“As aparências não enganam não” *
por Marquinho Carvalho
Eu pensei muito sobre escrever ou não um artigo sobre o polêmico comercial da Volkswagen produzido com a tecnologia da Inteligência Artificial (AI) que colocou em cena a cantora Maria Rita, filha da Elis Regina, em “carne e osso” (agora a expressão tornou-se necessária), contracenando com a mãe forjada pela IA na propaganda comemorativa dos 70 anos da VW no Brasil e “lançando” a moderníssima Kombi movida a eletricidade.
Ao contrário de milhares de pessoas que se emocionaram com o comercial e na mesma proporção daqueles que detestaram o resultado da peça publicitária, devo dizer que me senti numa espécie de “limbo”. Sim, creio que esta palavra envolta no seu contexto metafísico foi a que melhor definiu a minha sensação ao ver a propaganda.
No primeiro momento não elaborei nenhuma crítica estética à criação. Também não fiz qualquer análise do ponto de vista político devido à utilização da clássica canção do Belchior imortalizada pela Elis Regina. Por conseguinte, não fiz qualquer julgamento moral sobre os herdeiros dos direitos de utilização, tanto da imagem da Elis quanto da música tema do comercial.
No entanto, adormeci no final da noite ainda no “limbo” ou, para ser mais exato, num verdadeiro torpor diante daquelas imagens e áudio que de certa forma paralisaram os meus sentidos e confundiram meu senso crítico. Na manhã seguinte, no entanto, assim que despertei, resolvi provocar algumas amigas e amigos em busca dos seus posicionamentos em relação ao referido comercial.
As conversas digitadas e os áudios trocados preencheram a minha manhã. Curiosamente nenhum deles se emocionou com a propaganda, muito pelo contrário. Elaboramos juntos várias críticas e compartilhamos postagens e vídeos que traduziam toda a visceralidade da Elis Regina com suas incríveis interpretações, performances e depoimentos bombásticos contra as estruturas sociais e culturais de sua época.
O meu querido amigo, o grande ator Nanego Lira, me enviou dois excelentes artigos: “Esqueça os mortos que eles não levantam mais”, escrito por Silvio Osias, publicado no “Jornal da Paraíba”. O segundo foi: “Juntar Elis e Maria Rita é puro exercício de morbidez”, escrito por Thiago Amparo, publicado na “Folha de S. Paulo”. (deixarei os links no final do texto). Ambos fazem uma crítica contundente ao comercial, porém sem rancor. O segundo, inclusive, faz uma referência poética à letra de “Como Nossos Pais” na medida que apresentava seus argumentos.
Durante esse processo de trocas de informações sobre o comercial eu comecei a sair do tal “limbo”, daquela ausência de sensações provocada pela propaganda. Lembrei-me das minhas aulas de biologia no ensino fundamental sobre as propriedades da água: “insípida, incolor e inodora”. No caso do comercial senti apenas que algo não “cheirava bem”.
O fato é que não me emocionei em nenhum momento da polêmica peça publicitária da VW. Na realidade, eu senti um desconforto brutal a assisti, mas não soube traduzi-la imediatamente. A felicidade estampada na face da Maria Rita me lembrou da belíssima canção “Receita da Felicidade”, do cearense Ednardo, um dos parceiros do Belchior: “Ultimamente ando às vezes preocupado/Vendo as caras tão risonhas das crianças/Nas fotos dos anúncios/Nos cartazes da parede/Dando ideias que algo vai acontecer/É receita certa pra sensibilizar/Pra esconder…”, mas as falsas expressões faciais criadas no simulacro de rosto da Elis Regina me pareceram caricaturas bizarras.
Sou fascinado por filmes de vampiros, essa criação fantástica do terror. Eles se apresentam elegantes e charmosos, porém, são de fato zumbis não desfigurados como os que conhecemos na literatura, nos filmes e nas séries de terror. Detrás da sua suposta aparência sedutora existe um corpo sem alma.
