INCT - InEAC Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos
Há mais de 15 anos, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC-UFF) vem trabalhando com pesquisas sobre a diversidade das formas institucionais de administração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Os trabalhos são produzidos através de uma rede nacional e internacional de programas de Pós-Graduação, grupos de pesquisa e de pesquisadores espalhados por sete estados do Brasil e nove países. Esta coluna se relaciona com os esforços dessa rede em refletir sobre temas da pauta política e social brasileira, visando a contribuir com o debate público e difundir ciência para fora dos muros da universidade.
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Gaza e Síria: genocídio, guerra, revolução e a geopolítica do Oriente Médio, por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Gisele Fonseca Chagas

Guerra contra a população palestina, Israel atacando Gaza, Cisjordânia, Líbano e, agora, o colapso do regime Baathista na Síria

Gaza – Anadolu

Gaza e Síria: genocídio, guerra, revolução e a geopolítica do Oriente Médio

por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Gisele Fonseca Chagas

O Oriente Médio vem passando por eventos dramáticos que apontam para uma reconfiguração geopolítica da região: uma guerra total contra a população palestina, que inclui o genocídio perpetrado por Israel em Gaza e a intensificação da brutalidade e violência contra a população da Cisjordânia por parte do exército israelense e dos colonos judeus; a ampliação da agressão militar israelense para o Líbano com o objetivo de neutralizar o Hizbollah; a contração do poder regional do Irã diante de uma guerra de atrito fomentada por Israel; e, finalmente, o colapso do regime Baathista na Síria diante da ofensiva do Hayat al-Tahrir al-Sham.

Apesar do sentimento de ruptura causado por esses eventos, eles são compreensíveis apenas quando colocados no contexto dos processos de longa duração que atravessam a região há décadas. Os ataques de 7 de outubro de 2023 do Hamas contra Israel e a guerra total contra os palestinos desencadeada em seguida fazem parte de um longo processo de ocupação, despossessão e colonização dos territórios palestinos por parte de Israel desde 1967. Paralelo a isso, um sistema de apartheid, visando a dominação da população judia sobre a população palestina, foi criado tanto nos territórios ocupados quanto dentro do Estado de Israel. A ênfase israelense em soluções militares a problemas políticos com os países vizinhos, exemplificada na ofensiva contra o Líbano, é fruto de uma doutrina militar estabelecida de longa data na razão de Estado israelense. Por fim, os eventos que levaram à queda espetacular de Bashar al-Assad na Síria são a conclusão de um ciclo iniciado com a Revolução Síria de 2011.

Há mais de um ano, Gaza é palco de uma campanha militar israelense que visa não apenas a neutralização e destruição do Hamas, mas a submissão do conjunto da população palestina à sua dominação colonial. Porém, desde o início da campanha militar, a escala e intencionalidade dos ataques à população civil configuraram ações de cunho genocida contra a mesma. Os sucessivos deslocamentos da população para áreas declaradas seguras por Israel e que, em seguida, foram alvo de bombardeios e combates em larga escala, o bloqueio da ajuda humanitária aos palestinos, a destruição de escolas e hospitais, os ataques militares contra centros de saúde, impedindo a vacinação de crianças contra poliomielite, levaram a uma situação de catástrofe humanitária sem precedentes na região. Além disso, ataques militares, fome e epidemias decorrentes dessa situação têm efeitos duradouros na população palestina.

A mudança de paradigma na política israelense de dominação dos palestinos, da submissão pela violência militar para uma gerada por ações genocidas, é exemplificada na campanha que Israel levou contra a UNRWA, a agência humanitária da ONU que cuida dos refugiados palestinos em diversos países do Oriente Médio e nos territórios ocupados. Israel acusou funcionários da UNRWA de terem participado do ataque do Hamas contra seu território. Essa acusação levou ao afastamento dos mesmos por parte da UNRWA e à suspensão da ajuda financeira por parte dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Austrália, França e outros países, efetivamente levando ao quase colapso da agência humanitária. Em 2024, o parlamento israelense votou uma lei proibindo a UNRWA ter qualquer representação ou base de ação em Israel, o que, uma vez implementado, impedirá a agência de prestar qualquer ajuda humanitária aos palestinos nos territórios ocupados.

