
A Última Viagem de Biden
por Márcio Sampaio de Castro
Em janeiro de 2025, Angola completará 50 anos de independência. Num espaço de poucos dias, Joe Biden deixará a Casa Branca, encerrando o seu tão pessoalmente almejado mandato presidencial. Para além das efemérides, o que há em comum entre os dois é que o presidente dos EUA escolheu Angola como destino de sua última viagem como chefe de Estado da maior potência do planeta. A visita ocorrida nos primeiros dias de dezembro marcou alguns pontos importantes.
Foi a primeira vez que um presidente da superpotência colocou os pés no território angolano. Este fato não é muito de se estranhar, afinal, os EUA só reconheceriam a independência de Angola quase 20 anos após o encerramento de sua guerra de libertação contra Portugal. Foi também a primeira vez que Biden visitou a África subsaariana. O mandatário, durante seu termo, esteve mais de uma dezena de vezes na Europa, outro punhado na Ásia e até a América Latina o recebeu em duas oportunidades. Em África, somente uma rápida passagem pelo Egito por ocasião da Conferência do Clima (COP 27).
A ida a Angola representou também o cumprimento de uma promessa feita por ocasião do encontro de cúpula US-Africa Leaders’ Summit ocorrido em 2022, em Washington, com a presença de 49 dignatários africanos. Na ocasião, Biden prometeu investimentos da ordem de 55 bilhões de dólares para o continente. E aqui as coisas começam a ficar interessantes.
Não é segredo pra ninguém que o Ocidente desde o fim da Guerra Fria até anos recentes praticamente abandonou o continente africano à sua própria sorte. Esse movimento não passou despercebido para uma potência econômica emergente, que no início dos anos 2000 implantava sua política de exportações denominada Going Global. Um ambicioso projeto de internacionalização de seus produtos e interesses econômicos. Estamos falando, claro, da China. Entre os anos de 2003 e 2023, segundo dados do China Africa Business Council (CABC), o país asiático fez investimentos diretos, ou seja, para a formação de capital bruto nos países de destino, em montantes superiores a 470 bilhões de dólares. Em 2013, os chineses já figuravam como os maiores investidores no continente e maiores parceiros comerciais, superando os EUA, que chegaram a apresentar recuo no total de investimentos no mesmo período.
Angola, por muito tempo, foi vista como uma espécie de jóia da coroa pelos chineses. Detentor da quarta maior reserva petrolífera do continente, o país se apresentava na primeira década dos anos 2000 como um parceiro ideal para a China. Com infraestrutura destroçada pela guerra de independência e posteriormente pela guerra civil, riquezas minerais além do petróleo, e esquecida pelos investidores ocidentais, a nação do sudoeste africano rapidamente se converteu em importante parceiro comercial do país asiático.
Os chineses investiram bilhões de dólares destinados à construção de casas, estradas, barragens para hidrelétricas e ferrovias. Em 2010, financiaram, com recursos do China Eximbank, 1,2 bilhão de dólares para a reforma e ampliação do porto de Lobito. Obra que seria entregue três anos depois, com previsão de expansão no futuro. Em troca, aceitaram barris de petróleo como pagamento, pelo menos até o fim do mandato do presidente José Eduardo dos Santos em 2017.
Afastamento
Neste mesmo ano, teria início uma sucessão de eventos que marcariam um afastamento crescente entre o país africano e seu parceiro asiático. O primeiro desses eventos foi a vitória eleitoral de João Manuel Lourenço para o lugar de Santos, tanto à frente da nação como também na liderança do mítico Movimento para Libertação de Angola (MPLA), o grupo revolucionário de esquerda que havia derrotado as forças coloniais portuguesas e também vencido a guerra civil contra os grupos paramilitares apoiados pela CIA e pela África do Sul nos anos da Guerra Fria.
Um dos primeiros atos de governo de Lourenço foi a remoção de Isabel dos Santos, filha de seu antecessor, da presidência da Sonangol, a estatal de petróleo angolana. O novo presidente iniciou uma cruzada anticorrupção, tendo como alvo principal a família Santos. Lourenço também recorreu, no primeiro ano de seu mandato, ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para um empréstimo de 3,7 bilhões de dólares (valores que deverão ser incrementados por um novo aporte de 5 bilhões de dólares em 2025).
Nos últimos cinco anos, a produção de petróleo angolana caiu 22%, os chineses reduziram a compra em 20% e, apesar de concederem uma moratória de três anos para os angolanos, ainda são credores de 17 bilhões de dólares. A inflação acumulada de 12 meses deve fechar dezembro na casa dos 28%. E, como não poderia deixar de ser, a insatisfação popular é crescente. Lourenço é chamado jocosamente nas ruas de Luanda de “Gorbachev angolano”.
Janela de oportunidade
Todo esse cenário e o desejo presidencial de se aproximar dos EUA, sob a alegação de que é preciso ter uma postura multipolar, proporcionou um afastamento lento, porém, contínuo entre Angola e China. Uma janela de oportunidade que o Departamento de Estado norte-americano não desperdiçou.
No final de 2023, Lourenço foi recebido com pompa e circunstância no Salão Oval da Casa Branca. Naquele momento, firmaram-se os acordos para os investimentos para o chamado Corredor Lobito: a reforma da ferrovia construída por belgas e portugueses durante o período colonial, ligando a República Democrática do Congo ao litoral angolano, através de 1344 quilômetros. Um investimento inicialmente estimado em 250 milhões de dólares. A principal função da ferrovia será transportar minérios como o cobalto, essencial para a indústria de eletroeletrônicos, diretamente para o porto de Lobito.
Discretamente irritados, os chineses já avisaram que não colocarão mais nenhum dólar na ampliação do porto.
Além dos contratos envolvendo o corredor ferroviário, autoridades estadunidenses e angolanas comemoram também a assinatura de acordos securitários, que permitirão ao país africano acesso a equipamento militar dos EUA e, possivelmente, a presença de conselheiros militares estadunidenses na fronteira entre o Congo e Angola em nome da segurança transfronteiriça.
Por outro lado, a mudança de guarda na Casa Branca, a princípio, não deve representar grandes problemas para as relações bilaterais. João Manuel Lourenço é tido como amigo de Elliott Broidy, importante lobista republicano com fácil acesso a Donald Trump.
Sem dúvida, a última viagem de Joe Biden ao exterior como presidente dos EUA é o símbolo de uma vitória tática importante de seu país na seção africana do tabuleiro geopolítico.
Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor assistente nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).
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