Foi o que me sugeriram as expressões faciais e o sorriso no rosto criado pela deepfake da Elis Regina. Aquela imagem era grotescamente falsa. Uma violência não só com a sua memória, mas também uma agressão contra toda uma geração que se encantou com Elis nos palcos e nas TVs cantando divinamente, sempre tomada por uma incrível expressividade facial e corporal.
Esta constatação me remete ao grande cientista Miguel Nicolelis numa de suas entrevistas: “A inteligência artificial é burra e plagiadora”.
É óbvio que eu concordo que a criação do comercial foi muito impactante, tanto que emocionou milhares de pessoas. Mas não nos esqueçamos que a propaganda é a arte criada para nos enganar. Não foi mero acaso que o nazismo contou com o genial Joseph Goebbels como ministro da Comunicação e a brilhante cineasta Leni Riefenstahl, que forjaram no povo alemão a ideologia nazista.
Uma grande peça publicitária não prescinde de uma excelente trilha sonora. Foi o caso do comercial da VW. Ao entrelaçar os afetos entre mãe e filha associadas ao fetiche com o automóvel retrô e o moderno da Volkswagen, “embaladas” pela canção “Como Nossos Pais”, uma das mais conhecidas da chamada MPB, nas vozes das protagonistas Maria Rita e Elis Regina, tinha tudo para ser devastador. E foi, nos dois sentidos.
Sim, porque milhares de pessoas se emocionaram com esse roteiro carregado de “afetos” e reminiscências. A direção do comercial, agindo como um mágico, distrai o público com algo superficial para realizar o seu truque.
A utilização da música do Belchior, alterando o seu sentido original de profunda crítica política e social de uma época bastante traumática da história brasileira, a tenebrosa “Ditadura Militar”, com um recorte com uma suposta “licença poética” da clássica canção para a trilha sonora do comercial, provocou em mim e também em muita gente uma tremenda indignação.
Como eu citei o nazismo num parágrafo acima, reitero e contextualizo a informação de que os automóveis dirigidos pela filha e pela imagem da mãe criada artificialmente são fabricados pela VW, empresa multinacional que apoiou o nazismo na Alemanha. No Brasil ela contribuiu financeiramente para a implantação do regime militar pós-64, conduziu presos políticos para os centros de tortura em suas Kombis de transporte de jornais e também torturou operários no seu “chão da fábrica” por se envolverem nas lutas por melhores salários e condições dignas de trabalho e pelo enfrentamento da violenta ditadura que se impôs sobre o Brasil durante 21 anos.
“Você pode até dizer/Que eu ‘tô’ por fora/Ou então que eu ‘tô’ inventando/ Mas é você que ama o passado e que não vê”. Eu não amo o passado, eu amo a História e não suportaria ficar calado diante dessa violência cometida mais vez contra Elis Regina e Belchior.
Não bastou a censura da ditadura militar os impedindo de publicar e cantar suas canções, agora uma nova violência colocando a imagem falsa da Elis Regina como garota propaganda da empresa que apoiou a sangrenta ditadura e que a perseguiu duramente. O mesmo atentado foi cometido em relação à memória e à obra do Belchior, um dos maiores artistas desse país, utilizando-se uma de suas mais belas canções, hino daquela geração que foi torturada e assassinada pela ditadura, a qual ele “denunciava” de maneira metafórica na belíssima letra/poema “Como Nossos Pais”.
Encerro cantando “Blues da Piedade”, de Roberto Frejat e Cazuza, ritmo tão bem interpretado tanto por Elis Regina como Belchior:
“Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem…
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia…”
*Verso da canção “Como Nossos Pais”, autoria de Belchior do disco:
Belchior – Era Uma Vez um Homem e o Seu Tempo (1979)
Links dos artigos:
Esqueça os mortos que eles não levantam mais. Juntar Elis e Maria Rita é puro exercício de morbidez – Silvio Osias
Por Traz da Deepfake da Elis – Thiago Amparo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2023/07/por-tras-do-deepfake-da-elis.shtml
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