Claramente, Israel procura eliminar qualquer quadro institucional de proteção da população civil palestina que possa colocar algum limite às políticas brutais de dominação e extermínio às quais a população de Gaza está sujeita há mais de um ano. As ações de Israel contra a população civil em Gaza já haviam levado à acusação de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional por parte da África do Sul, Bangladesh, Comores, Djibuti e Bolívia em novembro de 2023, à qual Chile e México se somaram em janeiro de 2024. Embora o Tribunal Penal não tenha se pronunciado ainda sobre todas as acusações, já emitiu mandados de prisão contra o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e seu ex-ministro de defesa, Yoav Gallant, em novembro de 2024. Para além das considerações jurídicas, o efeito deliberadamente destrutivo das ações militares israelenses sobre a população palestina foi reconhecido por instituições humanitárias como a Amnesty International, que declarou que Israel está cometendo genocídio em Gaza em seu relatório de dezembro de 2024.

A ampliação da escalada militar israelense para o Líbano, com o objetivo de derrotar o Hizbollah, que havia se colocado como aliado do Hamas e defensor da população palestina, foi também acompanhada por ataques contra a população civil libanesa. Centros urbanos foram bombardeados e a infraestrutura civil extensamente destruída, levando a milhares de vítimas e grande número de deslocados internos. A guerra contra o Líbano serviu também para novos ataques de Israel contra a ordem internacional encarnada na ONU e suas instituições, como pode ser visto no ataque repetido às forças de paz da UNIFIL e, mesmo, na declaração do Secretário-Geral António Guterres como persona non grata. Embora um cessar-fogo tenha sido efetivado em novembro de 2024, os efeitos da guerra permanecerão por muito tempo no Líbano, pois o país já enfrentava a maior crise econômica e política da sua história desde a explosão do porto de Beirute em 2020.

O enfraquecimento de forças regionais como o Hizbollah e o próprio Irã, envolvidos no conflito com Israel, e internacionais, como a Rússia, envolvida na guerra contra a Ucrânia, modificou o equilíbrio de forças na região, permitindo o desencadeamento de eventos políticos inesperados, como a queda do regime baathista na Síria. Até novembro de 2024, o governo de Bashar al-Assad parecia ter obtido alguma estabilidade após uma reconquista militar de boa parte do país, com a ajuda de seus aliados russos, iranianos e libaneses, no contexto da guerra civil iniciada em 2011.

A guerra civil emergiu da brutal repressão militar e paramilitar que o regime baathista fez contra os protestos e movimentos de desobediência civil, chamados de Revolução Síria de 2011, contra a ditadura de Bashar al-Assad, no poder desde 2000. A militarização da Revolução começou com a formação de grupos armados para a defesa dos manifestantes, levando ao confronto com o regime. Uma vez instaurada a guerra civil, os grupos armados passaram por um processo de sectarização, em que grupos islâmicos de ideologia jihadista ganharam preeminência e grupos nacionalistas seculares foram gradualmente marginalizados. Após a reconquista da maior parte do território pelo regime, os grupos de oposição ficaram restritos à província de Idlib, no noroeste da Síria, da qual mantinham o controle sob a proteção da Turquia.

O principal grupo em Idlib era o Hayat al-Tahrir al-Sham (HTS – Organização de Libertação da Síria), cuja origem foi a Jubhat al-Nusrat (Frente de Apoio), uma organização jihadista inspirada na Al-Qaeda, criada em 2012 no contexto da guerra civil na Síria. A Jubhat al-Nusrat também apoiou o Daesh (Estado islâmico) em sua expansão pelo Iraque e Síria. Porém, em 2017, o seu líder Abu Muhammad Jaulane (Ahmed Sharaa) rompeu com a Al-Qaeda e o Estado Islâmico e refundou o grupo na linha de um nacionalismo religioso sírio, renomeando-o como Hayat al-Tahrir al-Sham (HTS). Recentemente, mesmo o território de Idlib estava sob ataque das forças do exército sírio e seus aliados, apontando para um possível reconquista do mesmo pelo regime baathista.

