo seu texto e pela grande erudição futebolística.
Excelente, Marquinho. O futebol também é lúdico e a dança faz parte. Pessoalmmente prefiro o soco no ar, a corrida pra torcida e a montanha humana formada entre os jogadores.