Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Dependência e transição energética, por Angelita Matos Souza

Os investimentos devem movimentar a economia, com empregos/renda, ganhos em infraestrutura, alguma transferência de conhecimento/tecnologias.

do Observatório de Geopolítica

Dependência e transição energética

por Angelita Matos Souza

Está em curso o início de uma transformação no regime de acumulação capitalista em sentido “verde”, o que deve assegurar investimentos novos, capazes de dar uma revigorada no sistema. No centro da mudança está a transição energética, que não deve ser compreendida como abandono das fontes de energia fóssil, e sim como adição de fontes novas (Cataia; Duarte, 2022). Quer dizer, por enquanto, as fontes renováveis não estão propriamente substituindo as não renováveis, mas ampliando as opções, quando urgente seria avançar na substituição.

No Brasil, é exatamente disso que se trata, não parece haver intenção de se abandonar a exploração de combustíveis fósseis, e sim de se aproveitar a demanda externa ligada à transição energética. Esta tem sido apresentada como grande oportunidade e, sem dúvida, há motivos para expectativas positivas, o país pode se tornar um grande exportador de energia renovável e, de maneira articulada, um receptor privilegiado de investimentos estrangeiros para avançar na construção de uma economia mais verde. No entanto, importa aqui chamar a atenção para o risco de surgimento de enclaves externos dentro do território brasileiro.

Como escreveram Cardoso e Faletto (2004) ao final dos anos 1960, os modos de inserção de países latino-americanos na economia mundial, na fase da economia voltada “para fora”, geraram situações de dependência distintas, fundamentais à compreensão dos rumos do processo de desenvolvimento nestes países. A diferença principal diz respeito ao controle do sistema produtivo por agentes econômicos locais, nos países onde essa condição inexistiu se estabeleceram economias de enclave, nas quais o setor produtivo voltado a exportações foi dominado por grupos estrangeiros.

Não foi o caso do Brasil, onde as classes dominantes locais mantiveram o controle relativo do sistema produtivo e foram agentes relevantes no processo de industrialização pela via dependente-associada na fase da nova dependência (de meados dos anos 1950 ao final dos anos 1970). Processo este favorecido pela conjuntura internacional do pós-guerra, de capitalismo organizado pelo Estado (ou pacto keynesiano). Agora o contexto é bem mais adverso e há risco de controle por grupos estrangeiros de recursos demandados pela transição energética nos países desenvolvidos.

A título de ilustração, podemos mencionar o hidrogênio verde, uma das grandes apostas rumo às energias renováveis, visto como oportunidade para o Brasil. O governo da Alemanha, por exemplo, decidiu incentivar a importação de hidrogênio verde e o Nordeste brasileiro é forte candidato a receptor de investimentos para se tornar um exportador importante, inclusive porque contaria com energia eólica e solar, consideradas limpas. Entretanto, se o Brasil se especializar na exportação da matéria-prima, como perguntou e respondeu Figueiredo (2024): “Quem lucrará com venda do hidrogênio produzido no Brasil que será feita na Europa? As corporações empresariais europeias que instalarão as plantas no Brasil”.

Mesmo assim, os investimentos devem movimentar a economia, com empregos/renda, ganhos em infraestrutura, alguma transferência de conhecimento/tecnologias. O que costuma ter implicações políticas, pois mesmo que inicialmente não contem com apoio financeiro interno, uma vez instalado os investimentos, os grupos controladores costumam ter poder para conquistar benefícios públicos, contando assim com o apoio de dois Estados, o de seus países de origem e o do Estado dependente, apoiados ainda por empresários locais que, em posição subordinada, também lucram com esses investimentos.

Em artigo recente, Kelman argumenta corretamente que a contribuição do Brasil para a solução dos problemas ambientais mundiais não pode desviar recursos públicos para o pagamento de parte dos incentivos verdes dos Estados dos países desenvolvidos. Recursos que, obviamente, devem ser usados para a “solução de problemas locais ainda pendentes do século 20 nas áreas de educação, saúde, segurança e saneamento básico” (Kelman, 2024).

Angelita Matos Souza – Cientista Social, docente na UNESP (DGPA-IGCE)

Todavia, é possível que o desvio ocorra. Ademais, seguramente ninguém duvida da atualidade da afirmação de Cardoso e Faletto (2004, p. 66): “o enclave apresenta certa tendência a um baixo nível de distribuição de renda do ponto de vista da economia nacional”. No entanto podemos encerrar com os mesmos autores, com a defesa que fazem no ensaio clássico de que “a superação ou a manutenção das ‘barreiras estruturais’ ao desenvolvimento” dependiam do “jogo de poder”, da “ousadia” daqueles dispostos “a agir em função de fins historicamente viáveis” (p. 173) e da ação coletiva voltada a tornar possível o que era estruturalmente difícil. A ver…

Referências:

Cardoso, F. H., & Faletto, E. (2004). Dependência e desenvolvimento na América Latina: Ensaio de interpretação sociológica. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Cataia, M., & Duarte, L. (2022). Território e energia: crítica da transição energética. Revista da ANPEGE.

Figueiredo, J. P. (11/01/2024) Quão limpas e renováveis são as energias que chamamos de limpas e renováveis. Revista Carta Capital.

Kelman, J. (20/02/2024). Transição energética, lá e cá. Jornal Folha de São Paulo.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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