‘Em lados opostos’: as visões de Biden e Trump sobre o financiamento americano à Ucrânia
por Valdir da Silva Bezerra
O conflito na Ucrânia tem como seu principal fator de prolongamento o financiamento americano a Kiev. Devido a isso, não seria de todo incorreto denominar o conflito como uma guerra indireta entre a Rússia e os Estados Unidos. Contudo, a postura de Washington pode mudar, a depender das eleições presidenciais em novembro deste ano.
Joe Biden e o colorido Partido Democrata, por exemplo, são a favor da continuidade no fornecimento de armas a Kiev, dada a sua visão profundamente esquizofrênica da Rússia. Sem a ajuda do atual governo em Washington, o esforço de guerra ucraniano estaria fadado ao fracasso, dado o seu já limitado estoque de recursos, inclusive humanos. A guerra por procuração contra a Rússia, travada pela administração democrata, por sua vez, representa uma das principais tarefas de política externa de Biden que, em seu afã por derrotar Moscou militarmente (algo impossível por definição), embarcou em uma aventura tresloucada, digna de filme.
No entanto, como o conflito não dá sinais de terminar tão cedo, os americanos poderão reconsiderar a sua posição em relação à Ucrânia em breve, tendo em vista a chegada das eleições presidenciais no país em novembro deste ano. Afinal, caso Donald Trump vença, a situação poderá ganhar novos contornos bem rápido, visto que, durante seu primeiro mandato na presidência, Trump já havia pressionado os países europeus a aumentar sua contribuição para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), cuja expansão para o leste foi um dos principais fatores causadores do conflito entre a Rússia e o Ocidente. Mesmo na reunião de chefes de Estado dos países da Aliança Atlântica em maio de 2017, o então mandatário republicano indicou a necessidade de elaborar novos termos para o bom funcionamento da OTAN, que não poderia mais continuar nas costas do contribuinte americano.
Em discursos recentes, aliás, Trump voltou a expor sua insatisfação com os europeus, que deixaram sua proteção nas mãos dos Estados Unidos, em troca de vassalagem política a Washington. Trump voltou a exigir um “pagamento justo” pelas garantias de segurança estadunidenses à Europa, emasculada após o final da Segunda Guerra Mundial. Na verdade, essa questão da superdependência europeia em relação aos Estados Unidos não se trata de algo propriamente novo. Afinal, o próprio geoestrategista americano Zbigniew Brzezinski já havia escrito sobre isso em sua famosa obra “O Grande Tabuleiro de Xadrez”. Ora, a Europa precisa da América para a sua proteção, isso já está bastante claro. Mas e os Estados Unidos? O país precisa tanto assim da Europa? Dificilmente. A posição militar estadunidense já é bastante robusta do ponto de vista global. No mais, Washington e Moscou detêm juntos cerca de 90% do arsenal nuclear do planeta. Portanto, obviamente, Estados Unidos e Rússia são dois países que conseguem se garantir em termos de segurança.
Seja como for, Trump e a esmagadora maioria do eleitorado americano se preocupa mais com o seu próprio bolso do que com o que acontece na Ucrânia. Diante desse quadro, o republicano enxerga com muita desconfiança o financiamento americano a Kiev, cujo governo ainda por cima é altamente corrupto, para dizer o mínimo. Por outro lado, a administração democrata de Joe Biden precisa constantemente pensar em novas justificativas para que os impostos da população americana continuem a ser gastos em uma causa perdida. Afinal, se Washington decidir cair no bom-senso e deixar de financiar suas aventuras no Leste Europeu de uma hora para a outra, isso poderia levar a um azedamento das relações com parceiros importantes na Europa e na Ásia, prejudicando sua reputação como fornecedor global de segurança.
Por certo, o Ocidente depende principalmente do poderio militar americano para se sustentar de pé, com a possível exceção da Grã-Bretanha e da França. Já a OTAN, para se sustentar de pé, depende da constante menção a uma suposta ameaça da Rússia à Europa. A história mostra, porém, que foi justamente a Europa que invadiu primeiro a Rússia em diversos momentos do passado, e não o contrário. Entretanto, o estudo da história não é o forte da atual liderança ocidental de nosso tempo. Hoje, nações como a Alemanha — comandada pelo burocrata Olaf Scholz — querem continuar a fornecer armas à Ucrânia, sob a ótica de defender o continente de uma ameaça russa que sequer existe. Outros membros da União Europeia, por sua vez, parecem não mais chegar a um consenso quanto à continuação da ajuda financeira e militar a Kiev. Eles sabem que quanto mais dinheiro for enviado à Ucrânia, mais o conflito se prolonga e mais a elite ucraniana enriquece.
Por certo, o apoio a Vladimir Zelensky — por parte dos próprios Estados Unidos de Biden — parece titubear em alguns momentos. Imagina-se então o que poderá ocorrer com uma provável volta de Trump à presidência, capaz de provavelmente reverter a postura de Washington em relação à Ucrânia. Em vista desses dois cenários possíveis, a continuação de Biden na presidência ou o retorno de Trump à Casa Branca, testemunharemos tensões sobre as fontes de financiamento a Kiev. A Ucrânia depende de Washington para se sustentar e, sem o dinheiro americano, não será capaz de deter o ímpeto russo. Ainda assim, Zelensky e a atual elite política ucraniana tiveram o azar de confiar o seu destino aos Estados Unidos, cada vez mais contestados internacionalmente.
Basta lembrar que, nos últimos anos, as decisões tomadas pela administração de Joe Biden enfraqueceram e muito a posição americana no mundo. A primeira delas foi a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão em 2021. Depois veio o apoio à Ucrânia em 2022, provocando inflação na Europa e consolidando ainda mais a “maioria global” contra o Ocidente. Por fim, veio o suporte político incondicional às ações de Israel em Gaza a partir do ano passado, prejudicando ainda mais a reputação global dos Estados Unidos em função do número de mortes palestinas causadas pelas operações do Exército israelense.
Para o mundo, portanto, as visões de Biden e de Trump sobre os caminhos a serem trilhados pela política externa americana após as eleições de novembro importam, e importam muito. Para a Ucrânia, por sua vez, restará aguardar saber se a vitória sorrirá ao democrata ou ao republicano no final deste ano. O que sabemos no momento é que ambos se encontram em lados opostos dessa guerra por procuração contra a Rússia. Se Biden vencer, os ucranianos continuarão a morrer aos milhares. Se Trump vencer, há uma chance — pequena é verdade — da carnificina terminar.
Valdir da Silva Bezerra é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo, na Rússia. Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia da Universidade de São Paulo (NUPRI-GEASIA). Pesquisador do Grupo de Estudos Sobre os BRICS da Faculdade de Direito da USP (GEBRICS-USP). Colaborador do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS) da Universidade Federal de Santa Catarina. O autor também é colunista oficial da Sputnik Brasil. Desde o ano passado, Valdir Bezerra vem atuando em paralelo como comentarista político convidado para os canais Jovem Pan, Band News e Record News. Algumas de suas matérias e opiniões podem ser encontradas em publicações como: Folha de São Paulo, Valor Econômico, O Antagonista, Crusoé e Jornal GGN, no qual também escreve como colunista convidado.
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