Assim, o sucesso fulminante da ofensiva do Hayat al-Tahrir al-Sham que, em alguns dias, conquistou Alepo, Hama, Homs e, finalmente, a capital Damasco, levando ao fim o regime baathista, surpreendeu a todos observadores. Embora o passado sectário ligado à ideologia jihadista do HTS tenha despertado desconfiança e ansiedade entre as minorias religiosas e os sírios seculares, o discurso atual de sua liderança é de respeito à pluralidade religiosa, étnica e, mesmo, política da Síria, e de reconstrução do Estado através das instituições e da consulta eleitoral à população. Para além do discurso, o HTS estabeleceu seu controle em áreas povoadas por minorias religiosas através da negociação com forças locais, como foi o caso em Salamiyya, onde estabeleceram um acordo com o Conselho Ismailita.

Apesar desses sinais promissores, o HTS tem grandes diferenças internas, indo de setores mais comprometidos com a visão jihadista tradicional a outros interessados na construção de um Estado estável e centrado em instituições e no jogo eleitoral. Isso ficou claro em 8 de dezembro, quando membros do HTS proclamavam a supremacia absoluta da sua versão do islã sunita no pátio da Mesquita dos Omíadas, ao mesmo tempo que, no interior da mesma mesquita, seu líder, Ahmed Sharaa, discursava reconhecendo o pluralismo religioso da Síria e prometendo um futuro político que reconhecesse isso. Além disso, embora o HTS tenha controle das principais cidades da Síria, está longe de ter o controle sobre a totalidade do país, que foi fragmentado em territórios controlados por diferentes forças políticas. No sul, a província de Swaida e parte da região do Golã são controladas por uma coalizão de forças lideradas pelos Druzos; a região de Deraa é controlada em parte por outras forças islâmicas sunitas; a região da Jazira, no leste da Síria, é controlada pelas Forças Democráticas Sírias, que é liderada pelo YPG, uma organização curda; e as regiões ao longo da fronteira turca, em torno de Afrin, Azaz, Tel Abyad e Ras al-Ayn, estão sob controle do Exército Nacional Sírio, um conjunto de forças árabes e curdas sob controle da Turquia. Embora as regiões controladas pelo HTS esteja relativamente calmas, violentos combates armados ocorreram entre Exército Nacional Sírio e as Forças Democráticas Sírias pelo controle de Manbij, mostrando como as rivalidades e disputas entre os diferentes grupos pode rapidamente ganhar uma dimensão militar, dificultando a construção de um campo político unificado na Síria.

Desse modo, somente a composição de forças dentro do HTS e com as outras forças políticas permitirá vislumbrar a nova ordem em construção na Síria. Esse processo depende tanto de fatores internos quanto externos, uma vez que a Síria já é alvo das disputas geopolíticas na região. A Turquia e o Catar são as potências regionais mais beneficiadas com a ascensão do HTS, uma vez que possuem relações de longa data com os grupos islâmicos da oposição síria. Israel, por sua vez, procura estabelecer sua superioridade militar sobre a Síria através dos recentes bombardeios efetuados em instalações da Marinha e Aeronáutica sírias, assim como consolidar ganhos territoriais através da ampliação de sua ocupação militar na região das Colinas de Golã. O Irã e o Hizbollah viram-se privados de um aliado central no Oriente Médio e não parecem ter meios políticos para reverterem a situação. Os Estados Unidos, assim como a Arábia Saudita, se beneficiaram indiretamente pelo enfraquecimento do Irã. Já a Rússia, embora também tenha perdido um aliado chave no Oriente Médio, já iniciou negociações com os novos líderes da Síria sobre o futuro de suas bases naval e aérea no país.

Assim, os eventos políticos que estão reconfigurando o Oriente Médio atualmente apontam tanto para processos políticos de longa duração quanto para rupturas e novos paradigmas, os quais trazem em si a incerteza e a esperança da mudança, como no caso da Síria, o colapso da ordem econômica e política do Líbano, e os horrores do genocídio e do apartheid como no caso de Gaza e da Cisjordânia sob controle de Israel.

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto é professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFF, e coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM). Também é pesquisador do CNPq (Produtividade em Pesquisa) e da FAPERJ (Cientista do Nosso Estado).

Gisele Fonseca Chagas é professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFF, e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM). Pesquisadora do CNPq (Produtividade em Pesquisa) e da FAPERJ (Cientista do Nosso Estado).

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