Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Mídias digitais e os sinais trocados dos casos X e Telegram, por Márcio Sampaio de Castro

Musk e sua empresa são tratados como vítimas e ativos inestimáveis da vida brasileira. Isso lembra o caso do rabo que abana o cachorro.

No Brasil, censura. Na França, regulação. Mídias digitais e os sinais trocados dos casos X e Telegram

por Márcio Sampaio de Castro

Em um de seus mais recentes livros, Uma Nova Mudança Estrutural da Esfera Pública, o filósofo alemão Jürgen Habermas, ao discutir o papel das mídias digitais no ambiente do debate democrático, pontua que não é incomum que no mundo de hoje essas mídias sejam utilizadas em manifestações encenadas com caráter libertário, mas que possuem de fato motivações autoritárias.  Para os artífices desses movimentos, é o debate a respeito da liberdade de expressão que, como valor absoluto, deve se impor sobre todos os demais. No caso brasileiro, esse quadro vem tornando-se um sofisma incontornável.

Por um traço formativo quase intransponível da alma nacional, assume-se a priori que nada que tenha surgido por aqui pode ser bom. Exceção honrosa a esse estado de espírito talvez seja a nossa jabuticaba. Mas a constituição cidadã de 1988, em seu artigo 5º, é uma peça de humanismo que deveria ser motivo de orgulho diário para todos nós. O referido artigo trata dos direitos fundamentais, asseverando que a liberdade de expressão é, inquestionavelmente, um deles. Desde que não atente contra outros direitos como a vida, a intimidade, a honra ou a vida privada. A associação de indivíduos para fins lícitos é livre. Porém, o racismo, a intolerância e a formação de grupos paramilitares são crimes. A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Mais simples e objetivo do que isso, impossível.

É nesse contexto que emerge o falso debate disseminado por ampla parcela da mídia brasileira entre uma suposta censura perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na figura de um de seus ministros, Alexandre de Morais, contra o direito da empresa de mídia digital X, do empresário sul-africano Elon Musk. No âmbito do STF, corre processo desde 2023 que apura responsabilidades quanto à disseminação de notícias falsas, a formação de milícias digitais e os atos golpistas do dia 08 de janeiro daquele ano, que culminaram com a invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília com uma impressionante depredação, cujo objetivo, sabe-se hoje era forçar o então recém-empossado presidente Luis Inácio Lula da Silva a decretar a medida Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que hipotecaria o poder às Forças Armadas em Brasília, potencialmente abrindo as portas para um golpe de Estado.

Diversos perfis criados na plataforma X serviram como correias de transmissão, incentivando a mobilização golpista e acirrando os ânimos em um país que mal acabara de sair de uma eleição vencida com números apertados e contestada pelo perdedor. Elon Musk à época acusou o STF de censura e recusou-se a derrubar os perfis que incentivavam a sublevação. No final de agosto deste ano, em mais um capítulo do embate entre o magnata estrangeiro e o Supremo brasileiro, o ministro Alexandre de Morais ordenou o bloqueio da plataforma digital no Brasil.

Além de ser retratado pela imprensa local como um capricho pessoal e quase ditatorial do ministro relator, as origens do processo praticamente sumiram da cobertura midiática e o mogul sul-africano e sua empresa são tratados como vítimas e ativos inestimáveis da vida pública brasileira. Isso nos lembra o clássico caso do rabo que abana o cachorro.

Na Europa, regulação (e geopolítica)

Também no final de agosto, outro caso envolvendo outra plataforma digital ganhou as manchetes de vários periódicos ao redor do mundo, com a exceção da imprensa brasileira, que timidamente tratou o caso como uma ação do judiciário francês imbuído do espírito regulatório da União Europeia em relação às redes sociais.

Em sua chegada a Paris, proveniente de Dubai, o russo de cidadania francesa, Pavel Durov, foi detido pelas autoridades daquele país. Acusação? Ser proprietário da plataforma Telegram. O aplicativo permite a seus usuários não só a comunicação direta por troca de textos ou chamadas de áudio e vídeo, como também a criação de canais informativos, nos quais os donos dos perfis podem livremente postar todo e qualquer tipo de conteúdo, desde notícias e vídeos com imagens de soldados mortos na guerra da Ucrânia até conteúdos ilícitos como apologia às drogas ou pedofilia.

À parte as grandes plataformas digitais globais com sede nos EUA, o Telegram é, ao lado do WeChat e do TikTok chineses, uma das maiores do mundo, com mais de 900 milhões de usuários. Durov deixou a Rússia em 2014 exatamente porque se dizia perseguido pelo governo local, quando foi inclusive obrigado a encerrar as atividades de sua então bem-sucedida rede social VK por se recusar a bloquear as páginas de grupos que faziam oposição ao governo Putin. Ironicamente, após sua detenção em Paris, representantes da Duma, o parlamento russo, e a própria porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, acusaram as autoridades francesas de afrontar os padrões internacionais de proteção à liberdade de expressão e de opinião. Os franceses foram acusados pelos russos de possuírem uma dupla moral em relação à liberdade de expressão e à democracia. O caso rapidamente subiu para o patamar geopolítico, levantando suspeitas de que Durov foi preso em primeiro lugar por ser russo e não exatamente pelas ações dos usuários de sua plataforma.

Após amargar quatro dias nas prisões francesas, o dono do Telegram foi solto mediante o pagamento de uma fiança de € 5 milhões e foi proibido de deixar o país.

Os casos X e Telegram iluminam uma série de questões que estão completamente em aberto nos dias que correm. A primeira delas é, sem dúvida, o inquestionável potencial corrosivo que as plataformas digitais apresentam para o funcionamento da esfera pública, para resgatar o pensamento de Habermas mencionado no início deste texto. Em nome da liberdade de expressão, o céu passa a ser o limite e o grau de toxicidade desse fenômeno é absolutamente palpável com o avanço da extrema-direita em diversos países do mundo e a naturalização do seu discurso de ódio. Em segundo lugar, esse ente moderno conhecido como Estado bate cabeça para tentar normatizar o funcionamento dessas ferramentas, o comportamento de seus usuários e para lidar com os bilionários que as inventaram. Estes atuam no limite da irresponsabilidade e parecem se divertir com o caos que espalham pelo mundo. E, por fim, mas não menos importante, interesses políticos e geopolíticos se aproximam dessas mídias, arrastando-as para o jogo cada vez mais pesado do controle de corações e mentes das massas alienadas na Era da Informação.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor assistente nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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